É com tristeza que a São Paulo Review inicia hoje série colaborativa, entre mais de 30 escritores nacionais bastante conhecidos do público, com homenagens às crianças assassinadas em tiroteios nas comunidades cariocas.

Cada autor escreve sobre uma das crianças vítimas da barbárie. Os textos serão publicados de forma anônima, para não fazermos show off em cima da dor, e também como forma de protesto.

Os nomes das crianças homenageadas podem ser mencionados ou não. Asseguramos a qualidade do teor literário dos trabalhos e assim gritamos bem alto com a arma que nos cabe, a da palavra, contra a violência a que estamos vivendo.

***

Minha mãe, não chore por mim!

Sei que você não mais me ouvirá

Os vagidos, o choro, as palavras.

Minha mãe, não chore…

Pense no que me esperava: nascer

Sem mais nada que seu amor…

Não numa sala de parto,

Mas num corredor de hospital,

Talvez mesmo no chão gelado.

 

Minha mãe, não chore por mim!

Sei que jamais sentirei,

Em minha boca faminta,

O gosto ralo de seu leite.

Minha mãe, não chore…

Pense que você havia de se afligir,

Com o medo dos mosquitos

Com a sanha dos ratos

Saindo dos esgotos entupidos,

Temendo por minha saúde.

 

Minha mãe, não chore por mim!

Morri de um único tiro,

antes das bofetadas que a vida me daria.

Morri de apenas um golpe

Sem dormir na pedra fria, nas calçadas.

Morri de uma só violência,

E fui poupado daquelas

Que, de tão cotidianas

já não espantam ninguém.

 

Minha mãe, não chore por mim!

Chore por aquelas crianças

Vivendo entre os carros parados

Vendendo balas nas esquinas

Fazendo malabarismos,

Levando cascudos,

Sendo humilhadas

Sem direito à escola

Sem direito a roupa nova,

Sem sapato bonito

Pra festa de aniversário

Que nunca terão.

 

Minha mãe, não chore por mim!

Chore pelos adolescentes

Que vão trabalhar pro tráfico,

Que se viciam em crack, em cola

Que se vendem por trocados

Para não morrer de fome.

Que revoltados, reagem

Quando são apanhados por brutos

Que os acorrentam aos postes,

E tatuam as suas testas

Punindo-os pelo crime –

já que viver é um crime…

 

Minha mãe, não chore por mim!

Chore por todos aqueles

Que sobreviveram

apesar de condenados

E que, adultos, agonizam

Em abomináveis vagões

(de carga)

em conduções

(de carga)

amontoados, no calor,

sacolejados

(como carga)

Levados como animais

para trabalhos mal pagos

onde serão tratados

não como gente decente,

mas como escória.

 

Minha mãe, não chore por mim!

Chore pelos velhos

Que, com os pés cansados

E as costas curvadas

Tossem suas misérias

Sem ter quem lhes ofereça

Um pouco de pão,

Uma comida macia

que seja fácil de mastigar

Os dentes, sem cuidados,

Já se foram.

Os olhos, abatidos,

Já não veem o rosto

Daqueles que zombam e

Que sentam nos lugares

Reservados

E fingem dormir.

Minha mãe, não chore por mim!

Chore por você mesma,

Por não ter direito aos sonhos

E não poder sonhar com os direitos

Já que você nasceu mulher

Numa sociedade machista.

Chore por nossa pátria,

Nada gentil,

Que sangra sem reagir,

Que se esvai em palavras hostis,

Que se desmancha em dedos

Apontados,

Furiosos,

Raivosos,

E, violentos,

Apertam gatilhos

E nos matam, a todos,

Com uma só bala.

                                 * anônimo  

 

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