P aulo estava no ápice da sua vida profissional e afetiva. Depois do nascimento de seu primeiro filho com Sofia, sua namorada desde os 18 anos, ele tinha a chance de realizar outro grande sonho: conseguir um bom emprego num banco em Miami e se mudar para lá com a família. Tudo parecia caminhar bem, até que uma tragédia inimaginável fez com que seu mundo e seus planos para o futuro desmoronassem. Primeiro romance de Andreia Modesto, lançado pela Folhas de Relva Edições, À sombra de Sofia acompanha a impressionante jornada de superação de um homem ambicioso e apaixonado, que de uma hora para a outra precisa renascer dos escombros, enfrentar seus fantasmas e recomeçar a vida do zero. Em sua estreia, a autora, que é astróloga e colunista do site de Veja São Paulo, cria uma obra de ficção que explora temas sensíveis relacionados à saúde mental, como suicídio, luto e depressão pós-parto. Em sua narrativa, a autora também questiona o modelo de masculinidade que está arraigado na sociedade: o estereótipo do
machão viril, que não chora e que precisa esconder qualquer sentimento que possa trazer à superfície sua fragilidade.

A autora assina o livro com o pseudônimo Beth dos Reis e afirma que para desenvolver seu trabalho literário era preciso se afastar de seu trabalho como astróloga. “Não queria misturar as estações. Achava importante encontrar voz independente para criar a história com mais liberdade. Quis de certa forma desconstruir o meu universo”, pondera.

Ponto central da trama, o episódio que impacta a vida de Paulo é inspirado em dois fatos reais: o contato da autora com uma parente que enfrentou a depressão pós-parto e a história de uma vizinha que pulou de um prédio com o filho recém-nascido no colo, numa
noite de Natal. A partir deles, Modesto criou a trajetória de Paulo e Sofia, um casal jovem e promissor, que se conheceu em uma festa junina na Zona Norte de São Paulo, ainda bem jovens, e que, depois disso, não se desgrudou mais, acreditando que estavam predestinados um ao outro.

Após dar à luz o pequeno Vítor, Sofia mergulha em um sofrimento profundo, decorrente de um quadro severo de depressão pós-parto. Apesar de algumas sinalizações, nem Paulo nem Jane, a mãe de Sofia, têm a real dimensão da situação, o que provoca um grande sentimento de culpa no protagonista. Como ele pode não ter percebido a gravidade da doença de sua mulher, sendo ele um marido tão dedicado e preocupado em proporcionar o melhor para a sua família?

No entanto, a vivência e a aceitação do luto permitiram que Paulo fosse capaz de dissolver a “culpa” e conseguisse transformar esta grande tragédia em uma oportunidade de crescimento e renascimento. Em seu percurso de “cura” e reconstrução, Paulo abandona a
rotina massacrante de trabalho, retorna às suas origens, refaz laços com amigos de infância, até se sentir pronto para conhecer outras mulheres e criar uma rede de apoio para que outros homens também possam falar abertamente das suas dores. “Escrevi este livro para os homens que não conseguem entender suas próprias emoções e que não possuem as ferramentas paradecifrar o universo feminino”, explica.

Andreia Modesto, 68 anos, mora em São Paulo e atua como astróloga profissional desde 1988, tendo iniciado seus estudos na área em 1974. Colunista semanal da Veja São Paulo, divulga seu trabalho em diferentes canais como YouTube e Instagram. Apaixonada por livros e cinema, decidiu ingressar na literatura recentemente. Um segundo livro está sendo preparado para o final deste ano ainda e a carreira como escritora vai caminhar em paralelo com seu trabalho com astrologia.

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Leia trecho do romance:

“Com a força que sinto em mim, creio-me capaz de suportar todos os sofrimentos,
contanto que me possa dizer a cada instante: eu existo.”
Fiódor Dostoiévski

Atônito, sem voz, o corpo pesado da água que carregava na desesperança. Deixou o táxi no meio da ladeira, a cidade parada, a correria ruas acima. Alguém sussurrou: “Jane não está. Do Carmo ficou com ela em casa”. Estava atordoado. Como chegou até ali? Só se lembrava do telefone tocando no hotel depois que ele, feliz da vida com o novo convite profissional, havia brindado sozinho com meia garrafa de champanhe.

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Aos 15 anos conheceu Sofia na festa junina do bairro. Praça e paróquia toda iluminada, bandeirinhas e arrasta-pé. Na barraca da pescaria, ofereceu para segurar a vara e ajudar a menina magrinha a puxar o peixe e ganhar um batom. Tocou suas mãos, encostou o
corpo e nunca mais desgrudaram.

Sofia acabara de chegar ao bairro. Sua mãe havia alugado uma casa pequena ali e mais cedo ou mais tarde eles acabariam se esbarrando, estudando na mesma escola e sentando na mesma calçada. Sofia, como ele, não tinha irmãos ou alegrias para contar,
mas tinha o desejo desesperado de escrever uma história mais feliz do que a história de sua mãe. Caminhavam juntos na praça, juntos sentavam-se no banco ou no portão até muito tarde, no sol, na chuva, todo mundo já sabia. Quer saber da Sofia? Procure o
Paulo. Quer encontrar o Paulo? Procure a Sofia. Corda e caçamba, unha e carne, almas gêmeas, nascidos um para o outro. “Uma gracinha de casal”, dizia Julieta, aquela que vivia na varanda de casa, registrando e controlando a vida dos outros.

Com a cabeça vazia, olhos molhados e corpo doído, Paulo revê Sofia atravessar sua vida como um raio de sol, luz do luar, grossos pingos de chuva ou garoa fina refrescando seu rosto.

A primeira conversa “séria” que Paulo e Sofia tiveram aconteceu aos 18 anos dos dois – 18 anos e a vida inteira pela frente. À época, Paulo estudava e depois das aulas trabalhava na papelaria do bairro, atendendo clientes e conferindo o estoque. Emocionado, ele contou para Sofia que seu objetivo de vida era ter tudo o que o pai não pôde oferecer.

“Conforto?”, Sofia perguntou.

Muito mais do que isso. Queria ter grandes perspectivas e sucesso, o que a papelaria não oferecia. Pensou em dizer: quando eu tiver um filho, quero que ele possa estudar numa boa escola, com as oportunidades que não tive. Mas preferiu se calar sobre filhos, pois ainda não tinha muita certeza sobre esse assunto.

Sofia concordou: “Não quero ficar igual a minha mãe. Ela trabalhou a vida inteira… ainda precisa trabalhar e o dinheiro é sempre curto”. Paulo assentiu com a cabeça. A conversa foi se desenrolando, e o futuro se transformando num esboço com linhas claras. Estabeleceram um plano e um pacto: conquistar bons empregos, guardar dinheiro, cuidar da saúde, construir uma vida confortável. Um estaria sempre ao lado do outro incentivando, torcendo. Um time de dois, um casal, par eterno.

Na semana seguinte àquela conversa, começaram a procurar emprego. Paulo encontrou um novo trabalho como vendedor numa loja de carros, nenhuma remuneração fixa, mas alta comissão. Segundo o chefe, ele tinha talento para vendas. Sofia pegou a vaga de recepcionista em uma clínica odontológica. O plano era juntar dinheiro e pagar as duas faculdades.

Paulo teve uma rápida ascensão. O chefe o indicou para vender consórcios e Paulo foi bem-sucedido, sendo agressivo ao telefone, convencendo os clientes que aqueles eram baitas negócios, ainda que fossem uma furada. Autodidata, era fácil
dominar porcentagens, impostos, taxa de risco.

Certa vez, um cliente da loja ficou impressionado e perguntou se ele estudava economia. Paulo riu e disse que tinha apenas o ensino médio. Antes dos 20 anos, já mostrava alguns fios de cabelo branco e aparentava muito mais idade, o que os chefes achavam positivo, pois gerava credibilidade aos clientes. O sujeito lhe estendeu um cartão e pediu que Paulo passasse no seu escritório na semana seguinte.

O rapaz cumpriu o combinado e apareceu para a entrevista trajando o seu único terno, comprado no brechó para o casamento de um primo distante. Apesar do nervosismo, convenceu o homem que viria a ser seu chefe que estava apto a vender cotas em fundos de investimentos. O lugar em que foi trabalhar era uma corretora de valores e ele teria que se inteirar do assunto. Estudaria por conta própria e jurou que em pouco tempo traria bons resultados à empresa. Sofia ficou radiante com os avanços de Paulo.

Enquanto o namorado progredia como um “homem de vendas”, Sofia se saía bem na clínica. Gostava de atender as pessoas e os dentistas lhe teciam elogios, deixando claro que estavam satisfeitos com a garota mignon que conseguia mostrar gentileza o tempo todo.

Quando o trabalho diminuía, Sofia sonhava de olhos abertos. Na tela do computador via o futuro: ela e Paulo numa casa confortável, três filhos, passeios num carro do ano, a mãe sempre por perto. Talvez não parecesse muita coisa para algumas pessoas, mas para Sofia aqueles sonhos diurnos eram tudo o que ela poderia querer.

Passado algum tempo dessa rotina, o casal conseguiu progredir e os dois entraram na universidade. Paulo ingressou em economia, a melhor escolha para seu sucesso. Sofia em administração… e foi evoluindo na área, ao mesmo tempo que a clínica expandia e multiplicava suas franquias. Sofia passou a supervisionar todas elas e o salário já era maior e motivador, apesar do trabalho ter se tornado cansativo.

Nesse período, o casal se via pouco.

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À SOMBRA DE SOFIA capa frente (1)

À sombra de Sofia, de Andreia Modesto (Folhas de Relva Edições, 209 págs.)

 

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