* Por Karina Sérgio Gomes *

A artista visual Marilá Dardot cresceu entre livros. Nascida em Belo Horizonte, o pai da mineira foi o maior incentivador para que ela se interessasse por literatura. O amor pelas palavras fez com que as frases, versos, letras e livros entrassem de forma natural na sua arte. Depois de uma primeira formação em Comunicação Social, Marilá foi estudar artes visuais na Escola Guignard, em 1997. Percebeu que estava pela primeira vez diante de um trabalho que reconhecia como uma obra, quando realizou “O livro de areia”, de 1999, inspirado no conto homônimo do argentino Jorge Luís Borges. “Foi a primeira algo que me fez pensar: ‘isso aqui é o meu trabalho'”. Desde então, as palavras, a literatura e os livros não saíram mais do repertório visual dessa artista que aprecia também a fisicalidade do objeto e não gosta de ler PDF.

Atualmente, Marilá vive em Portugal. Um dos dramas de trocar de país por tempo indeterminado foi se separar da sua biblioteca. Nessa entrevista para a São Paulo Review, a artista conta sobre a sua relação com a literatura e diz que considera os autores com os quais trabalha seus colaboradores.

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Antes da sua formação em artes visuais pela Escola Guignard, você se formou em Comunicação Social. Fale um pouco sobre essa primeira formação. Quando saí da escola, não tinha um caminho claro do que queria fazer. Cheguei a prestar vestibular para artes plásticas na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), mas, na época, você fazia primeiro um teste de aptidão e eu não passei. Também não sabia se queria ser artista. Porém, passei na minha segunda opção, que era Comunicação Social. Cheguei a fazer um semestre de jornalismo, mas vi que não era isso. Então, passei para Rádio e TV. Provavelmente, se eu não tivesse feito comunicação antes, aos 18 anos, eu não teria me tornado artista. Naquela época, eu não tinha maturidade para desenvolver um trabalho próprio. Enquanto eu estudava Comunicação Social, pude fazer algumas matérias na Faculdade de Filosofia, outras na Letras. Tive aulas de semiótica que foram superimportantes. Depois que eu me formei, comecei a trabalhar com publicidade. E logo vi que não queria aquilo para minha vida. Foi quando entrei para Escola Guignard, já com uma bagagem tanto de vida quanto de teoria.

De onde vem o seu interesse pela literatura? A literatura sempre fez parte da minha vida. Sempre fui leitora. Meu pai, que era arquiteto, gostava muito de ler e me dava muitos livros. Toda semana me trazia um. Eu comecei a ler muito por causa dele. Às vezes, ele estava lendo um livro e me contava a história adaptando para o universo infantil.

Como a literatura entrou para o seu trabalho de arte? Em 1999, tinha acabado de sair o Diário da Frida Khalo (da editora José Olympio). Nessa época, ficou muito em alta o livro de artista, mas sabia que aquilo eu não queria fazer. Nesse mesmo ano, a partir do conto “O livro de areia”, de Jorge Luís Borges, fiz um livro feito de espelhos e dei o mesmo nome. Foi a primeira arte que fiz algo que me fez e pensar “isso aqui é o meu trabalho”. E ele condensa questões que vão permear minha obra no futuro: além da literatura, a participação do espectador.

Você entende a releitura de um livro para uma obra de arte como uma adaptação para o cinema? Gosto de pensar como um diálogo. Mais do que uma adaptação, acredito que seja uma colaboração. Eu considero um pouco esses autores como colaboradores. É um diálogo com aquela obra. Com o que ela me fez querer dizer, para aonde que ela me leva, o que que ela suscita. Eu não estudei literatura, é uma relação de leitora, mesmo quando eu uso obra de filosofia. Mas eu acho que são sempre usos atrevidos sem nenhuma pretensão acadêmica. O trabalho reflete mais as minhas sensações quanto leitora.

Não apenas a literatura faz parte do seu trabalho, mas o livro como um objeto também está muito presente. Comente um pouco sobre essa sua relação com esse objeto. Gosto do objeto livro, não gosto de ler PDF. O começo da minha biblioteca foi com alguns livros roubados da biblioteca dos meus pais e outros comprados em sebo, que trazem a história do objeto. Eles têm marcas de leitura, coisas encontradas. Esses itens encontrados inspiraram o trabalho “Sebo”, feito em parceira com o artista Fábio Morais. O livro aparece no meu trabalho também como um objeto escultórico, como em “Terceira margem” (2007) e “Volta ao dia em 80 mundos” (2013) “O livro das mil e uma noites” (2014). Quando fiz uma residência em Viena, foi a primeira vez em que fiquei um tempo em um lugar em que eu não falava a língua. Eu visitava os sebos e achava os livros lindos, mas não tinha a mínima ideia do que estava escrito. Porém achava linda a paleta de cor. E comecei a ficar fascinada. Todas as vezes que viajo para algum país em que desconheço o idioma, eu sempre vou atrás dos livros antigos, em sebo, para saber se a paleta de cor muda, como são as guardas. Quando fui para a Eslováquia, que tem uma grande tradição de desenho de animação, percebi que as guardas eram superilustradas. Eu comecei a perceber que o design dos livros traduziam uma cultura. Essa pesquisa resultou na série “Minha Biblioteca” (2014-2018).

Você disse em uma entrevista que o seu processo de criação é um tanto caótico. Em geral começa com uma imagem ou com uma palavra? Às vezes, é um texto ou um livro. Às vezes, é da obra mesmo. Para o Parque das Esculturas, em Londres, eu queria fazer esse um muro de espelho com uma frase transparente, que atravessasse o espelho revelando a paisagem por detrás dele. Então, veio primeiro a imagem do trabalho para esse lugar em específico. Fui à minha biblioteca e peguei um livro de poemas da Patti Smith. O livro tinha um post-it. Na página marcada, li a frase: “the landscape is moving”. O verso era exatamente o que eu queria colocar no muro (de 2013, que leva o mesmo nome). Talvez eu tenha criado o trabalho a partir daquela frase sem saber e, no final, as coisas se juntaram.

Você já pensou em escrever um livro ou se dedicar à escrita? Em alguns trabalhos escrevo um pouco. Mas nunca pensei a sério nisso. Quando eu fazia comunicação, cheguei a escrever uns contos. Sempre gostei muito de escrever cartas. No caso das minhas cartas, eu escrevo com uma preocupação estética da escrita. Com o desejo de que ela cause uma recepção estética, como se a forma pudesse provocar uma reação. A editora Par(ent)esis editou em 2009 um livro de cartas trocadas entre mim e Fabio Morais, o “blá blá blá”. Eu e Fabio também temos um trabalho em video, o “Correspondência”, de 2008, em que trocamos “e-mails” datilografados A gente parou de escrever cartas, é uma coisa que vem se perdendo. Hoje, a gente manda Whats’app. O emoji é tudo que abomino. É a maior massificação de qualquer sentimento. As sutilezas e a subjetividade da escolha das palavras não existem num emoji. Estou lendo o livro Cartas a los Jonquières, do Cortázar, que reúne suas cartas à família Jonquières desde quando ele foi morar na França, em 1950. São cartas em que descobrimos sobre seus processos de trabalho, lemos trechos de contos, o nascimento dos cronópios, observações sobre exposições que visitou, mas também falam de assuntos práticos e corriqueiros: listas de livros para comprar, questões que envolvem dinheiro.

Você sublinha seus livros e faz marginalizas? Não, eu não rabisco livros. Eu sempre coloco post-its.

Porém no trabalho “Avant et après la lettre”, você picota os livros. Para esse trabalho eu escolhia livros sem valor literário, abandonados em sebos, que não me provocavam pudor em destruir. Mas, de certa forma, este trabalho anuncia um pouco um distanciamento da minha obra da minha biblioteca, dos meus autores admirados, para outras narrativas, como os discursos da mídia impressa.

Você está morando em Portugal. Como é viver longe da sua biblioteca? Na primeira viagem, eu trouxe apenas cinco livros. Aí, todas as vezes que vinha do Brasil, trazia mais alguns de filosofia e mais alguns autores que eu não consigo viver sem, como Roberto Bolaño, Julio Cortázar, Jorge Luis Borges, Murilo Mendas, Ana Cristina César, Manoel de Barros… Mas a biblioteca vai crescendo com os livros que vou comprando por aqui. Agora o problema vai ser voltar com os livros.

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Karina Sérgio Gomes é jornalista e pesquisadora de artes visuais

Imagens conforme a ordem que aparecem na matéria: “Livro de Areia”; obra presente em Inhotim (MG); e obra “O leitor”, todos de Marilá

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