Por Marta Barbosa Stephens *

Ele acredita de verdade que todas as coisas estão conectadas, e o que não se cruza por essa rede de conexões energéticas nem se nota, tão pouco importa. Tudo acontece o tempo inteiro para servir de passagem a outro acontecimento, e só a morte nos interromperá. Pensar assim o faz dar outra importância à vidinha de todo dia.

Seu dia começa às seis e quarenta e cinco da manhã. Guarda quinze minutos como coringas: se está muito cansado, dorme um pouco mais, retardando primeiro em dez e depois em cinco minutos o alarme do celular; se está bem disposto, acorda, toma banho e ganha um tempinho de “não fazer nada” antes de partir para o trabalho que usa lendo o caderno de esportes do jornal de domingo, mesmo se já for terça-feira; ou fumando um cigarro escondido da esposa no canto da área de serviço, onde está a maior janela da casa. Dali vê a cidade acordando, ainda não faz tanto calor, há meses que sente frio essa hora, mesmo que a temperatura alcance trinta graus ao meio-dia.

Enquanto observa a paisagem de telhados e muros de concreto, algumas vezes se sente realmente feliz. Se sente vivo, e estar vivo e com saúde já é um milagre tão grandioso, ainda mais após o tremendo susto de se deparar com a fragilidade do próprio corpo. A trombose na perna poderia ter custado-lhe a vida. Ao pensar assim, sente a presença de Deus, agradece por ter uma mulher tão religiosa em casa – ele tem certeza que as orações de Ana Paula e de sua mãe o salvaram de uma embolia, e pensa que é feliz.

Mas há outros dias em que aquela vista o irrita. Sente vergonha de morar num lugar tão feio, sofre ao pensar que em minutos precisará cruzar a cidade em ônibus fedorento e se sente uma vítima do destino. Cair doente recém-casado, se enxergar frágil e indefeso diante da mulher a quem deveria proteger e precisar da mãe morando no mesmo apartamento (para ajudar com os cuidados que passou a exigir) – isso tudo apenas quarenta dias após uma alarmada saída de casa e uma grande festa de casamento! Só pode ser marcação do destino. Nesses dias ele sempre apaga o cigarro repetindo: “não vou parar de fumar, não vou parar de beber, nem vou usar meias de compressão, e foda-se”. Então vai trabalhar.

Dali até o intervalo do almoço, nada mais o diverte. Odeia pegar ônibus, invariavelmente lotado, e nem só de gente educada e cheirosa. Mas vai, toma o número sete quatro cinco das sete horas e cinquenta (horário de saída do terminal); oito e cinco, no máximo oito e dez passando no seu ponto. Quase sempre o motorista e o cobrador são os mesmos. Ele os cumprimenta com um gesto de cabeça. Não chega a falar. Procura primeiro um lugar em pé logo depois do cobrador porque sabe que ali ficam muitos estudantes que vão descer duas paradas a frente, na porta de uma escola. Quando chega lá, com sorte pega um lugar e, sentado, consegue aproveitar os próximos quarenta minutos pensando na vida, olhando a paisagem, às vezes cochila. Se o plano não dá certo e não consegue assento, a viagem fica mais longa. Sem direito a paisagem, usa o celular. É capaz de se ocupar horas com jogos estúpidos feitos para criança, como aquele em que um bonequinho de boné e skate corre para não ser alcançado pelo guarda de uma estação de trem. Ou outro em que faz combinações de cores seguindo algumas regras estúpidas e acumulando pontos para usar depois na criação de uma batata que tem febre, usa roupa e às vezes precisa tomar banho. Ele acumula muitos pontos durante o dia, e à noite se diverte oferecendo mimos à batata, que sorri, solta beijo, mas não fala.

Algumas vezes, enquanto repete os cálculos da firma, ele vagueia em pensamento. São tantos anos de contabilidade que sua atenção é dispensada enquanto digita na calculadora os mesmos números do papel. Sua função é checar se a colega novata fez as contas certas. Se ao final da contagem dispersa, o número não for exatamente o mesmo do relatório, refaz tudo com um grau maior de atenção, embora normalmente a soma dê certo. Os colegas novatos erram menos que os veteranos, esses sim já cansados da vista e dos nervos. Em seus momentos de vagueio, mantém a cara sisuda de quem opera números, ainda que por sua mente passeiem sonhos contidos, como os seios pontudos da diretora de marketing ou o carro do chefe do departamento, que um dia dirigiu fazendo-lhe um favor, e do qual nunca pôde esquecer. E ainda que escape um riso de canto de boca enquanto sonha, se alguém o chamar, decerto sua feição quase alegre se desfará rapidamente, dando lugar a mesma de sempre.

No intervalo do almoço, por ordens médicas, dá cinco voltas no quarteirão da firma, faça sol ou chuva. Antes da última, presenteia a si mesmo com mais um cigarro, que fuma entre os galhos da árvore da praça por trás do prédio do escritório, na esperança de não ser visto pelos colegas, também testemunhas da trombose. Alguns até já ensaiaram um sermão por sentir nele o cheiro de tabaco, mas o susto não foi suficiente?, perguntaram. Como trabalha no mesmo lugar há doze anos, todo mundo sabe tudo de sua vida, é como uma segunda família com a diferença que dessa dispensaria o convívio, se pudesse. Em todo caso, mastiga um chiclete de menta quando volta ao batente.

No caminho, pensa que não desgosta do seu trabalho. Escolheu a contabilidade porque o curso estava disponível no instituto público do bairro, havia vagas, o que significava nada de concorrência, o horário das aulas era bom, e ele não precisaria de mais do que uma condução desde casa. Assim, decidiu pela profissão de contador porque estava à mão, mas se entusiasmou de verdade ao longo do curso. Nunca odiou números – manteve a nota entre sete e sete e meio na matemática da escola, e foi fácil gostar das aulas noturnas depois que conheceu Ana Paula. A doce brincadeira da sedução que nasceu ali o fez se dedicar mais e mais aos estudos, logo os dois faziam trabalhos juntos em tardes calorentas atravessadas na mesa da cozinha da casa dos pais de Ana Paula, entre calculadoras e falsos relatórios financeiros. Quando ela aceitou trocar a mesa da cozinha pela escrivaninha apertada do quarto dele, foi ali que a brincadeira ficou séria. Na primeira tarde, meio desajeitado na arte de seduzir, e tomado pelo oxigênio da virilidade, tirou o pinto de dentro da calça no meio de um beijo molhado e colocou a mão de Ana Paula ali em cima. A reação foi inesperada. Ana Paula se sentiu ofendida, enojada, nunca tinha visto um pênis adulto antes, recolheu correndo seus papéis, disse que nunca mais voltariam a estudar ali. No meio daquela espiral de fúria, ele tentava conter a ereção e pensar como atravessariam a sala sem que sua mãe se desse conta da confusão. Ana Paula saiu antes de ele pensar, bateu a porta do quarto com força, mas não chegou a atravessar a sala. Ela voltou, reabriu seu zíper, sacou com as mãos o pênis de novo duro e o chupou incansavelmente até o fim; nem parecia a primeira vez. Depois daquele dia, as sessões de estudo mudaram. Ter uma namorada (a primeira) que aceitava transar (e muito, ao menos no começo) fez dele mais homem. Foi quando começou a pensar em casamento, em casa própria, em meios de sustentar uma família, e em Ana Paula chupando seu pau toda santa noite.

O casamento lhe parece agora bem menos entusiasmante, e ele não culpa Ana Paula por isso. Está certo que a doença estragou alguma coisa para sempre em sua vida. Detesta lembrar Ana Paula aplicando um massageador pneumático em sua perna inchada pouco mais de um mês após o casamento. Odeia pensar que esteve imprestável, assistindo a uma estúpida disputa de mimos e cuidados entre sua mãe e sua mulher, quando deveria ter sido um insaciável macho acasalado. Guarda na memória o instante em que Ana Paula olhou pra ele de um jeito novo, quebrando em caquinhos alguma coisa no olhar, sentindo pena no lugar de paixão. Ele não é estúpido. Sabe que nunca mais verá Ana Paula arder de desejo, e sente-se desmascarado.

Contenta-se com a saudade do tempo de namoro, sem contas altas a pagar, sem preocupação com a doença, ou com a mãe que ronca no quarto ao lado, saudade de quando Ana Paula sempre dizia sim. Na última vez que tentou tocá-la por baixo da calcinha, como fazia no começo, recebeu de volta um olhar de repulsa quase nojo, e nunca mais teve coragem de tentar. E a verdade é que a própria Ana Paula enfeou nesse tempo, parecendo fazer questão de enfear-se. Um dia a encontrou em casa vestindo um robe igual aos da mãe, rosinha claro, com bordados na gola feitos na máquina, mas imitando os feitos à mão, botões alaranjados, horroroso.

Resta seguir a rotina, fazer bem os relatórios contábeis da firma, sonhar com uma promoção, cuidar da saúde, esperar por um milagre.

O problema é que até onde sua imaginação pode alcançar, não há milagres destinados a ele. Ou talvez o milagre consista em estar vivo, o modo não importa. Impotente e sem saída, direciona seu pensamento à crença da passagem. Tudo isso aqui como reflexo de uma onda, antes da ressaca. Ele espera.

Quando deixa o escritório à tardinha, quase sempre está deprimido. Se o entardecer é alaranjado e quente, típico de dias secos e poluídos, se entristece ainda mais. No ônibus, vagueia sua tristeza sem tirar os olhos do céu em chamas, tão dramático quanto é viver. Nesses dias, desce um ponto antes do seu, toma uma ou duas cervejas num boteco do caminho, chega a fumar quatro cigarros antes de voltar andando e mastigando um chiclete. Se um dia eu deixar esse bairro, pensa com lágrimas nos olhos, guardarei essa vista de pedras e concreto com o céu alaranjado diabólico a ameaçar todos nós.

*

Marta Barbosa Stephens é jornalista, crítica literária e escritora, autora de autora de Voo luminoso de alma sonhadora (Ed. Intermeios); vive na Inglaterra

Tags: