* Por Lucas Verzola *

A cidade de Flor de Algodão, título do novo romance de Santana Filho, poderia ter saído de uma peça de Dias Gomes. As desventuras de seu protagonista, um engenheiro convocado para assumir as obras da construção de uma represa em época de estiagem e nos é apresentado pousando um teco-teco em pane em pleno largo da matriz logo na primeira cena da obra, certamente seriam muito bem contadas por um Murilo Rubião que resolvesse alongar a sua prosa. Mas o destaque na narrativa de Santana, além das saborosas descrições dos habitantes e dos hábitos da pacata cidadezinha com excelente domínio dos recursos semânticos, é a hábil manipulação do silêncio. Não é uma opção aleatória.

Em certa altura da leitura, quando estamos prestes a vencer a linha imaginária que divide o livro em dois, um trecho de diálogo entre o engenheiro e irmão Deocleciano, seu anfitrião no mosteiro em que é hospedado, revela a tônica da obra: “são os segredos que potencializam a realidade muitas vezes reles”. Parágrafos depois, o engenheiro enquanto narrador completa: “poucas coisas nos tornam tão graves quanto a posse muda de um segredo”. E como é grave a nova obra do autor de A casa das marionetes.

Sem recorrer aos lugares-comuns e às saídas fáceis das histórias de estrangeiros que chegam a vilarejos e se tornam o centro das atenções, o autor consegue, em poucas páginas, criar uma mitologia local, ao mesmo tempo complexa e convincente, alternando a voz narrativa entre a primeira e uma falsa terceira pessoa de acordo com o segredo que deseja guardar. Assim, mantém a tensão da trama no nível ótimo e preserva a potência da obra com delicadeza, como na recorrente metáfora da moça que conserva um arsenal em caixa de porcelana.

Cabe, a esta altura, um parêntese sobre o recurso estético mencionado no parágrafo acima. A alternância da voz narrativa não ocorre de maneira convencional. Pelo contrário: com sofisticação e sutileza, o narrador que aparenta estar na terceira pessoa se revela, na verdade, como um narrador de primeira pessoa, mas do plural. Há um “nós” que representa a própria cidade e seus habitantes e é deles a voz dos capítulos que não são narrados pelo Engenheiro. Tal técnica pode ser observada logo na primeira oportunidade, quando aparece a construção “Amanhecemos de vez.”.

De volta aos segredos, há um em especial que merece nossa atenção: o mistério que antecede a viagem do protagonista. Tal como as relações político familiares do lugarejo e as nuances da personalidade da bela Hortência, o grande trauma do passado do Engenheiro também nos é apresentado por retalhos. Começa com uma menção inocente, quase descolada da narrativa, a um nome nunca antes referido. Passa pela insistência e pela exploração ambígua de sua presença cada vez mais constante, que só faz escancarar o sentimento de estranheza, para enfim desaguar em uma exposição, se não completa, suficiente para a compreensão de que se trata de uma relação eivada pela desobediência de comandos inibitórios.

Até ser plenamente esclarecido, o segredo guarda ares de Raduan Nassar, nosso maior cultivador de silêncios, tão exímio que levou o hábito para a vida além da obra. Quando se releva numa reviravolta imprevisível, porém, é a outro paulista de produção concisa que Santana presta homenagem: Campos de Carvalho.

Entre tão elevadas referências, o autor consegue firmar bem sua voz, ainda que diga mais quando escolha se calar. Para Santana Filho, é isso que os escritores fazem: escarafuncham os silêncios, para que nos sintamos menos solitários num mundo em que há pouca gente os fertilizando.

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Flor de Algodão, de Santana Filho (Reformatório, 288 pags.)

9788566887372

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Lucas Verzola é editor da revista Lavoura

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