* Por Vinicius Galera *

Em O reino (Alfaguara Brasil, 2016), o francês Emmanuel Carrère se propõe a investigar as origens do cristianismo refazendo os passos de dois de seus principais personagens, o apóstolo Paulo de Tarso e o evangelista Lucas, considerado também o autor dos Atos dos Apóstolos. Uma informação, porém, é importante: O reino não é um livro histórico, tampouco uma obra de fé. Apesar da formação de historiador do autor, e das inúmeras fontes que embasam a pesquisa, o resultado final, de quase quinhentas páginas, engloba a própria relação de Carrère com a fé cristã. E é isso o que faz de O reino um livro especial.

Estamos no terreno da fé, onde um ex-convertido, escritor e roteirista contemporâneo bem sucedido que agora se declara agnóstico, “sequer com fé suficiente para ser ateu”, tenta entender como a seita obscura que se formou em torno da crença na ressurreição de Jesus se tornou uma das maiores religiões do mundo, acolhendo, ainda hoje, pessoas das mais diversas condições e origens, caso do próprio autor.

Um capítulo inicial vai nos situar. Francês de origem católica, mas não necessariamente um crente, Carrère aderiu de modo fervoroso ao catolicismo já adulto, com profissão estabelecida, em um momento em que vivia uma crise. Passou a ir a missas diariamente, onde comungava e se esforçava para acreditar em dogmas como o da transubstanciação, além de comentar, em dezenas de cadernos preenchidos com anotações diárias, o Evangelho de São João, num esforço constante para reforçar sua fé.

Anos depois dessa fase que o autor julgava superada, a questão voltou a se impor. Por que afinal não o abandonava? É nesse contexto que O reino é escrito. Na dúvida, o livro cresce. Por que Paulo, que não conheceu o Jesus histórico, teve tanta relevância no cristianismo a ponto de muitos atribuírem a ele, e não a Jesus, a fundação da religião? O que Lucas, um desconhecido médico macedônico, viu em Paulo que tanto o cativou a ponto de decidir fazer, ele sim, uma história do Cristianismo (é sempre oportuno lembrar que os Atos são a segunda parte de seu evangelho)?

Questões como essa vão nos levar ao ambiente em que se desenvolveu a igreja primitiva, onde Paulo, um personagem fascinante e controverso, difundia uma mensagem do amor e defendia a não necessidade da observação, pelos cristãos, dos costumes judaicos, atitude vista com desconfiança pela comunidade formada em torno do herdeiro da mensagem de Jesus, seu irmão Tiago, que vivia em Jerusalém. O autor mostra como o evangelho (a “boa nova”, não os livros que hoje conhecemos) foi ganhando adeptos no mundo helenizado romano a partir de diferentes centros irradiadores no Oriente Médio e na Europa.

Um dos aspectos que chamam a atenção no livro é que, ainda que comente a tendência contemporânea dos estudos bíblicos que entendem os evangelhos como obras produzidas por comunidades que seguiam os ensinamentos ou as palavras originais do evangelistas clássicos, Carrère procura demonstrar que os autores do Novo Testamento, com exceção talvez de Mateus, são, de fato, os responsáveis pela redação das obras. E pelo menos um deles, Lucas, movido pela intenção de fazer uma obra histórica e ainda que não fosse “um investigador moderno”, recorreu a pesquisas, depoimentos e, por que não, à sua própria imaginação para narrar a vida de Jesus e dos apóstolos.

E assim como Lucas, o autor procura preencher as lacunas que os estudos não preencheram, propondo situações que, se não foram reais ou históricas, bem poderiam ter sido. Essas sugestões, que em muitos casos chegam a ser comoventes, enriquecem a narrativa e nos convidam a pensar em como os livros poderiam ter sido escritos. Em como os livros são, de fato, escritos.

O procedimento não é novidade, é tão antigo, aliás, quanto Heródoto. E Ernest Renan, um dos guias de Carrére nessa empreitada, já propusera o mesmo quando, no século XIX, se aventurou a contar a história do cristianismo em sete longos volumes. Falando para um público muito mais abrangente, em um momento em que o mundo civilizado parece respeitar mais a tradição do que a mensagem cristã, o autor atualiza questões antigas e quase bizantinas cujas versões oficiais podem, e disso nunca saberemos, ter suplantado os fatos que deram origem a elas.

No fim, descontado o sagrado, estamos diante de homens que, movidos pelas suas crenças, erigiram um dos maiores acontecimentos da História. Em um momento, citando um posfácio de Marguerite Yourcenar a suas Memórias de Adriano, o autor enaltece os bastidores, a construção, a apresentação da estrutura como algo mais interessante do que a obra pronta, acabada, feita para parecer que sempre esteve ali. É disso, em suma, que trata o livro. “Prefiro o esboço ao quadro grandioso”, ele diz. Por isso a presença de Carrère é tão importante no relato. No fim, a fé é uma questão unicamente pessoal e a vida, em todo caso, é diferente da obra. Essa pode ser uma das chaves para a compreensão de O reino.

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O reino, de Emmanuel Carrère ((Alfaguara Brasil, 462 págs.)

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Vinicius Galera é mestre em literatura brasileira e autor do romance Linha verde (Pasavento, 2015).

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