É com tristeza que a São Paulo Review inicia hoje série colaborativa, entre mais de 30 escritores nacionais bastante conhecidos do público, com homenagens às crianças assassinadas em tiroteios nas comunidades cariocas.

Cada autor escreve sobre uma das crianças vítimas da barbárie. Os textos serão publicados de forma anônima, para não fazermos show off em cima da dor, e também como forma de protesto.

Os nomes das crianças homenageadas podem ser mencionados ou não. Asseguramos a qualidade do teor literário dos trabalhos e assim gritamos bem alto com a arma que nos cabe, a da palavra, contra a violência a que estamos vivendo.

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Quatro balas se perderam no corpo de Maria Eduarda, uma jovem de treze anos. Temos de mudar a narrativa, isso de “bala perdida” tem limite. Quatro? Francamente. Se não foi massacre — apenas a perversidade justificaria uma coisa dessas, haja vista que uma inocente morta não melhora a imagem da polícia ou do tráfico —, então o Estado, na sua representação militar, está despreparado.

Defendo minha afirmação mesmo que os tiros não tivessem saído das armas dos policiais (embora contra eles pesasse, desde o início, o fato de, numa imagem reproduzida à exaustão, terem atirado em dois homens caídos, naquele momento, indefesos). Eles trocaram tiro com traficantes no entorno de uma escola. Errado. Porta de escola não é lugar para isso, o Estado, pela vida das crianças, tem de saber se retirar, ser covarde, fugir da briga. Não é com policial valente, incapaz de suportar provocação, que serão resolvidos os problemas relacionados à violência urbana.

Maria Eduarda está morta. João Pedro, o garoto que foi arrastado pelas ruas do Rio de Janeiro, em 2008, está morto. Aqueles rapazes que estavam num carro alvejado por cento e onze tiros estão mortos. E há outro monte de meninos e meninas cujas vidas foram interrompidas porque se decretou que a questão das drogas se resolve assim, no tiro. Não é um detalhe menor, ao contrário, é fundamental o fato de a maioria dos mortos ser negra. Crianças negras: destino das balas (elas, sim, sempre) perversas e certeiras.

(Como os políticos angariam votos nas áreas ocupadas por traficantes e/ou milicianos? Como as armas chegam ao exército do tráfico ou ao escritório limpo dos milicianos? Se a gente pergunta essas coisas, fica no vácuo, fica a ver navios, até espaçonaves, e a mascar o fel que toma a boca do intrometido.)

Maria Eduarda está morta. Eduardo, menino de dez anos que brincava à porta de sua casa no Complexo do Alemão, está, desde 2015, morto. O Estado, quando muito, banca um enterro digno às vítimas, mesmo se não reconhece ter sido o agente da morte. Os pais dessas crianças, quase todos agarrados à pobreza, maltratados pelo preconceito racial, vão viver ainda em piores condições do que viveram até o trágico dia no qual seus filhos morreram.

Leio no jornal que um advogado conseguiu que o Estado pague o tratamento psicológico ou psiquiátrico de um ou outro, e isso já é uma vitória e tanto, pois o Estado, de mãos lavadas, só se preocupa em limpar as armas para matar mais. Mesmo quando não mata, o Estado mata, pois sua política em relação às drogas é a guerra. A guerra às drogas foi uma decisão datada, mas nós, brasileiros, não temos nos debruçado sobre essa questão e revisto nossa estratégia. Se, no início, não foi um erro — o mundo, em particular os Estados Unidos, agia assim, parecia razoável —, agora que sabemos tanto sobre as drogas, agora que o balanço desses anos todos é um número de mortos impensável, agora é.

O governo municipal, responsável pelas escolas, planeja blindá-las, querendo com isso desbloquear o território para as balas, ainda que, como discurso ou até mesmo como boa intenção (de novo), se diga que o intuito é preservar a vida dos alunos. Será que o Estado vai construir túneis blindados para garantir o ir e vir dos alunos? Pensa-se mal, às vezes com açodamento, noutras com desfaçatez e noutras com pressa e sem vergonha na cara.

Hosana Sessassim, 13 anos, está morta. Sim, já é outra, morta dias depois de Maria Eduarda, enquanto andava pelas ruas de seu bairro, Acari. Pelo que se sabe, a polícia não estava por perto, mas Hosana é outra vítima da mesma guerra.

* anônimo *

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