Por Sérgio Tavares *

Passado um ano do fim da Copa do Mundo no Brasil, um evento marcado por manifestações populares, superfaturamento na construção de estádios, vaias retumbantes para a presidente da República, o que ficou mais latente no imaginário coletivo foi a goleada vexatória sofrida pela seleção brasileira para a Alemanha.

Mas o torneio de futebol de 2014 teve muito mais que isso; outros ângulos, cenas de percepções particulares, detalhes significativos que acabaram obliterados pela grandiosidade do espetáculo mundial.

Apaixonado justamente pelo acontecimento, o redator publicitário e escritor João Vereza, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura com a antologia de contos Noveletas, começou a escrever pequenas crônicas que capturassem o clima, o dia a dia, o desempenho dos jogos e das seleções, as quais eram publicadas regularmente na Fanpage do livro. Logo tinha uma coletânea pronta, que agora, com o projeto visual do premiado designer e diretor de arte Luter Filho, acaba de virar a revista eletrônica “Croniquetas da Copa”. Leia aqui.

O projeto também acabou reaproximando Brasil e Alemanha, já que Luter mora em Berlim há pouco mais de um ano. Assim, em virtude do lançamento, a SP Review decidiu aprontar, na literatura, a revanche que o futebol nunca irá proporcionar. Nessa entrevista, fizemos sete perguntas para Vereza e uma para Luter. A bola agora está com vocês, leitores.

João Vereza

A ideia das Croniquetas surgiu mais do amor à literatura ou ao futebol? Dos dois. A primeira fase da Copa eu estava em casa, sem trabalhar. Pura e simplesmente acompanhando tudo. E a Copa começou como uma explosão de surpresa. Logo no segundo dia tivemos aquela goleada fabulosa da Holanda em cima da Espanha. Antes da Copa, havia aquele clima pesado e modorrento no ar, o do ‘não vai ter Copa’. Mas isso era um sentimento só da população brasileira. Ninguém avisou isso às seleções ou aos torcedores internacionais. Essa goleada histórica nos mostrou isso: a Copa estava aí, estava acontecendo e começou mais do que espetacular. Aí que, para mim, entrou a literatura. Pelo meu isolamento em casa, a maneira que encontrei de participar da festa foi escrever no Facebook. Desabafo, um grito no estádio, mas usando minhas ferramentas e minhas habilidades. Eu nem sou um aficionado pelo futebol. Eu sou apaixonado pela Copa. Tem algo de místico, de universal, de monumental, de ‘para tudo e vamos ver esse jogo’, do planeta inteiro junto e ligado no mesmo momento. Quando a Copa arrebentou, eu participei escrevendo.

Isso é realmente nítido durante a leitura: esse olhar que está dentro de campo, mas que também vasculha além dos gramados. Qual eram suas expectativas para a Copa, o evento marcado por manifestações populares, e para a seleção de futebol, com a famigerada vantagem de jogar em casa? Minhas expectativas para a Copa eram as mínimas e máximas possíveis. Mínimas por causa do clima chato do ‘não vai ter Copa’. O povo não aderiu, porque ninguém acreditava. Ninguém pintou as ruas ou fez aquela preparação clássica. Quando a Copa começou, a gente via pouquíssimas bandeiras nas janelas e nos carros. Acredito que era mais um sentimento de desconfiança do que expectativa. Nosso país é politicamente muito maltratado (auto maltratado, eu diria), então os sentimentos estavam todos misturados. Brasileiro é louco por Copa – eu sou um deles. Mas uma coisa é ir na festa na casa dos outros, outra é fazer festa para receber as pessoas em casa. Essa tensão do anfitrião é até normal e compreensiva, o desejo de que dê tudo certo, o medo de passar vergonha com os convidados. Havia algo, porém, bem incipiente ali: o álbum da Copa. O negócio cresceu de tal forma que o país, pelo menos Rio e São Paulo, havia rodas de trocas de figurinhas em tudo quanto era lugar. Inclusive, a primeira Croniqueta nasceu dessa percepção. Uma Croniqueta que não entrou na edição final, mas mando aqui como um ‘extra’:

Ontem fui ao shopping trocar figurinhas da Copa.

Uma penca de gente reunida espontaneamente.

Sem espaço demarcado, sem organização corporativa, sem patrocínio de marca ou ONG, sem ter marcado eventinho no Facebook.

Pais e filhos, crianças soltas, casais e solitários.

Uma mãe ia de rodinha em rodinha perguntando quem tinha a 376 – a única que faltava pro filho completar o álbum.

Um moleque viu que eu tinha a única que faltava pra ele e saiu de lá com sorriso daqui a aqui.

Nada de mesquinhez ou ganância; na troca, ninguém liga muito se você pegar mais figurinhas.

Nessa nossa Copa tão politizada e conturbada, tão cheia de críticas justificadas e revoltas mais do que bem vindas, o que eu não quero é esquecer o futebol.

Inglaterra x Itália, Espanha x Holanda e Alemanha x Portugal só na primeira rodada, sim, primeira rodada.

Porque a Copa não é um comentário pra lá ou pra cá no Facebook, não é porradaria entre PM e Black Block, não é a cara cretina da politicagem que falhou na organização nem a cara de bunda do povo que aplaudiu quando ouviu a notícia mas não se tocou da vergonha inevitável.

A Copa é esse mercadão de figurinhas e corações abertos.

É a alegria do moleque que completou o álbum e a minha por ter ajudado.

Que não vai ter Copa o quê!

05/05/2015

Você consegue fazer alguma relação entre o contexto sociopolítico na ocasião da Copa e a atuação pífia da seleção brasileira? Acredito mais nas manifestações da Copa das Confederações, em 2013. Os protestos nas ruas reverberaram, de certa forma, nos hinos das arquibancadas e isso acabou inflando a seleção. Eles responderam na bola ao clima de agitação das ruas. Como se tivessem uma certa responsabilidade com aquele sloganzinho mequetrefe do ‘o gigante acordou’. Claro, também: o Brasil voou na Copa das Confederações porque foi a única seleção que levou o torneio a sério. Na copa, em 2014, a atuação foi pífia porque tudo, vendo agora que sabemos o final da história, foi pífio desde o início. Começando com a escolha do Felipão, os treinamentos, a glamourização, o excesso de exposição. O presidente da CBF na época da Copa hoje está preso por corrupção – precisa mais do que isso? Mas é justamente nisso que está um dos aspectos mais interessantes das Croniquetas. Elas foram todas escritas no calor do momento, em tempo real. Refletem o zeitgest do torcedor. Exemplo disso são as Croniquetas antecedendo ao 7×1. Uma delas faz um elogio rasgado e homérico ao David Luiz, o zagueiro que viria a ser a encarnação do destempero que levou a derrota histórica. A graça dessa publicação é essa: é um diário, um registro do microcosmo do presente. A crônica não pode, e nem deve, ser reescrita, porque o fim de toda a história foi um desastre.

Exatamente isso que iria lhe perguntar: passado um ano, qual foi o seu olhar de leitor sobre os textos? Foi duro voltar a esses relatos, na condição de escritor ou de torcedor? O que mais me doeu mesmo foi ter lido a Croniqueta seguinte à derrota do 7×1. Eu menciono minha avó Lucy, na época minha única avó viva. Hoje, infelizmente, ela faleceu. No mais, reler as Croniquetas foi um exercício saudoso e muito divertido. É muito curioso ler, principalmente, as Croniquetas entre os jogos da Colômbia e da Alemanha. Tem ali um desabafo bem esculachado sobre a lesão do Neymar, uma crescente inocente de fé, pura fé na seleção. Depois do 7×1, a vontade claramente murchou. Tanto que a última Croniqueta é um texto mais leve e inspirador, um agradecimento a todos os sentimentos que a Copa proporcionou. Isso que é muito interessante: para quem realmente é apaixonado por Copa, a Copa no Brasil foi uma época extremamente única, indescritível. E as Croniquetas funcionam como um registro diário do torneio. Um amigo fez o seguinte comentário: ‘É divertido ler (as Croniquetas) agora, relembrando coisas que aconteceram e desmanchando algumas previsões furadas.’ Aí é que tá: as Croniquetas não analisavam tecnicamente os jogos e as seleções, nem tentavam prever resultados. Eram simplesmente mais um grito nos estádios.

Você é autor de uma antologia de contos premiada, cujo teor e arroubo narrativo deixam bem claros suas influências ficcionais. Como cronista, de onde se origina esse olhar para a vida cotidiana, para aquilo prosaico que se revela ao abrir a janela? O olhar é sempre o mesmo. Um olhar que está a todo momento procurando a beleza, o interessante, o curioso, o diferente, aquela coisa misteriosa da literatura. A diferença é que o escritor de ficção guarda o que vê para usar mais tarde, de uma forma  um pouco mais digerida, inconsciente, disfarçada até, já que a essência da ficção é a invenção. O cronista rebate o olhar na hora, sem muitas digressões ou transformações. A Copa foi um buffet para esse olhar. Eu acompanhei a Copa em São Paulo e no Rio. Moro na Vila Madalena, então vi aquela bagunça toda de perto – até mais de perto do que eu queria. Eu vi uma sala de embarque de aeroporto com pessoas de várias nacionalidades de olho no mesmo telão. Passei rapidamente por Copacabana e pude ver onde estava um dos corações da festa. A Copa simplesmente me pegou, me arrebatou. Minha ficção é construída lentamente, as histórias e os personagens vão nascendo em fogo baixo. A crônica foi o gênero rápido e certeiro que encontrei para responder a tudo aquilo da Copa em tempo real.

Tratando exatamente desse limite entre realidade e invenção, se você dispusesse de uma ferramenta ficcional, o que mudaria na história dessa Copa? Absolutamente nada. A derrota do Brasil foi de dar inveja às melhores e mais bem escritas tragédias. Não existe dramaturgo ou ficcionista no mundo que consiga escrever um enredo tão dramático, uma narrativa tão bem engendrada como foi a performance do Brasil na Copa. O 7×1 é um marco histórico, cívico, social. Devia ter o Dia do 7×1, um feriado nacional. Ser ensinado nas escolas, cair nas provas. O jogo devia ser reprisado toda segunda feira de manhã, em rede nacional de rádio e TV, para que os brasileiros lembrem e saibam: jeitinho brasileiro não existe. Nada se ganha na marra ou no talento divino. Tem que se esforçar, que ralar. A realidade tem que ser aceita e respeitada. Chega dessa dissimulação do brasileiro de acreditar e agir como se fôssemos um povo especial por natureza.

O que é perder de 7X1 na literatura? Desistir.

Luter Filho

Como é ser brasileiro, na Alemanha, antes e depois do 7×1? ‘Oh… I’m sorry’. ‘No sorries, man. It’s soccer!’.  Eram mais ou menos assim meus diálogos com os alemães por volta dos 7×1. Foi constrangedor pra nós, pra eles e acho que pro mundo inteiro também, né? Como brasileiro e apaixonado pela lógica ‘calma que vai dar certo’, achei essa goleada um recado extremamente necessário para que todos nós aprendamos também o ‘calma que não vai dar certo’. Esse positivismo brasileiro automático – que eu amo – e que tanto nos lança anos-luz a frente de muitas nações em determinadas áreas, é o mesmo que não nos deixa observar o negativismo que existe – e que são muitos. Aí não nos preparamos. Aí perdemos. E se continuar assim, vamos continuar anos-luz atrás de muitas outras nações em tantas outras determinadas áreas. Acredito que no dia em que todos nós assumirmos também essa nossa característica, conseguiremos evoluir enquanto nação. Também acredito que o 7×1 foi o pontapé inicial desse raciocínio para todas as camadas sociais. Espero que sim. Ser brasileiro só ficou mais interessante.

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Sérgio Tavares é autor de Queda da própria altura, finalista do Prêmio Brasília de Literatura, e Cavala, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura

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