Conto: ‘Marulho’

bahia

“Maurino, Dadá e Zeca, ô

Embarcaram de manhã

Era quarta-feira santa

Dia de pescar e de pescador”

(Milagre – Dorival Caymmi)

Por Zé McGill *

Pra pescador, barulho de mar é cheiro de comida boa: navega pelo ar e arrasta o sujeito pela barriga até a beira da praia.

Sentado à mesa do café da manhã, quando nem manhã ainda era, Maurino açucarava o pingado e o pensamento já tinha ultrapassado a arrebentação. Saudoso do balanço das ondas, o corpo todo pedia pra ficar mareado outra vez. Desligou o rádio, que dava a previsão do tempo, e entregou os ouvidos ao vaivém permanente da água do mar, que se escutava da janela de casa.

Um sol alaranjado esclarecia o universo da vila na hora em que ele pôs os pés na rua, a rede enrolada debaixo do braço. Da porta até a praia, levava um bocadinho de nada; nem calçar sandália ele calçava. Tinha o chapéu de palha na cabeça, a calça rasgada na altura do joelho e a camiseta vermelha que o sal converteu em cor-de-rosa. Era bicho resistente: a pele das costas já não descascava e as mãos criaram uma casca tão grossa, por causa dos cortes de linha e anzol, que nem sangravam mais.

Dadá esperava com os pés negros afundados na areia branca, quase até a canela. Numa mão a metade duma tangerina, na outra a garrafa d’água. Perto dele, Maurino parecia um menino desnutrido: Dadá tinha tanto músculo que, se quisesse, carregava uma canoa nos ombros, diziam. Era da quarta geração de uma família de pescadores e trabalhava pesado pra criar oito filhos. Ele achou estranho, mas preferiu não comentar: Maurino cheirava a peixe antes mesmo de pescar. Os dois falavam pouco, mas se entendiam bem.

– Sabe que dia é hoje, Dadá?

– Sei não.

– É vinte e nove de junho.

– E daí, homem?

– É dia de São Pedro, quarta-feira santa.

– Então é dia de pescar!

– Dia de pescar e de pescador… Tô pressentindo rede atulhada.

– Tomara, sim. Mas e cadê Zeca?

– Vixe… Aquilo ali é lerdo igual baleia atolada. Ali ele lá, apontou Maurino.

Vinha contornando a beira, lá na outra ponta da praia, o terceiro e último tripulante da pequena embarcação. Barrigudo, bocejante e cheio de remelas nos olhos, Zeca era desse tipo de gente que nunca consegue chegar no horário combinado, por mais que tente e se esforce. Os outros só aguardavam porque era ele quem trazia os samburás de guardar o pescado.

Conferiram os nós e encaixes que sustentavam a jangada, costuraram pequenos rasgos na vela e embarcaram quando o sol já se mostrava inteiro e a água do mar ganhava um tom de verde bem claro, cor de limonada. Soprava um ventinho leste e as marolas inofensivas facilitaram a partida. Maurino ia manobrando e já tinha na cabeça o destino do barco: a área do naufrágio de um navio holandês do século XVII, a cinco milhas da costa, onde a pescaria costumava ser boa. Ali, era só jogar a rede e puxar, diziam.

Zeca ia sentado na popa, os pés deslizando sobre o oceano: gostava de ver a praia diminuir no horizonte. Um atobá sobrevoava o mastro solitário, na espera da primeira sobra de alimento, e isso alegrou Maurino, que percebeu naquela espreita precoce mais um sintoma de bom agouro. Dadá assoviava uma canção marinha e quase não olhava pra fora do barco, ocupado que estava preparando a rede.

O vento começou a mudar mais ou menos na hora em que eles chegaram à região do naufrágio. A água enturveceu, a jangada começou a sacudir, Zeca recolheu os pés e o atobá voou pra longe. O tempo virou de susto, o que não era incomum naquela época do ano. Um sudoeste trouxe o comboio de nuvens carregadas e o primeiro raio uniu céu e mar a pouco mais de duzentos metros de onde eles estavam. Dadá e Zeca olharam pra Maurino, querendo uma palavra de tranquilidade, mas o dono da jangada respondeu com um gesto mais preocupante do que qualquer frase dita: o dedo polegar virado pra baixo, na direção das profundezas.

Desmoronou a chuvarada logo em seguida ao primeiro pipoco de trovão. Maurino, que era de aguentar, segurou o remo com toda força, tentando desviar dos raios e das ondas que cresciam. Dadá, que era de labutar, recolheu o material de trabalho, amarrou os samburás e a rede, agarrou outro remo e fez o que pôde para ajudar enquanto rezava em voz alta. Zeca, esse nem falou. Mirou o horizonte e, não avistando o pedaço de areia nem os coqueiros que serviam de referência, deitou a barriga sobre a madeira e segurou os paus da jangada com toda força que tinha. Uma rajada violenta abriu um rombo na vela.

Era como se diferentes correntes marítimas tivessem marcado hora e local para travar um combate feroz, medir forças. Fluxos rebocavam daqui, refluxos empurravam de lá. Ondas com o dobro do tamanho de Dadá se emparedavam a bombordo abrindo crateras de vácuo a estibordo. Numa dessas, Zeca foi arremessado da jangada e afundou quase que instantaneamente, nadador precário que era. Submerso naquele liquidificador gigante, nem viu Dadá mergulhar pra tentar o resgate. Debatia-se feito peixe fora d’água e foi preciso puxá-lo pelo cabelo até a superfície. Os dois engoliram juntos pelo menos um litro de mar. Quando os viu emergir – Zeca debruçado nos ombros de Dadá –, Maurino largou o remo e lançou a boia de isopor – que ficava presa a uma corda – na direção da dupla. Naquele movimento, ele se desequilibrou e caiu de costas na corrente. Por um momento, a jangada flutuou sem dono.

De volta a bordo, Dadá e Zeca deitaram para recobrar o fôlego; os pulmões chiando no esforço da respiração ofegante. Só então notaram a ausência do terceiro tripulante. Escorados no mastro, esfregaram os olhos para tirar-lhes o sal antes de tentar avistar o amigo. Nem sinal dele nos intervalos da série de ondas. Os gritos de busca aumentavam em angústia à medida que o tempo passava. Maurino era nadador habilidoso, eles sabiam, mas aquele tempo todo debaixo d’água…

Dadá mergulhou de novo, vasculhou a área em torno da jangada, sem sucesso, e quase se afoga. Nos cálculos de Zeca, mais de dez minutos se passaram. A resignação baixava sobre os pescadores enquanto a tormenta dava os primeiros sinais de trégua: a chuva ia minguando, os raios cessaram e aos poucos o Atlântico se pacificou. A calmaria se instalou com a mesma urgência da tempestade, que durou pouco mais ou menos que uma hora. E, quando os primeiros raios de sol encontraram passagem entre as corpulentas camadas de nuvens, Maurino surgiu ao lado do barco, nadando de peito, com a desenvoltura de um animal aquático. Respirava normalmente quando subiu de volta à jangada e perguntou:

– Tá todo mundo vivo?

– A gente tá… Você é que eu não sei, respondeu Zeca. Esse tempo todo debaixo d’água não é coisa de sujeito humano…

– Quer matar a gente do coração? Chega por hoje, bora pra casa, completou Dadá, entre assustado e aliviado.

– Chega nada… Tá assim de peixe praquele lado ali, apontou Maurino.

– E como é que tu sabe?

– Eu vi.

Dadá e Zeca se olharam desconfiados, mas não resistiram à curiosidade. Pouco depois estavam os três pescando no local indicado por Maurino, onde havia mesmo uma variedade de peixes nadando cansados, pesados, estranhamente atordoados pelo pandemônio recente.

Era só jogar a rede e puxar. Tinha badejo, namorado, manjuba, tainha e até uma cavala que pesava uns trinta quilos. Só não bateram o próprio recorde de peso porque, com a vela inutilizada, a jangada precisava navegar na base do remo.

De volta à praia, no fim da tarde, lavaram a rede, botaram a pesca no gelo e empurraram a jangada até areia seca. Falaram pouco e se despediram, agradecidos a São Pedro por estarem vivos. Quando Maurino virou as costas, no rumo de casa, Zeca viu na pele do outro um negócio esquisito que só podia ser alucinação. Efeito das ideias mareadas, concluiu, e resolveu não contar a ninguém que um pedaço das costas de Maurino estava coberto por escamas.

No jantar, Maurino não teve fome. Ficou olhando o pai comer enquanto escutava a conversa do mar através da janela. Experimentou tapar os ouvidos com os dedos, mas não adiantou: o barulho das ondas ressoava dentro da caixa craniana. Trancou-se no banheiro com o chuveiro ligado, tentando fugir daquele som, até aceitar que o esforço era inútil.

Sem conseguir dormir e imerso numa espécie de transe, caminhou até a praia e ficou olhando o mar um instante, antes de mergulhar.

Um rapaz que estava na areia jura que viu uma pequena barbatana brotar das costas de Maurino.

*

Zé McGill nasceu no Oregon (Estado Unidos), em 1977, e vive no Rio de Janeiro. Publicou seu primeiro livro de contos, Na barriga do boi, em 2011. O conto acima faz parte da coletânea Fantasmas de carne e osso. Além de escritor, é compositor, tradutor, roteirista e músico