As musas da música popular

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Da redação *

Repórter por dez anos da revista Marie Claire, a jornalista e cantora Rosane Queiroz começou a investigar o paradeiro de algumas das musas da música para uma reportagem.

A “Madalena”, do Ivan Lins, por exemplo, se chamava Vera Regina. Foi ex-namorada do compositor Ronaldo Monteiro de Souza, letrista da canção. Bem-casada, Vera preferiu continuar incógnita em seu nome composto.

A reportagem saiu, com mais quatro musas: Lígia, Drão, Vera Gata, Iolanda e Anna Júlia, mas Rosane percebeu que as histórias eram saborosas e que transcendiam uma mera reportagem.

Resolveu então reunir as mulheres num livro, Musas e músicas: a mulher por trás da canção, recém-lançado pela editora Tinta Negra, em que se debruça sob a Camaleoa, do Caetano; a Conceição, do Cauby Peixoto; a Kátia Flávia, do Fausto Fawcett.

No total, são 33 musas, das quais a autora entrevistou 12 para o livro. Todas possuem algo em comum. Em algum momento, foram objeto de desejo, de admiração ou de amor dos artistas que inspiraram.

Leia, a seguir, trecho sobre “Lígia”, canção inspirada na professora primária, que, na verdade, nunca passeou com Tom Jobim pela praia do Leblon, casando-se, depois, com Fernando Sabino.

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Paixão platônica

“Eu nunca quis tê-la ao meu lado num fim de semana…” Será mesmo que não quis? Na canção de Tom Jobim, os olhos verdes da carioca Lygia Marina de Moraes são morenos. Um disfarce da identidade e da atração de Tom Jobim pela musa que, nos anos 60, era professora de primário da filha mais velha do compositor. Quando os dois foram apresentados, no bar Veloso, em Ipanema, Tom caiu na risada e disparou: “É a primeira vez que paquera vira reunião de pais e mestres!”

Toda a letra de “Lígia” é a negação de um romance que, de fato, jamais aconteceu. Nunca houve nada entre Tom e sua musa. Nem o cinema nem o chope gelado em Copacabana. Muito menos “andar pela praia até o Leblon”. O affair se resumiu a uma carona no fusca azul de Tom. O encontro inesperado e fulgaz, contudo, daria origem ao samba-canção de melodia cool, gravado pela primeira vez por Chico Buarque (parceiro na letra), no LP “Sinal Fechado”, lançado em 1974.

A história desse disco vale um parêntese: em plena ditadura, Chico estava proibido de gravar músicas de sua autoria. A direção da gravadora Phillips, então, sugeriu um álbum com canções de outros compositores. Chico resistiu no começo, porque não se considerava cantor e sim intérprete de suas composições. Mas acabou decidindo que o disco seria melhor do que o silêncio. Pesquisou músicas antigas, com letras fortes, e recebeu inéditas de Gil, Caetano, Tom. “Sinal Fechado”, de Paulinho da Viola, imprimiu o tom de protesto ao disco. A inédita Lígia deu um toque romântico à seleção. A letra tem uma única frase que Chico assume como sua: “Mas teus olhos morenos me metem mais medo que um raio de sol…”. Ele não quis assinar a parceria para não destoar do espírito do disco.

Durante muitos anos, Tom negou que Lygia fosse sua musa, em respeito ao escritor Fernando Sabino, amigo dele –e marido dela, na época. “O Tom ficava chateado com essa história e jamais a confirmou”, afirma o cantor Danilo Caymmi, integrante da Banda Nova, que acompanhava Tom. Mas quando Lígia e Sabino se separaram, em 1994, o compositor admitiu, entre amigos, que ela era a inspiração da canção. “O Tom vivia de olho na Lygia”, afirma o jornalista Ruy Castro, que registrou o episódio no livro “Ela é Carioca” (editora Companhia das Letras).

Lygia foi a terceira mulher de Fernando Sabino, com quem ficou casada 19 anos e se separou de maneira conturbada. O escritor passou dois anos revendo sua obra e retirou todas as menções a ex-mulher de seus livros. Lygia lamenta o episódio com uma frase: “Se ele tivesse passado esses dois anos escrevendo um novo livro, teria ganhado mais”, diz ela, em uma mesa do bar Astor, em Ipanema.

O Astor estava fechado na manhã ensolarada de novembro, quando marcamos a entrevista. Lygia, habitué do lugar, chegou com ares de quem comprou o bar e as portas se abriram. Conseguimos uma mesinha de canto, enquanto os garçons preparavam a casa para o almoço. “Todo mundo precisa de um bar para chamar de seu”, diz ela.

Lygia Marina, como é conhecida, atualmente dirige a Casa de Cultura Laura Alvim, no Rio. É uma mulher bela, sem correções plásticas. Está prestes a se casar pela terceira vez. Com os olhos verdes fulgurantes e o sorriso de sempre, ela faz pensar que ser musa é, afinal, um estado de espírito. Entre dois cafés expressos, naquele bar em Ipanema, Lygia recordou seus melhores momentos com Tom Jobim.

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Lygia Marina de Moraes

“Conheci Tom em uma tarde de chuva. O bar Veloso estava vazio, era junho e fazia frio. Eu e uma amiga, Cecília, nos sentamos na varanda e vimos o Tom conversando com Paulo Góes (fotógrafo). Nós duas éramos professoras no Colégio Brasileiro de Almeida, na Lagoa, e depois das aulas habitualmente íamos tomar um chope. Ao ver as duas moças sozinhas, o papo começou e os dois acabaram se sentando na nossa mesa. A mãe de Cecília, costureira, fazia roupas para Thereza (Hermanny), a primeira mulher do Tom. Isso facilitou a aproximação. Quando contei ao Tom que era professora de sua filha Beth, que na época tinha 11 anos, ele teve um ataque de riso e disse: ‘É a primeira vez que paquera vira reunião de pais e mestres!’. E eu babando: imagine, eu com 22 anos, num tempo em que o Tom era um dos homens mais lindos do Brasil.

Naquela noite, ele tinha prometido dar uma entrevista a Clarice Lispector para a revista ‘Manchete’, e convidou a mim e a Cecília para ir com ele até a casa dela, no Leme. Na hora, eu disse: “Perfeitamente, estamos aí…’. Fomos no fusquinha azul-claro do Tom. Eu usava uma saia de lã e um suéter de cashemere. Quando Clarice abriu a porta, Tom, abraçado comigo e com Cecília, disse: ‘Trouxe minhas amigas’. Ela fez cara de mau humor. Acho que imaginou que teria Tom somente para ela. Lembro bem do apartamento sóbrio, com livros espalhados. Eu e Cecília ficamos no sofá, feito dois pastéis. Clarice não nos ofereceu nem um copo d´água. Pior é que eu era sua leitora frenética e fascinada por ela. Foi uma decepção.

O clima piorou e Clarice ficou mais furiosa quando pediu a Tom que fizesse um poema para ela, como Vinícius [de Moraes] teria feito em entrevista anterior, e ele disse: ‘Não sou poeta, se tivesse um violão…’. Mas aí pegou um bloco de papel-jornal e escreveu um poema para mim, que tenho guardado até hoje: ‘Teus olhos verdes são maiores que o mar/ Se um dia eu fosse tão forte quanto você/ Eu te desprezaria e viveria no espaço/ Ou talvez então eu te amasse/ Ai que saudades me dá/ Da vida que eu nunca tive’, e assinou: A.C.J.  Saindo de lá, Tom me levou em casa. Nos despedimos no carro, com um beijinho no rosto. Fiquei nervosíssima, mas parou ali. Tom era casado. Aquela carona foi nosso único encontro a sós. A música fala de tudo o que não aconteceu: o cinema, o passeio na praia… Depois nos encontramos muitas vezes, mas sempre em grupo.

Logo me casei com o cineasta Fernando Amaral e entrei para a turma. Vivi o auge de Ipanema. Conheci Leila Diniz, tivemos filhos pequenos na mesma fase. Após quatro anos de casada e um filho, me separei. Depois me casei com o escritor Fernando Sabino. Em 1973, acho que Tom não sabia que eu estava casada com ele, e ligou para o Fernando pedindo meu telefone. Meu marido fez uma sacanagem: deu um número errado. Em seguida, ligou para o telefone que tinha dado e avisou: ‘O Tom Jobim vai ligar aí procurando uma Lígia, mas o telefone é tal’, e deu outro número errado. Cheguei em casa, Fernando estava às gargalhadas. Os amigos ficaram sabendo dessa história, inclusive o Tom. Talvez daí tenha surgido a frase na música: ‘Desliguei foi engano, seu nome eu não sei’.

Um belo dia, estava sozinha em casa quando ouvi no rádio o Chico cantando ‘Lígia’, pela primeira vez. Fui correndo comprar o disco. Na hora, me vi na letra. Ser homenageada já é maravilhoso, ainda mais pelo Tom, com uma música linda e sofisticada. É uma glória! Claro que a canção rendeu comentários e Fernando ficou uma fera. Durante os 19 anos em que fui casada, Tom evitou o tema. Estivemos juntos em vários lugares, tipo réveillon na casa de Jorge Amado, eu com Fernando e Tom com Ana, sua segunda mulher. Mas ninguém falava no assunto.

Quando eu já estava separada, Tom me encontrou por acaso na Cobal [espécie de sacolão e ponto de encontro no Rio de Janeiro] e falou: ‘Está chegando minha musa!’. Foi a primeira vez que ele admitiu para mim. Aí, liberou geral. Até hoje, em cada boteco que eu entro tocam ‘Lígia’. Faz parte do meu show. Fiquei imortal. Tenho quase todas as gravações da música, instrumentais e cantadas. Existe até uma versão do João Gilberto em que, ao contrário da oficial, o romance acontece e Tom até se casa comigo! Muita gente me cobra o fato de nunca ter acontecido nada entre a gente. Mas será que não foi melhor ter ficado essa fantasia? Talvez tivesse de ser essa a história: eu virar musa, entrar em um bar e me lembrar do Tom, cheio de charme.”

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Lígia

(Tom Jobim e Chico Buarque)

Eu nunca sonhei com você

Nunca fui ao cinema
Não gosto de samba não vou a Ipanema
Não gosto de chuva nem gosto de sol

E quando eu lhe telefonei, desliguei, foi engano
O seu nome não sei
Esqueci no piano as bobagens de amor
Que eu iria dizer, não … Lígia, Lígia

Eu nunca quis tê-la ao meu lado
Num fim de semana
Um chope gelado em Copacabana
Andar pela praia até o Leblon

E quando eu me apaixonei
Não passou de ilusão, o seu nome rasguei
Fiz um samba canção das mentiras de amor
Que aprendi com você
É … Lígia, Lígia

E quando você me envolver
Nos seus braços serenos eu vou me render
Mas seus olhos morenos
Me metem mais medo que um raio de sol
É… Lígia, Lígia

Ouça aqui a música.

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Musas e músicas: a mulher por trás da canção, de Rosane Queiroz (editora Tinta Negra)

Fotos: Tom Jobim; Tom e Lygia Marina (arquivo pessoal da professora); partitura de Lígia; Rosane (á esquerda) e a musa de Tom, no lançamento do livro, no Rio