E ntão quem chegar por último é a mulher do padre. Eu não es­cuto porque tô pensando por que que o canteiro chama can­teiro se ele fica no meio de tudo aí saio correndo sem vontade e chego por último no Prédio Secreto e sou a mulher do pa­dre porque cheguei por último e agora tem um bando de gente apontando o dedo e me chamando de mulher do padre e eu não sei o que isso significa. É a freira? Tão me chamando de freira? Mas a freira não é mulher do padre, é mulher de Jesus, ou de Deus, e também não sei por que às vezes chama um e às vezes o outro, a freira fica com o pai e com o filho mas e o espírito santo, e padre não tem mulher porque não pode ca­sar então a mulher do padre é uma amante secreta escondida proibida ou é uma mulher que não existe. Ou é a que já mor­reu e morre de novo dançando no lugar do menino que ela gosta. Ou é a Wendy que gosta do Peter Pan mas ele só quer ela de mãe. É. Não é? Como você chegou por último é você que vai entrar primeiro. Tá bom. E sozinha. Tá bom. Sozinha. Tá bom. Sozinha é uma paroxítona com dígrafo de consoante. Se alguma freira me pegar aqui eu vou dizer que me perdi, ou que machuquei, ou que chorei, ou que fugi. A porta é pesada e alta de madeira e range igual quando Chaves entra na casa da Bruxa do 71. Fecho ela na cara da Maíra. Maíra é má com traíra. Só não quero encontrar a Irmã Vilma. Casa de freira só podia ser escura. Da guerra igual nosso porão. A montanha de pano ali, que droga, vai vir falar que eu sou a cara da Virgem. Ela vira, não é Irmã Vilma. É Irmã Dulce. Nossa como ela tá velha. Dulcineia. Teve um marido que ela amava muito e ele morreu num incêndio dum trator que pegou fogo na fazenda e ele não queria largar o trator que ele amava muito e morreu queimadão. Aí ela casou com Deus e deu a fazenda pros po­bres. Eu não sei se ela é boa ou meia louca. É meio louca. Ela me viu. Oi, Irmã Dulce. Olá? Eu vim saber como anda a se­nhora, a senhora me ajudou quando eu furei a mão num prego a senhora lembra? Eu não escuto, minha filha, repete. O prego. A mão. O buraco. Quer biscoitinho, minha filha? Posso encher a mão, Irmã Dulce? Só não conta pras suas coleguinhas, como é mesmo seu nome? Lina, meio cuspindo. Biscoito seco. Se­quilho. Você é estudiosa, Lina? Não sei. Como não sabe? Eu só sigo o que tem que fazer. Senta, Lina. Sequilho na mão cheia, eu não sei sentar, sofá de carpete, o braço é marrom e torcido, tem cruz em todas as paredes, o nosso marido, você quer me perguntar alguma coisa, Lina, eu gostaria sim, o que significa ser a mulher do padre? Oh! Desculpa, é blasfêmia? Ela tem uma correntinha fina e dourada com outro jesusinho pendu­rado. Não consigo contar todos os jesuses que eu tô vendo. Ela enruga a boca mais ainda. Não é blasfêmia é uma lenda que vem da Idade Média e ela abaixa o queixo e diminui a voz. Eu amo a Idade Média tem princesa. Levanta um dedo como se ligasse ele por um fio invisível com o céu de onde vem a his­tória certa. Diziam que a mulher que seduzia padre era casti­gada virando mula sem cabeça. E saía galopando pelos vilare­jos e assustando as criancinhas com correntes presas nas patas e a frase parecia que não ia acabar mas ela para de falar. Irmã Dulce puxa o terço no pescoço como se fosse cair. As sobran­celhas fininhas tão no meio da testa e o olho caiu no potinho do biscoito. O biscoito tá todo grudado no céu da minha boca. Tá mais pra teto. Meu pai cai do andaime outra vez. Se eu falar eu tusso então fico quieta também. Imagina seduzir um padre como é que faz. Mostra um ombro? Tem que ter ombro. E vira freira quem não gosta de beijo? Uma pomba bate no vidro a Irmã Dulce assusta, e pisca, e me olha, e quero pedir que ela empreste um vestidão preto desses pra eu colocar na cabeça mas sem passar pela cabeça, deixando ela coberta, aí eu as­susto a Maíra dizendo que virei a mula sem cabeça que seduzi um padre mostrando o joelho aí ela abre a boca e eu enfio um monte de sequilho e ela vai tossir até amanhã e vai atrasar pra aula e vai levar advertência. Mas bate a sirene de ataque nu­clear. Irmã Dulce me oferece a mão. É uma coisinha pequena sem osso, veia e pele gelada de lagarto. Eu seguro a respiração e dou um beijo cheio porque faz parte do disfarce. Irmã Dulce faz um oh e eu acho que ela vai dizer alguma coisa. Não diz nada só me olha a boca aberta. Saio de ré porque deve ser falta de educação virar de costas pra tanta cruz. Meu coração bate palma pra minha coragem e todo mundo vai saber que eu en­trei sozinha no Prédio Secreto e comi biscoito e que não tem nada a ver essa coisa de mulher do padre que todo mundo tava pensando que era e que eu descobri a verdade, que sei uma coisa que só eu sei. Atrás da porta não tem mais ninguém.

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A mulher do padre, de Carol Rodrigues (editora Todavia, 216 págs.)

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Carol Rodrigues nasceu no Rio de Janeiro, em 1985. Seu livro de estreia, Sem vista para o mar (Selo Edith, 2014), ganhou o prêmio Jabuti em 2015.

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