* Por Renato Maffei *

Quem algum dia não ouviu que “tudo tem uma razão”? Momentos não só difíceis mas duros de entender costumam invocar a máxima para acalentar corações em choque e estados mentais confusos. Por ironia, a declaração mais cabalmente racional entra para radicalizar nossa condição de ignorantes: a razão sempre estará presente, e nós, sem podermos conhecer o traçado completo de suas pegadas. A pulsação angustiada já começa a baixar por vislumbrar uma certeza, embora não repouse em nenhuma outra.

Talvez você pensou que esse quadro encontraria alento nos desígnios secretos de uma inteligência divina extramundana. Ou nas ações misteriosas de substâncias etéreas, algo como matérias sutis intermediárias entre o pensamento e a realidade física, e assim ter algo de palpável para explicar aquele estranho mal-estar que lhe ocorrera na presença de certa pessoa. Lá, onde não se entende nada do que está acontecendo deve residir algum motivo “bom”, e imaginar que há um lugar onde as coisas se resolvem traz um pequeno alívio no agora.

Essas vias de entendimento não parecem meio… fracas? Como a medida do acreditar pode ser tanto maior quanto menor a certeza? Teorias conspiratórias virem a ter mais força de verdade do que conclusões razoáveis? Uma narrativa mítica receber maior confiança e ser percebida com mais sentido do que a conjuntura real que julgou necessário inventá-la? Questões da mesma ordem intrigaram o filósofo Benedito de Espinosa (1632-1677). Ele, que foi excomungado da comunidade judaica, ameaçado e esfaqueado em uma rua escura. Aqui, como em tantos textos jornalísticos, acabo de jogar uma frase aparentemente inócua para provocar no leitor uma indução precipitada de que a pressão social e o atentado foi resultado de sua filosofia e má reputação. E será tão descabido concluir uma coisa da outra?

Para Espinosa, também há razão para todas as coisas. Ele não foi, porém, um intelectual chato a instaurar um fosso entre a luz de sua inteligência e uma sociedade fundada em crenças. Ele não pensava que as superstições vêm do nada e por isso deveriam ser apenas desprezadas. A diferença é que a razão delas estaria dentro da natureza.

Aliás, o que há fora da natureza? Somos feitos de uma só substância infinita, expressões distintas da mesma natureza. Quando a mente pensa, o corpo age simultaneamente (e vice-versa, claro), pois são a mesma substância, só que por expressões diferentes. Quais de seus pensamentos não ocorrem ao mesmo tempo que uma atividade de seu corpo, a começar pelo seu cérebro? Há motivos, sim, para muitos acreditarem no transcendental, mas é uma confusão pensar que apenas bons motivos concedem existência a seres não identificáveis pela mente ou pelo corpo.

As causas dessas crenças devem ser primeiro buscadas nos próprios corpos-mentes, por demandas afetivas que só seriam entendidas se conseguíssemos remontar à completa sucessão de relações que eles estabeleceram com o mundo, e que os inclinaram a se aproximar das ideias que os alegram, assim como a se afastar das ideias que os entristecem. Quando se alegram, os corpos passam por um aumento de potência; quando se entristecem, sua potência cai.

Um imenso campo de reflexão se abre quando reaproximamos os afetos de um entendimento racional e materialista. Por mais que seja objeto de investigação da neurociência, esse campo ainda é claramente relegado a um assunto de menor importância ou à parte. É como se houvesse um consenso, entre grupos variados e por vezes opostos ideologicamente, de que o “desejo não se discute”, apesar dos afetos gritarem tanto por meio das comunicações cotidianas. Do contrário, o que se impõe à discussão são os “fatos” com aparênciade razão, a agenda do momento, a necessidade de estabelecer quem são as pessoas intrinsecamente boas ou más, e nessa urgência o sujeito/objeto imagina-se mais ativo em seu momento histórico. Em um sentido espinosano, porém, ele não é necessarimente ativo se não questiona-se pelos determinantes de suas próprias ideias. Ele apenas acredita que a verdade que mais toca o seu coração é aquela que se impõe ao mundo, e não a ele mesmo, antes de mais nada. E veja que, aqui, não importa ser religioso ou ateu: em ambos aplica-se à vida um esquema de pensamento herdado na superstição. Não sou eu, nem Espinosa quem está criando uma sensação vacilante na fé – o próprio homem de fé já é um vacilante não confesso.

É uma adesão consciente e ativa que forma nossos posicionamentos ou um medo de não fazer parte, de não estar em evidência em certo meio social? Será que o ídolo por mim eleito não representa minha vontade de ter o que ele tem, como contrapartida da fraqueza que não quero ver em mim? Não teria aquele que eu odeio algo que abomino em mim, de modo que o meu ódio dele é na verdade um ódio da minha autoimagem? Essas questões podem até não interessar a muitos, mas sem dúvida são objeto de manipulação do marketing político. E funcionam. Ter uma atitude prática seria então sinônimo de descuidar das determinações afetivas e ficar só com a parte que parece racional, como se houvesse uma mecânica dos acontecimentos em si a decifrar?

Colocar a dinâmica de afetos em pauta mostra-se pertinente em uma época em que o acirramento de oposições nos induz a pensar o outro como louco, incompreensível, fora da realidade. Pois não há lado de fora, não há nada fora da natureza. Estamos a todo tempo afetando e sendo afetados pelo meio, somos a mesma natureza se expressando de maneiras diferentes, em eterna geração e conflito consigo mesma. Nesse sentido não há qualquer garantia de que uma aventura filosófica no sentido da compreensão espinosana nos pouparia de desgostos. É bom saber disso para não prosseguir dando crédito a um eterno ciclo de soluções finitas paliativas perante um devir infinito. Um corpo-mente dotado de maior potência, que conhece e afirma os seus determinantes e por isso é mais livre, possui maior tessitura afetiva, colocando-se mais ativamente no mundo, em vez de se manter retraído. Temos afinal a nossa razão de ser atual, e a liberdade não está em nos livrarmos de nossas causas (o que seria impossível para Espinosa), mas em buscar conhecê-las e experimentá-las em sua concretude. Até porque essas causas também morrem, como todo ser finito.

São muitos os relatos sobre a experiência com o estudo de Espinosa, não só de grandes pensadores como de leigos. Até agora não ouvi nada como só uma simpatia ou gosto por sua filosofia. Eles costumam falar de algo a mais, o que é curioso porque o “mais” emergiu deles mesmos, ainda que com a ajuda do filósofo. Por isso estou seguro de não ter passado um verdadeiro spoiler aqui: há de se rachar o crânio na leitura e compreensão da Ética e de seus comentadores, caminhar refletindo sobre cada uma das proposições da obra, voar no pensamento sem esquecer onde pisou antes e sem conclusões precipitadas, até que começa a se descortinar uma nova intuição da realidade. Não espere milagres.

As descrições habituais de um despertar aludem a revelações, sonhos, conquistas ou mensagens recebidas do além. Mas nem sempre um despertar precisa ser assim, e talvez também não será com aqueles que se permitirem ser afetados por essa imensa teoria de quase tudo. Por causa de Espinosa, da minha vontade de conhecer e mais um monte de causas que me atravessam, apenas acordei para o que sempre esteve aqui. Só faltava eu estar presente.

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Livros para para conhecer a obra do filósofo:

Ética, de Espinosa (Editora autêntica, 240 págs.)

 Tratado político, de Espinosa (WMF Martins Fontes, 216 págs.)

Princípios da filosofia cartesiana e Pensamentos metafísicos, de Espinosa (Editora Autêntica, 320 págs.) 

Vocabulário de Espinosa, de Charles Ramond (WMF Martins Fontes, 84 págs.)

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Renato Maffei é autor de materiais didáticos pela Somos Editora, professor e geógrafo pela Universidade de São Paulo. É escritor do blog Por dentro – crônicas filosóficas 

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