Em 2014, o fotógrafo italiano Christian Piana partiu para o interior de Moçambique em busca de contos, mitos e lendas mantidos vivos pela tradição popular. Numa vila (Caia, na província de Safala, interior de Moçambique) sem ruas asfaltadas, de cabanas de barro e palha e cercada pela savana, documentou em fotos e gravações um costume ameaçado pela modernidade: o das histórias contadas embaixo das árvores ou ao redor do fogo para crianças e jovens. Deste resgate nasceu Contos de Moçambique, título que traz narrativas fantásticas e repletas de sabedorias e humor recolhidas por esse viajante e recontadas pela escritora Luana Chnaiderman de Almeida. Nos contos, é possível conhecer a moça que se casa com um pombo, os cães que fazem os serviços domésticos, a bruxa que deseja devorar o caçador e rói os baobás com seu único dente, a jovem aprisionada em um tambor e o conflito diplomático entre macacos e cágados. Leia uma das narrativas abaixo.

O caçador, os cães e a bruxa

Havia um homem que morava sozinho perto da floresta. Ele era caçador e, na verdade, não morava totalmente sozinho: tinha seis cães. Muitas vezes, entrava na floresta e nunca se perdia, pois era caçador experiente, acostumado com a região. Os cães iam sempre com ele e, além de lhe fazerem companhia, ajudavam-no a encontrar os caminhos e a caça.

Certo dia, no entanto, ele se perdeu. Deu voltas, perambulou entre as árvores, procurou por ali e por aqui, mas não achou o caminho de volta. Os cães farejavam, farejavam, mas também não conseguiam achar rastro do caminho de casa. O dia passou, entardeceu, e ele e seus cães ainda não haviam voltado…

“Onde vou passar a noite?”, pensou o caçador. “Onde eu e meus cães iremos dormir?”

Então ele avistou uma casa bem no meio da floresta. Animou-se todo, pois poderia pedir abrigo a quem nela morasse. A moradora era uma feiticeira, mas o caçador não sabia disso e foi todo feliz pedir-lhe que o deixasse passar a noite lá. No dia seguinte, poderia continuar a caçar e achar o caminho de volta para casa.

A velha deixou que ele e todos os cachorros entrassem e, conforme costume antigo, todos ficaram na frente da fogueira. A velha tinha somente um dente, o que ao mesmo tempo assustou e penalizou o caçador. A fogueira estava tão quentinha e o abrigo tão bom que, em pouco tempo, todos dormiram: a velha, o caçador e os seis cães.

No meio da noite, a feiticeira acordou. Levantou-se, pegou uma barra de ferro e a esquentou no fogo.

O que ela queria fazer com aquilo? Furar e matar o caçador, para depois comê-lo.

A feiticeira estava muito animada com o banquete humano que havia aparecido lá, na frente de sua casa.

Esquentou bastante o ferro e estava prestes a furar o caçador quando os cães, que também haviam acordado, colocaram-se entre ela e o homem.

Com medo daqueles seis bichos, a velha de um dente só não ousou aproximar-se.

O ferro esfriou, e ela o colocou novamente para esquentar na fogueira. Cada vez que a bruxa retirava o ferro quente para matar o caçador, os cães se colocavam entre ela e o homem. A velha, com medo, não conseguia fazer nada. Enquanto isso, o homem dormia um sono pesado, sem nem sonhar com o que estava acontecendo.

A bruxa esquentava o ferro na fogueira, tirava-o e ia furar o homem, mas os cachorros a impediam. Esquentava o ferro, tirava-o, ia furar o homem, e os cães a impediam. Tentou várias vezes, durante a noite inteira. Mas nada. Os cães sempre defendiam seu dono.

 

No dia seguinte, pela manhã, o caçador acordou todo contente, sem saber o que havia acontecido. Se os cães pudessem falar, contariam, mas eles só latiam, e o homem achou que era de animação com o novo dia.

A bruxa não se conformava com aquilo. Onde já se viu, ver sua refeição indo embora assim, vivinha da silva?

Ela tinha um belo terreiro, com embondeiros ao redor da casa. Os embondeiros são baobás, árvores enormes e muito antigas, que dão sombra e abrigo para todos da região. Eles estavam carregados de frutos. A feiticeira disse ao caçador:

— Antes de ir, me faça um favor? Eu sou velhinha e não consigo subir nesses embondeiros. Você pode subir em um deles e pegar as frutas? Preciso delas e não consigo tirá-las sozinha…

O homem respondeu:

— Claro que sim!

Em agradecimento à velha, subiu na primeira árvore que encontrou, um embondeiro gigante e cheio de frutos. Quando chegou ao topo, todo contente, começou a colher os frutos. Foi quando a velha gritou:

— Epa! Nem precisa colher os frutos! Você escapou durante a noite, mas agora não escapa! Eu ia matá-lo, mas seus cães o defenderam!

Agora você está aí em cima, sozinho! Seus cachorros foram embora quando o viram subindo, subindo, subindo na árvore em direção ao céu.

O caçador ficou olhando para ela com cara de quem não estava entendendo nada: ela não era uma pobre velhinha solitária que morava na floresta? Que história era aquela de tentar matá-lo durante a noite? E por que ele havia feito o esforço de subir naquela árvore enorme se ela nem queria os frutos?

A velha continuou a gritar, ao pé do embondeiro:

— Eu quis que você subisse para que seus cachorros fossem embora! Agora eu vou derrubar esse embondeiro, com você aí em cima! Vou roer todo o tronco com meu único dente, matá-lo e comê-lo, sem que seus cães possam fazer coisa alguma. Eles nem estão aqui!

Os cães, ao verem o dono subir na árvore, de fato se desinteressaram e foram fazer outra coisa.

A velha continuou a gritar:

— Você vai ver! Agora, sim! Você vai ser a minha carne! Eu vou comê-lo! Vou derrubar a árvore e você vai morrer!

O caçador, muito assustado, pôde ver lá de cima a velha roendo o tronco com seu único dente, que parecia feito do mais afiado metal.

A velha roía, roía, roía, e logo o tronco foi ficando fininho, fininho…

O caçador sentiu o tronco balançando para lá e para cá. E viu que logo iria cair nos braços da velha faminta e roedora.

Acontece que ele era muito atlético e, além de subir em árvores, era capaz de dar saltos muito compridos. Ao cair, a árvore aproximou-se de outro embondeiro, e o homem saltou para a outra árvore.

A velha ficou furiosa, mas parou de gritar, talvez para poupar suas forças. Aproximou-se do outro tronco e começou a roê-lo com seu único dente. Roeu, roeu e roeu, até que o tronco enorme ficou fininho e começou a balançar…

O caçador saltou novamente para a árvore seguinte e subiu cada vez mais alto.

A velha não aguentou e voltou a berrar:

— Você não me escapa! Você vai ser minha carne e eu vou comê-lo!

E roía, roía, roía cada árvore até derrubá-la, mas sempre o homem conseguia pular para a seguinte. E assim foi com todos os embondeiros até chegar ao sétimo e último.

O homem ficou triste e se lembrou dos cães, pois sabia que não poderia mais escapar. Aquele era o último embondeiro e seriam necessários pelo menos uns cem anos até que o próximo nascesse e crescesse o bastante. Estava triste pelo destino das árvores e dos cães. Por causa de tanta tristeza, começou a cantar enquanto a velha roía, roía, roía, com seu único dente, o tronco do sétimo embondeiro:

— Estou morrendo, Matchima. Estou morrendo, Matchima.

Matchima era o nome de seu cão preferido, o mais velho e sábio, chefe dos outros. Os cães estavam na floresta brincando e se divertindo, mas escutaram o canto do dono. Finalmente perceberam o que estava acontecendo e correram para salvá-lo. Correram tão rápido que a velocidade fez surgir uma tempestade, uma tempestade tão forte que poderia abater o último embondeiro.

A velha ficou contente:

— Ainda bem! Uma tempestade! Venha, tempestade! Meu único dente já está cansado de roer tantos embondeiros. Venha, tempestade! Ela nem suspeitava de que a tempestade tivesse sido provocada pela velocidade dos cães. Os cães chegaram em meio à chuva e ao vento. Fizeram a velha em pedaços e derrubaram a árvore para o dono descer.

A feiticeira morreu e o caçador foi salvo por seus cães. Nunca mais se perderam.

*

Contos de Moçambique, organização de Christian Paina, adaptação de Luana Chnaiderman de Almeida (FTD Educação, 96 págs.)

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