* Por Sérgio Tavares *

Escritores da envergadura do pernambucano Raimundo Carrero, autor de manuais de escrita e vencedor dos mais prestigiados prêmios literários do Brasil, não devem ser lidos na superfície. É imprescindível a atenção do leitor e, sobretudo, a sensibilidade do crítico. Seus livros guardam truques, subtextos, chaves secretas, mesmo os mais magros e aqueles de enredo (aparentemente) simples, de se ler num fôlego só, como é caso desse Colégio de freiras.

A novela, com um pouco mais de 100 páginas, narra a história de Vânia, uma jovem que é despachada para um convento, depois de perder a virgindade. Reprimida por um pai ultraconservador, ela irá descobrir que a instituição funciona aos moldes de uma colônia penal, regida por um padre igualmente tirânico. Ali fica por 20 anos, até que um incidente possibilita sua fuga, levando-a a fundar um tipo bizarro de congregação religiosa, quando outra vez é dominada pelo pai e, desta vez, enviada a um bordel.

Logo de início, já dá as caras a astúcia do autor. O pai se chama Dr. Vesúvio, uma ilustração que representa o temperamento explosivo do personagem no estopim de suas convicções antiquadas. O sujeito entra em erupção ao ouvir a palavra minissaia, por exemplo. Outra manha narrativa está no fato de o texto prenunciar que é um registro biográfico feito por Milena, uma colega de ginásio que nutre um misto de ódio, fascínio e desejo sexual pela protagonista, contudo, no decorrer da trama, a voz de Vânia assume a narração, e depois outras vozes, ocasionando um disfonia que parece sabotar o formato originalmente proposto.

Eis que a própria Milena confessa ter prestado atenção em Vânia depois de uma sessão de Blow-Up – Depois daquele beijo, de Michelangelo Antonioni. E automaticamente a pulga salta para detrás da orelha: por que incluir, numa história passada na Recife dos anos 60, uma menção a um longa em língua inglesa, dirigido por um cineasta italiano? A resposta transcende o filme e se encontra no conto em que foi livremente inspirado: As babas do diabo, do argentino Julio Cortázar.

Está ali, bem na primeira frase, a chave secreta que comanda toda a estruturação do livro: Nunca se saberá como isto deve ser contado, se na primeira ou na segunda pessoa, usando a terceira do plural ou inventando constantemente formas que não servirão para nada.

Carrero emula essa experimentação desarticulada, sobrepondo discursos e nacos de transições temporais, de modo que a linha de acontecimentos do suposto enredo simples só fique realmente nítida ao se chegar ao final da história. Isso requer um domínio técnico muito apurado, pois se confecciona uma história mental inclinada a esgarçamentos, sem que essas saídas narrativas se desprendam do eixo e se tornem meras digressões. O significado de tais descomposturas está inter-relacionado ao estado de consciência da protagonista que, do sagrado ao profano, entra num vórtice de perturbação ao ser violentada por ambos.

O comportamento contraditório, que por vezes é irônico ao explicitar que a propriedade onde era o colégio de freiras é a mesma que, anos depois, abriga o prostíbulo, não anula o caráter agudo e abrangente da infâmia em seu espaço da casa e da rua. A mãe de Vânia, embora subserviente ao marido, dá a minissaia à filha e recomenda que faça sexo anal para não corromper sua castidade. Isabel, uma jovem que chega grávida ao convento, é separada do filho e aconselhada pela madre superior a não lamentar a falta da criança a qual “não se sabe se realmente merece viver”.

Essas circunstâncias alusivas dão conta da complexidade a que constitui o aspecto simbólico: dimensionar, no ato individual dessa mulher oprimida por sua atitude de rebeldia e transgressão moral, todas as mulheres que, durante a história, lutaram contra a repressão, o pensamento retrógrado, machista e abusivo que perdura até os dias de hoje, vide o atual governo brasileiro. Não por menos, a novela é dedicada à vereadora assassinada Marielle Franco.

A ênfase figurativa, no entanto, nem sempre funciona ao se prestar ao comentário social. A congregação inventada por Vânia mistura misticismo, ideais feministas e delírios extraterrestres, talvez como uma forma de o autor ilustrar a luta pelos direitos das mulheres como algo tão destacado da sociedade patriarcal e obtusa, que só pode ter origem em outro planeta. Não é bem colocada e soa como rasa alusão, progredindo para um destrambelhamento bem tosco.

A história de Colégio de freiras é tão forte e terrivelmente comum, que não é preciso olhar para cima para encontrar sentido. Basta observar o passado, o presente e, por mais que movimentos femininos busquem igualdade e resistência, o futuro. O Brasil ainda não superou a minissaia.

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Colégio de freiras, de Raimundo Carrero (editora Iluminuras, 118 páginas)

Avaliação: Bom

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Sérgio Tavares é escritor e crítico literário

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