O s contos de A cor do presente (Editora Tulipas Negras), oitavo livro de Marcio Renato dos Santos, tratam do nonsense e do irreversível da realidade, e também da melancolia e da solidão. Para materializar e problematizar as questões, o escritor se vale de enredos em que aparecem personagens variados, entre eles um cantor, uma detetive, um falsificador de obras de arte, uma historiadora, jogadores de futebol da segunda divisão e criminosos. E, apesar dos enredos, o que chama atenção é a linguagem exaustivamente burilada e em sintonia com a oralidade e vozes literárias contemporâneas e clássicas.

O lançamento acontece no dia 9 de março no Café Tiramisù, em Curitiba. das 14h30 às 19h (Rua XV de Novembro 1.330, anexo ao Museu Guido Viaro, Centro.

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Leia abaixo um dos contos do livro:

Seria

Diego aceita o convite, que mal tem beber duas, três, quatro, cinco, seis, sete ou mais doses? E como recusar um happy hour com a Thaís, a filha do Ernesto, um dos sujeitos que desde sempre ajuda Diego a realizar tudo o que ele, Diego, realiza? Nem o fato de Thaís estar acompanhada, de quem mesmo?, um novo namorado?, o incomoda. Faz calor, mais de trinta graus, temperatura perfeita para cervejas e conversa, conversa e cervejas que podem alargar qualquer horizonte, programa perfeito para driblar a rotina de uma terça-feira, por que não?

Caminhar ao lado do casal pelas ruas do bairro arborizado é, para Diego, agradável – mais que isso até. A brisa refresca o seu corpo, o lilás deste fim de tarde também faz com que a situação se apresente, para ele, inédita. E tudo fica ainda melhor quando eles entram no bar.

Frederico, o namorado de Thaís, comenta que há um grupo de amigos ali, pede licença e vai até a mesa onde eles estão para cumprimentá-los.

E, sem a presença de Frederico, Diego e Thaís bebem e conversam. Ela conta que, faz tempo, percebe que ele existe. Diego também diz que há alguns anos sabe da existência dela, e eles brindam.

Thaís fala e toca o interlocutor durante a conversa.

Diego aprecia a situação, mas teme que o namorado de Thaís, o Frederico, se incomode. Diego olha para a mesa onde o Frederico está e, lá, Frederico também conversa tocando o corpo de uma mulher. Então, Diego relaxa e segue conversando com Thaís e também bebe, cada vez mais, cerveja, e observa atentamente os seios de Thaís, grandes e empinados, parte das coxas, os braços, as mãos, o pescoço, os olhos castanhos, um corpo que ele, Diego, deseja já nem lembra desde quando.

Diego conta que há seis, sete anos levou uma encomenda para o pai de Thaís, o Ernesto, o major Ernesto, no apartamento do litoral. Bebe mais um gole de cerveja e não comenta que ficou excitado com a imagem, Thaís de biquíni ao sol, na piscina.

Thaís sorri e diz que viu Diego em uma festa da empresa, não lembra exatamente quando, mas tem certeza de que, no evento, ele estava bebendo água mineral ou refrigerante, enquanto quase todos os convidados consumiam vinho, uísque ou cerveja. Diego bebe um gole de cerveja e diz que não lembra, mas ele lembra, sim, e com detalhes, da festa mencionada por Thaís. Até porque, naquela noite, ele observou Thaís dançando, com um vestido curto, vermelho, em frente a um sujeito, outro Frederico. E naquele momento ela estava linda, mas distante, e agora está próxima e igualmente linda a menos de um metro dele, Diego.

Diego sente que está com ereção e, imediatamente, olha para a mesa onde amigos do Frederico estão reunidos. Mas o Frederico e a mulher com quem Frederico estava conversando não estão lá.

Thaís e Diego não sabem, mas agora Frederico está transando com a mulher com quem conversava há alguns minutos.

Diego pergunta se Thaís está com sede, ela diz que sim e ele pede mais um balde com seis cervejas. Ela quer saber se ele fuma, ele responde que depende, ela avisa que vai fumar, o convida e Diego acompanha Thaís.

Os dois seguem até um espaço a céu aberto, ao lado do banheiro onde Frederico e uma mulher transam. Thaís não desconfia, mas Frederico tem outras amantes desde que eles, Frederico e Thaís, começaram a namorar. Esta, com quem ele está agora, a Débora, é apenas mais uma.

Thaís e Diego consomem, cada um, dois ou três cigarros, um após o outro. E fumar três cigarros continuamente, um aceso na brasa do anterior, pode ter sido o começo do desastre de Diego.

Em algum momento, ao fumar bebendo cerveja, ele sente, pela primeira vez, vertigem, talvez queda na pressão, um mal-estar – enfim – toma conta dele, que quase cai. Quase. Só não cai porque Thaís e outras pessoas, também fumantes presentes no local, ajudam a segurar o corpo de Diego.

A partir de então, a sequência dos fatos é um mistério.

Diego recebe um beijo de Thaís e, quase imediatamente, um soco de Frederico. Tudo para. Tudo se move. Frederico recebe um golpe e, posteriormente, um tiro. Tudo para. Não se sabe quem é o autor do disparo. Tudo se move.

Diego beija Thaís?

Thaís beija Diego?

Diego sai do bar, anda por ruas do bairro arborizado, tudo parece vazio, as casas, os prédios, a calçada, o asfalto. Ele chega ao estacionamento, paga a conta, espera um manobrista trazer o carro – Diego tem sangue na calça, na camisa e nos olhos.

Ele deve ter ingerido alguns litros de cerveja, portanto, dirigir seria um ato impensável, mas Diego entra no carro e dirige.

O carro dirigido por Diego bate em veículos estacionados, em outros que estão em movimento, também em uma, duas, três, quatro e mais pessoas, inclusive, o carro passa por cima de um ou dois pedestres. Diego segue a mais de oitenta quilômetros por hora ignorando sinais vermelhos, sem acionar o pisca-pisca, a seta, em ultrapassagens, mudanças de faixas e conversões. Mas ele usa a buzina com frequência, às vezes buzinando no ritmo de canções dos Beatles, como Strawberry fields forever, Wait, I need you e Tomorrow never knows, que soam em volume máximo dentro e fora do carro.

Diego percebe o início da chuva por sentir, em seu braço esquerdo, as gotas que entram pela janela com vidro aberto e, em segundos, elas se tornam volumosas.

Então, pela primeira vez desde que conduz o veículo, diminui a velocidade, e faz isso apenas porque o volume de chuva não permite enxergar nada, absolutamente nada que está a sua frente.

E, a trinta ou quarenta quilômetros por hora, dirige sem saber para onde, por ruas de um bairro que não conhece.

Ao passar por uma ponte de madeira, perde o controle da direção e o carro cai dentro de um rio.

O fato de não usar cinto de segurança, hábito antigo que não se alterou nem mesmo após a obrigatoriedade determinada por lei, facilita a saída de Diego de dentro do carro que segue no rio em meio à chuva. Em breve, o veículo vai naufragar, mas Diego não vê a cena, uma vez que ele viaja pela superfície das águas percorrendo rapidamente metros e mais metros abraçado em algo que não sabe o que é, sofá, cama ou talvez parte de uma árvore, sua boia, o seu salva-vida.

Após uma queda de água, de sete metros, enfim, calmaria. Ele abandona o tronco, sofá ou cama, o seu porto seguro desde que deixou o carro, e finalmente chega a uma das margens.

Diego segue por uma trilha, inicialmente caminhando e, depois, correndo. Diante de uma bifurcação, decide ir pelo meio da mata. Corre, anda, volta a correr. Enfrenta dificuldade para avançar, machuca o rosto em galhos, tropeça, cai, rasga um pedaço da calça, levanta. Corre. Tropeça. Cai. Machuca a mão direita. Levanta. Corre. Segue correndo. Cai sem tropeçar. Bate o joelho em um tronco. Levanta e anda. Não olha para trás.

Ainda chove. E vai chover por mais trinta e nove dias.

Diego vê algumas lâmpadas acesas, há uma casa. Não tem campainha, ele bate palmas e aparece uma mulher e depois um homem, que o convida para entrar.

Observa o interior da casa, os móveis, o piso, sete quadros em uma parede, uma pequena estante e está confuso. Tem a impressão de que conhece o cenário, mas não lembra em que circunstância esteve no local. O homem diz que Diego pode usar a suíte, há roupas, chinelos e toalhas no armário. A mulher avisa que, após tomar banho, ele está convidado para o jantar.

Enquanto toma banho, Diego observa, pela janela do banheiro, equipes de busca. Dois soldados conversam com o casal e ele escuta a mulher dizer que não viu nenhum desconhecido e o homem confirma a informação.

A água quente escorre pelo corpo de Diego, que está com fome, não lembra a última vez que comeu e sente o cheiro de um cozido, mas ele pretende deitar. E gostaria que tudo o que aconteceu recentemente fizesse apenas parte de um sonho que se dissolvesse em breve sem lembrança nem consequências.

 

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