Por Lívia Nunes

Concórdia

Tenho um sonho recorrente desde a infância: em um momento de tensão ou de perigo, tento correr e não saio do lugar. Parece que a força da gravidade é potencializada, e sou atraída, como que por um enorme ímã, para baixo. É uma sensação muito ruim, e sei de mais gentes que compartilham essa aflição, que têm esse mesmo pesadelo.

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Não tenho a pretensão de interpretar essa imagem onírica. Só a evoquei porque, às vezes, de olhos abertos, me sinto assim, presa ao chão.

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Aprecio a capacidade de o ser humano adaptar-se a tudo – ou a quase tudo. É questão de sobrevivência. Não se trata de festejar até os momentos ruins, mas de contorná-los, de se libertar de amarras para vislumbrar o horizonte. O perigo é quando, durante o processo de adaptação, a pessoa se acomoda, se acostuma a uma situação desconfortável. E então vem a impressão do pesado, do atado, do colado. Da clausura. O ser humano encerrado em si.

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Estabelecemos com o mundo – e com o outro – uma relação de troca. E esse bloqueio, que supomos individual, obstrui as vias, causando desequilíbrio, desarmonia. Para nós e para o todo. Persistir nessa situação é, mais que inépcia, de um egoísmo atroz. Sofro eu, sofre você, sofremos nós.

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Nos últimos tempos sinto que preciso cuidar das minhas energias, que estão meio bagunçadas. Vezenquando esses ajustes podem ser radicais. Você vai mesmo manter aquele que só extrai, e nada devolve, na sua vida? Vai lamentar para sempre o não feito e se recusar a enxergar o que está por vir? Admitir o erro é o primeiro passo para a redenção, amigo. E aí: vai continuar descompensado até quando?

… o corpo humano também é um sistema organizado, está vivo enquanto se mantém organizado, e a morte não é mais do que o efeito de uma desorganização…”

José Saramago em Ensaio sobre a cegueira

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Direção

– Relaxe, mãe. Essa é frase que mais tenho dito nos últimos tempos, no melhor estilo “faça o que eu digo, não faça o que eu faço.”

Integrante de uma geração que vivenciou – mas não viveu – a liberalização sexual, as viagens lisérgicas e tantas outras revoluções que seguem transformando o mundo, a Diva faz o impossível para quebrar a resistência diante de tantos assuntos – mas uma hora a estrutura balança. Namoro de muitos, muitos anos, filhos só depois de casada, tudo nos conformes de então, hoje ela se vê, ao lado do Flávio, na ponta de uma família com crianças fora do casamento, filhos casados não oficialmente e não casados com filhos. A maioria dentro de sua casa. Passa noites em claro velando o sono de netos febris, num momento da vida em que deveria apenas curtir a parte boa de ser avó.

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C’est la vie. E ela ama. Mas anda tendo muita dor de cabeça, preocupação dobrada e a sensação de que está perdendo o controle da situação. Aí é que entro com meus ensinamentos de autoajuda, talvez para aliviar a culpa: ninguém tem o controle de nada, mãe. Ninguém controla o leme da vida. Da própria e de nenhuma outra. Temos a ilusão – e é só mesmo uma ilusão – de que somos responsáveis por nossos caminhos, de que podemos programar nosso destino. Não podemos. A gente até toma decisões, mas essas escolhas são ínfimas se olharmos o todo. Somos pó. E ao pó voltaremos. A “Bíblia” diz isso, não é?

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Vou crescer, me casar, me formar em Direito e morar em casas conjugadas, eu e minhas melhores amigas. Esses eram meus planos quando eu tinha 5 anos de idade. Eles mudaram muito no decorrer do tempo, e nenhum deles, nenhum, se concretizou. Porque, no meio do caminho, você descobre que aquele emprego tão almejado traz mais angústias que realizações; porque alguém vai embora; porque um coração para. Porque uma onda gigante e silenciosa passa tragando tudo e todos pelo caminho, nas férias paradisíacas dos gringos ricos nos países de terceiro mundo.

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É praticamente impossível estarmos vivos. Sob qualquer ótica, religiosa ou científica. Contraria a lógica. Se foi Deus quem escolheu nos criar, a sua imagem e semelhança, e nos tornar os únicos – que improvável! – seres deste tipo no universo conhecido, thank you, God! Por outro lado, se, num golpe de sorte, o nada explodiu e cá estamos nós, gás e poeira cósmica, pensando, amando, construindo uma história, é nossa obrigação retribuir. Vivendo. Não transformando coisas ínfimas em problemas. Não desqualificando o outro porque não conseguimos lidar com nossa própria insignificância. Sem muitos dramas. Porque eu digo, e repito, e repito: é curta e boa, esta vida. Há sofrimento; então, que não soframos por antecipação. O bom é aproveitar ao máximo esse intervalo rumo ao desconhecido.

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Lívia Nunes é jornalista e escritora