Da redação *

Devido às suas dificuldades de ter um só corpo, sendo múltiplo, o artista Jean Cocteau, um dia, pensou em ser diversos num só mesmo, para, assim, dar conta de desenhar, escrever, fazer cinema, teatro. No volume A dificuldade de ser [ed. Autêntica], lançado recentemente no Brasil, ele faz um autorretrato memorialístico em que fala dos seus desejos, por meio de textos, em que transforma em arte uma simples conversa, a frivolidade, o riso, um sonho, a juventude, a beleza, a amizade, os costumes, a responsabilidade, o trabalho, a leitura, casas assombradas, a infância, a dor, a morte. Leia abaixo alguns trechos da obra.

É verdade que para o silêncio dos que poderiam desembaraçar o meu novelo eu encontro desculpas. Sempre tive os cabelos plantados em várias direções e os dentes e os pelos da barba. Ora, os nervos e toda a alma devem ser assim também. É o que me torna insolúvel para as pessoas que têm tudo arrumado em um único sentido e não podem conceber um redemoinho. É o que desconcerta aqueles que poderiam me livrar dessa lepra mitológica. Eles não sabem por qual lado me pegar.

Eu nunca tive um rosto bonito. Em mim, a juventude substituía a beleza. Minha ossatura é boa. São os músculos que se organizam mal sobre ela. Além disso, o esqueleto se transforma ao longo da vida e se estraga. Meu nariz, que sempre fora reto, curva-se como o do meu avô. E eu notei que o da minha mãe também se tinha curvado no seu leito de morte.

Há de se perguntar se a função dos livros, mesmo que falem para convencer, não é a de escutar e aquiescer. Em Balzac o leitor encontra o seu alimento: ‘ o meu 83 tio, se diz ele, é a minha tia, é o meu avô, é a Senhora X…, é a cidade onde eu nasci.’ Em Dostoiévski, o que diz ele? ‘É a minha febre e a minha violência, que os meus próximos nem suspeitam’.

Gosto das pessoas cuja juventude anuncia a velhice e cuja estrutura permite perceber a aparência que elas terão um dia. A vida as esculpe e as aperfeiçoa. De esboço elas se tornam o que devem ser e se fixam solidamente. Eu não tive essa sorte. Em mim, a juventude se estica. Ela se estraga e se fixa mal. Disso resulta que tenho a aparência de um jovem perdido na velhice ou de um velho perdido em uma idade que não é mais a sua. Algumas pessoas podem acreditar que eu me obstino. Longe de mim. Se é bonito que um jovem seja jovem, é bonito que um velho seja velho.

O poeta estava sozinho no meio de um mundo industrial. Ei-lo sozinho no meio de um mundo poético. Graças a esse mundo, generosamente equipado pela evasão como pelos esportes de inverno, pelo teatro, pelo cinematógrafo e pelas revistas de luxo, o poeta reconquista, enfim, sua invisibilidade.

A palavra rara (e ele a usava) perdia, entre os dedos de Apollinaire, o pitoresco. A mais banal tornava-se insólita. E essas ametistas, selenitas, esmeraldas, cornalinas, ágatas que ele utiliza, ele as montava, de onde viessem, como um empalhador tece uma cadeira no passeio. Não se imagina um artesão de rua mais modesto, mais alerta do que esse soldado recruta.

A beleza é uma das artimanhas que a natureza usa para atrair os seres uns em direção aos outros e garantir, para si, o apoio deles.

Você tira este livro do bolso. Lê. E se você o conseguir ler sem que nada mais possa distraí-lo da minha escrita, pouco a pouco sentirá que eu habito o seu ser e você me ressuscitará. Correrá até mesmo o risco de fazer, inesperadamente, um dos meus gestos, um dos meus olhares. Naturalmente, eu falo aos jovens de uma época em que eu não estarei mais aqui em carne e osso e meu sangue estará ligado à minha tinta.

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A dificuldade de ser, de Jean Cocteau [Autêntica, 2o8 págs.]

Tradução de Wellington Júnior Costa

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