Em agosto de 1843, Herman Melville (1819-1891) embarcou na fragata USS United States, em Honolulu, no Havaí. Ele trabalhara em barcos baleeiros, e, aos 24 anos, engajava-se como marinheiro do navio de guerra considerado o mais rápido da frota americana da época. A experiência como marujo durou 14 meses, marcou o fim do seu período de aventuras marítimas e o inspirou a escrever, em 1850, o livro Jaqueta branca ou O mundo em um navio de guerra – que antecedeu sua obra mais conhecida, Moby Dick. Inédita no Brasil, a obra é lançada pela Editora Carambaia com a tradução de Rogério Bettoni. Leia trecho inédito hoje na SPR. 

* Por Herman Melville * 

Hoje em dia, é quase uma negligência limitar-se à mera denúncia de uma iniquidade. Que nossa tarefa então seja diferente.

Se existem três coisas opostas ao gênio da Constituição dos Estados Unidos, são elas: a irresponsabilidade de um juiz, a autoridade arbitrária sem limites do poder de execução e a união de juiz irresponsável e poder de execução ilimitado numa mesma pessoa.

Contudo, em virtude de uma disposição do Congresso, todos os comodoros da Marinha americana podem responder pelas três acusações, no que se refere à punição dos marinheiros por supostas contravenções particularmente não especificadas nos Artigos de Guerra.

Eis a disposição:

XXXII. Dos Artigos de Guerra. – “Todos os crimes cometidos por pessoas da Marinha, não especificados nos artigos precedentes, devem ser punidos de acordo com as leis e os costumes marítimos para tais casos.”

É esse artigo que, mais que qualquer outro, coloca o açoite nas mãos do capitão, exime-o de explicar seu uso e lhe dá amplos poderes de submeter o marinheiro comum a atos de crueldade que, para os homens de terra firme, seriam praticamente inacreditáveis. Por esse artigo, o capitão se faz legislador, bem como juiz e executor. Até certo ponto, ele permite que o capitão julgue a seu critério o que deve ser considerado crime e o que merece punição, se uma pessoa acusada é culpada das ações que ele considera criminosas, e como, onde e quando a pena deve ser infligida.

Na Marinha americana, existe uma suspensão permanente do habeas corpus. Se houver uma simples alegação de má conduta, não há lei que proíba o capitão de prender um marujo e mantê-lo confinado a seu bel-prazer. Enquanto eu estive no Neversink, o capitão de uma corveta americana, sem dúvida por uma rixa pessoal, manteve um marinheiro preso no buque por mais de um mês.

Certamente as necessidades das marinhas exigem para seu governo um código mais rígido do que a lei que governa a terra, mas esse código deveria estar em conformidade com o espírito das instituições políticas do país que o promulga; não deveria converter em escravos alguns dos cidadãos de uma nação de homens livres. Tais objeções não podem ser feitas contra a Marinha da Rússia (não essencialmente diferente da nossa), porque as leis da Marinha americana, ao concentrarem todo o poder na pessoa única do capitão e conferirem-lhe a autoridade de açoitar, têm o mesmo espírito que as leis territoriais da Rússia, que é governada por um autocrata e cujos tribunais infligem o cnute[1] aos súditos do país. Mas conosco é diferente. Nossas instituições se dizem baseadas em princípios de igualdade e liberdade política. Apesar disso, a condição de bordo de um marinheiro de guerra americano não mudaria nada se ele fosse transferido para a Marinha da Rússia e convertido em súdito do czar.

Como marinheiro, não goza de nenhuma de nossas imunidades civis; em nenhum aspecto a lei da nossa terra acompanha as madeiras flutuantes que nela cresceram e às quais ele se agarra como se fossem sua casa. Para ele, nossa Revolução foi em vão; para ele, nossa Declaração de Independência é uma mentira.

Talvez não se tenha suficientemente em conta que, embora o Código Naval esteja sujeito à lei marcial, em tempos de paz e nas mil questões que surgem entre homem e homem a bordo de um navio, esse código, até certo ponto, poderia apropriadamente ser considerado municipal. Com uma tripulação de oitocentos ou mil homens, um navio de três conveses é uma cidade no mar. Mas, na maioria dessas questões entre homem e homem, o capitão, em vez de ser um magistrado, aplicando o que promulga a lei, é um governante autoritário que faz e desfaz as leis do jeito que quer.

Veremos que o Artigo XX dos Artigos de Guerra estabelece que, se qualquer pessoa na Marinha executar de maneira negligente as tarefas que lhe são atribuídas, deverá sofrer a punição determinada por um conselho de guerra; mas, quando o infrator é um soldado raso (marinheiro comum), ele pode, a critério do capitão, ser agrilhoado ou açoitado. Não é preciso dizer que nos casos em que um oficial viola trivialmente essa lei nunca ou quase nunca um conselho de guerra é convocado para decidir a questão; já o marinheiro é imediatamente condenado ao chicote. Desse modo, um grupo de cidadãos do mar fica isento de uma lei que paira pavorosamente sobre outros. O que pensariam nossos compatriotas de terra se o estado de Nova York aprovasse uma lei contra algum delito, fixando uma multa como pena, e depois acrescentasse a essa lei um artigo restringindo sua aplicação penal aos artífices e trabalhadores diaristas, deixando de fora todos os cavalheiros que recebem renda de mil dólares? Não obstante, é com esse espírito que se aplica boa parte das leis navais a que se referem as flagelações.

Mas uma lei deveria ser “universal” e incluir em sua possível aplicação penal o próprio juiz que profere a sentença, ou melhor, o próprio juiz que a interpreta. Tivesse sir William Blackstone violado as leis da Inglaterra, teria sido levado aos tribunais que ele mesmo presidiu e lá teria sido julgado, com um promotor que talvez leria para ele trechos de um exemplar de seus próprios Comentários.[2] E, se considerado culpado, teria sofrido como o mais desprezível dos súditos, “conforme a lei”.

O que acontece numa fragata americana? Basta-nos um exemplo. Segundo os Artigos de Guerra, especialmente o Artigo I, um capitão americano pode, e com frequência o faz, infligir pena severa e degradante aos marinheiros, enquanto ele mesmo se isenta o tempo todo da possibilidade de sofrer desgraça semelhante, e muito provavelmente se isenta de sofrer qualquer tipo de punição, mesmo que seja culpado da mesma infração – como uma briga com seus iguais – pela qual ele pune o outro. No entanto, tanto marujo quanto capitão são cidadãos americanos.

Ora, usando novamente as palavras de Blackstone, existe uma lei “tão antiga quanto a humanidade, ditada pelo próprio Deus, superior em obrigação a qualquer outra, e nenhuma lei humana tem valor se a ela for contrária”. Essa lei é a Lei da Natureza, e entre seus três grandes princípios Justiniano inclui o de que “a cada homem se dará o que lhe é devido”. Mas temos visto que as leis envolvendo flagelação na Marinha não dão a cada homem o que lhe é devido, visto que em alguns casos elas excluem indiretamente os oficiais de quaisquer punições, e em todos os casos os protegem do açoite, que é infligido apenas aos marinheiros. Desse modo, de acordo com Blackstone e Justiniano, essas leis não têm força vinculativa, e cada marinheiro de guerra americano deveria ser moralmente justificado em resistir ao flagelo até o fim, e ao resistir estaria religiosamente justificado no que se denomina, em termos jurídicos, “ato de motim”.

Se por qualquer motivo essas leis sobre a flagelação se fizerem necessárias, que sejam vinculantes para todos que, por direito, estejam sob sua influência, e que vejamos um comodoro honesto, devidamente autorizado pelo Congresso, condenando ao chicote um capitão transgressor ao lado de um marujo transgressor. E, se o próprio comodoro for um transgressor, que vejamos um de seus colegas comodoros aplicando-lhe o chicote, do mesmo modo que os segundos-contramestres, algozes da Marinha, costumam ser chamados para açoitar uns aos outros.

Você diria que um oficial naval é um homem, mas que um cidadão nascido nos Estados Unidos, cujo avô talvez o tenha enobrecido derramando sangue em Bunker Hill[3] – você diria, ao servir ao seu país como marinheiro comum e se preparar para combater seus inimigos, que ele perde sua hombridade no momento exato em que mais a afirma? Você diria que, ao agir assim, ele se rebaixa à imputabilidade do açoite, mas, se permanecer em terra em tempos de perigo, está a salvo dessa indignidade? Que nossos estados interligados, que os quatro continentes da humanidade, se unam contra esse pensamento.

Colocamos essa pergunta, então, no cerne de nosso argumento principal. Independentemente de considerações acidentais, afirmamos que a flagelação na Marinha é contrária à dignidade essencial do homem, a qual nenhum legislador tem o direito de violar; que é opressiva e descaradamente desigual em suas aplicações; que é totalmente repugnante para o espírito de nossas instituições democráticas; e mais, envolve uma característica antiga dos piores tempos de uma aristocracia feudal bárbara; numa palavra, a denunciamos como religiosa, moral e imutavelmente errada.

Não importa, portanto, quais sejam as consequências de sua abolição; não importa se teremos de desguarnecer nossas frotas, e se nosso comércio, à falta de proteção, será uma presa para os saqueadores; as sublimes advertências da justiça e da humanidade, com uma voz que não deve ser confundida, exigem que a abolição seja feita sem procrastinar – exigem que seja feita agora. Não se trata de uma questão de conveniência material, mas sim do que é certo e errado. E, se algum homem ainda tiver coragem de colocar a mão no peito e dizer solenemente que a flagelação é correta, que esse apóstata sinta uma única vez a força do chicote em suas costas para depois, em sua agonia, pedir que o sétimo céu ateste que o flagelo é errado. Em nome da imortal natureza humana, Deus queira que todo homem que defende uma coisa assim seja açoitado no portaló até se retratar. §

[1] Tipo de chicote usado na antiga Rússia, feito de tiras de couro, com arame ou bolas de metal nas pontas.

[2] Sir William Blackstone (1723-1780), jurista inglês cuja obra Comentários às leis da Inglaterra foi relevante no desenvolvimento do direito no Reino Unido e também nos Estados Unidos.

[3] Confronto militar ocorrido em junho de 1775 entre defensores da independência dos Estados Unidos e soldados ingleses. O Exército inglês perdeu muitos homens, mas saiu vitorioso.

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Inédito, o trecho acima integra o livro Jaqueta branca ou O mundo em um navio de guerra (462 págs.), de Herman Melville, que a Editora Carambaia lança nos próximos dias. O trecho aborda a forma desumana em que marinheiros americanos eram tratados; com base nisso, o congresso americano mudou algumas leis sobre a profissão.

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