Por Paulo Vasconcelos *

Janaína Calaça é dessas mulheres que tem o faro como peixes no olho. Pula ondas e extingue pedras para bordar no abotoado dessas ondas a vida de uma sociedade em crise, em que se oblitera a individualidade. Baiana, formada em Letras (UFBA), jogou-se em São Paulo em 2007 e ganha a vida como revisora numa editora.

Em Obs(cena)s, Editora Patuá, Janaína nos dá uma escrita renovada pop em seus contos sobre o sujeito vitimizado na sociedade. Ela diz: “Não há nada singular que não possa ser substituído”. Uma sociedade que ruma para a massificação constante, apaga as diferenças, e prega, constantemente, que devemos ser iguais para não sermos excluídos e marginalizados.

Com a força da veia saltante da palavra, a autora é segura, sem entrelinhas. Revela-se em seu discurso uma microscopista da vida flagrada no relógio, num corte, num elevador ou nas estradas e espaços por onde passa no seu turismo de mulher vidente (vide o blog sobre viagens que escreve: Jeguiando – http://jeguiando.com/).

Como fala Antonio Laranjeira, no prefácio: “[…] a escritora dramatiza uma reversão de valores frequentemente atribuída ao mundo moderno globalizado: o sexo transborda, “perversões” abundam, e a sentimentalidade do amor se mostra obscena”(Obs(cenas), p.8).

Desde cedo, em Salvador, foi inquieta, atrevida, insultou os homens e as mulheres que não se reconhecem nos outros e se negam à vida, ao sexo e extrapolam limites. É assim em O Elevador:

 […] O nome não importa. Dar nome individualiza demais e ele era apenas mais um que chegava em casa à noite, fatigado, estropiado, com os dedos latejando, depois do aperto no metrô e dos seios de uma mulher peituda roçando suas costas (ele até gostaria, se não ficasse de pau duro e se o pau dele não tivesse se encaixado perfeitamente na bunda de um rapaz invocado. Sabe como é né? Algo como brincar de Lego). Mas como dizia, o nome não importa. Ele é só mais um. É como gado para abate. Não importa se ele se chama Mimoso, o que importa é a carne que ele tem para oferecer. (Calaça, p.16).

A autora tem brilho poético em sua escrita, que se esvai em trechos dos seus contos, dessa memória reinventada, mas que fica com o gozo do imaginário poético puro:

O vidro se partiu, mas os ponteiros continuaram a marcar o tic tac insistente. Coloquei o dedo no lugar onde havia antes o vidro e mexi o ponteiro para trás, como se quisesse ganhar mais uma hora no meu dia. Eu dormiria mais tarde, veria cenas proibidas da novela escondida atrás do sofá, mas só mexi no meu relógio, o tempo de meu pai e de minha mãe continuava intacto e eu não deixei de envelhecer. Não ganhei mais uma hora na vida, nem menos rugas nos olhos, nem menos veias nas mãos, saltando para serem vistas (Calaça, p.81).

E assim, o obsceno não está nas cenas, mas abaixo: “O obsceno dessas páginas não é, enfim, o sexo descrito com minúcias ou a carne que se mostra sem reservas, mas aquilo que está silenciado em cada experiência singular”, como diz Laranjeira.

Em dezessete contos, a autora passeia como numa crônica que baliza o sujeito contemporâneo nessa carga do corpo e numa verdadeira vitimização frente a uma sociedade que não entendeu ainda ser, é um medo de se apresentar a vida num obsceno que tomou forma de naturalizado. Como sintetiza a autora em Entre pernas: “Era um homem-caramujo, voltado para dentro, corpo espremido, medo de viver entre as gentes e de falar quando o assunto era ele.” (Calaça, p.26)

A autora tem a singularidade de crer na vida, fiá-la na palavra limpa e com olhos para apontá-la como se tinge de obscenidades, diante de uma avalanche de pornografias, no sentido baudrillardiano, que o dia a dia em seus estilos burgueses acomete o  homem e o sangra nas suas idiossincrasias.

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Obs(cena)s, de Janaína Calaça (editora Patuá, 124 págs.)

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Paulo Vasconcelos é mestre e doutor pela ECA-USP. Professor de Teoria Literária em universidades privadas e consultor editorial da área de Literatura, além de contista e poeta

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