* Por Jéssica Rosa *

Roger Ceccon lançou, recentemente, As imposturas da língua (Folhas de Relva Edições), livro cuja capa grita e abocanha o leitor antes mesmo de a obra ser aberta. Uma boca que grita ou morde, a depender para onde os olhos e o pensamento do leitor estiverem. Quando aberto, o livro consome a alma com seus contos e poesias sobre tragédias pessoais e a pandemia; sobre as pessoas que sofrem e vivem ao mesmo tempo.

A cada página é possível imaginar o momento de criação do texto. Muitas vezes, durante a leitura, me peguei imaginando os moribundos e as Marias – personagens corriqueiros – nos fazendo adentrar no mundo ali escrito em palavras. Palavras capazes de tocar a alma, fazer chorar, lembrar que é possível sentir, se consternar, sobreviver, e principalmente resistir.

Entre cada poema e prosa poética, Roger fala sobre desigualdades sociais, sexismo, política, religião, diferenças de classes e calamidades públicas. Ao mesmo tempo fala sobre a vida, a morte, o luto, as tragédias e o tempo. Muitos desatinos que simbolizam o momento em que nos encontramos em que resistir parece ser a única saída. As imposturas da língua é o retrato da arte em forma de resistência. Um livro publicado este ano, com essa complexidade, pode ser considerado uma afronta que também se traduz na página 71 da obra. Uma afronta que mostra que por traz dos moribundos, dos sem direitos e sem lugar: há gente!

O livro fala sobre gente que vive e que sofre com as mazelas do mundo, com dores profundas, com males incuráveis, mas mostra também que essa gente, que muitos teimam em esquecer, existe. Não dá para esquecer algumas das histórias, dos momentos que Roger Ceccon traduz em poesia e prosa, pois no mínimo haverá de despertar a compaixão do leitor.

Na página 75, o título “imaginações” parece vagar, mas se olhar com cuidado, mais uma vez, há um golpe de vida. No meio do caos, da tragédia, da pandemia, o autor permite ao leitor respirar “para criar não  precisa nada além da imaginação”. Resistir também é sobre manter a alma viva.

A trajetória que antecede a produção da obra também é observada. As mulheres têm lugar de destaque entre as palavras, como em “mulheres livres”, na página 76, e em “mistérios de nascer poesia”, na página 114. Sempre me importa quem escreve, pois isto diz muito de cada obra.

Li Roger Ceccon pela primeira vez em seus escritos sobre violência e HIV/Aids, acompanhado de seus colegas da Saúde Coletiva (ele é professor da área da saúde da Universidade Federal de Santa Catarina), que muito admiro. É interessante ver como mesmo mudando o gênero literário as obras se cruzam e traduzem também as trajetórias de quem escreve. Neste As imposturas da língua, já no começo, o autor igualmente emociona. Na página 61, por exemplo, as lágrimas não puderam ser contidas, em “minha mãe virou beija flor”. Talvez me sinta mais tocada por também ser mãe.

Este livro é um mergulho indicado àqueles prontos para lidar com as intensidades da vida. Leitores que gostem de política, de realidade, de sentir-se vivos e de alguma maneira aqueles que se permitem ser parte das histórias narradas. Seja por uma lembrança, por uma similaridade de pensamento ou que apenas se deixem ser provocados pela língua. Que as imposturas nos salvem.

 

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Jéssica Rosa é mineira, cresceu em terras do cerrado da capital brasileira e está há alguns anos experimentando o sul do país. Dedicou sua formação à saúde coletiva, com interesse especial nas suas interfaces com as desigualdades sociais, equidade, violência e políticas públicas para populações vulneráveis. É doutora em políticas públicas pela UFRGS.

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AS IMPOSTURAS DA LÍNGUA capa frente2

Veja o livro no site da Folhas de Relva Edições.

 

 

 

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