* Por Estevão Azevedo *

Dramaturgo célebre, Jerônimo Brickman usufrui na velhice os benefícios da bem sucedida carreira e da indenização recebida do Estado por ter sido perseguido durante o regime militar brasileiro. No apartamento do bairro de Higienópolis, em São Paulo, o cansado ex-revolucionário pode agora dedicar-se apenas a projetos, digamos, menos engajados ou artísticos.

É ao redor dessa intrigante figura do intelectual em seu ocaso que vai girar Do outro lado do rio, romance de estreia de Robson Viturino. O corpo arredondado e prostrado dessa estrela em extinção ainda emite brilho suficiente para atrair à sua órbita elementos bastante interessantes. Entre admiradores e aproveitadores, destacam-se Samara, sobrinha a cargo do patrimônio e do batalhão de funcionários e convidados; Zeca, economista e habitué dos rega-bofes; e uma jornalista obcecada por escrever o obituário do “anarquista de bengala”, a jovem Nina, cuja família humilde e de origem nordestina compõe o necessário contraponto ao universo faustoso da elite paulistana.

Na contramão de uma tendência da literatura contemporânea brasileira, que elege o “não lugar” como cenário, em Do outro lado do rio a imagem da cidade real, as artérias entupidas de São Paulo e seus topônimos são as fundações do edifício ficcional. No sincretismo caótico que há em toda megalópole reside uma das forças do romance.

Se Nina pensa que “não havia lugar para se sentir tão abandonado e desligado do mundo dos afetos quanto São Paulo, às margens do rio Tietê”, onde “tudo parecia gritar desesperadamente por um novo metro quadrado na Terra”, é porque o livro pretende — e logra — dar conta a seu modo de uma transformação urbana e de um momento histórico umbilicalmente ligados entre si e às vidas das personagens. Ao crescimento da riqueza do país, que permitiu a mobilidade social mas relegou ainda muitos à miséria, corresponde outro índice, nomeado por um dos protagonistas de Desespero Interno Bruto.

Além de trazer de forma crítica os reflexos da euforia econômica (recentemente frustrada) das últimas décadas nas paisagens de São Paulo, passando por especulação imobiliária, degradação urbana e ambiental, migração e preconceito, o autor põe em cena os dilemas de uma geração que lutou, muitas vezes ao custo da própria vida, pela redemocratização, mas que, uma vez no poder, pareceu incapaz de responder aos novos problemas com as ferramentas das antigas ideologias. Mais importante que essas discussões, porém, é a qualidade do texto, que dá conta de tudo isso com linguagem precisa e, algumas vezes, um toque de tragicomédia. Enfim, belo romance de estreia que aponta um autor que veio para ficar.

*

Do outro lado do rio, de Robson Viturino (editora Nós, 192 págs.)

*

Estevão Azevedo é escritor, autor de Tempo de espalhar pedras, entre outros

Tags: