Meu pai tentou me ensinar a nadar muitas vezes – numa piscina, na parte rasa de um lago –, mas nada funcionou. É que eu tinha medo demais da água, especialmente de estar com água acima da minha cabeça. Por fim, ele perdeu a paciência. Num dia de verão, quando estávamos no litoral, ele me levou num barquinho a remo até bem longe da praia e me jogou na água como um cachorro. Eu tinha 6 anos.

Entrei em pânico. A última coisa que vi antes de afundar no Adriático foi meu pai indo embora, remando, de costas para mim, sem nem mesmo olhar de relance para trás. Então comecei a afundar, sem parar, agitando os braços, com a água salgada se acumulando dentro de mim.

Mas, enquanto eu me afogava, não conseguia parar de pensar no meu pai indo embora no barquinho, sem virar a cabeça para olhar para mim. E isso me deixou com raiva, mais do que com raiva – eu fiquei furiosa. Parei de respirar água; e, não sei como, meus braços que se agitavam e minhas pernas que se debatiam me fizeram subir de volta à superfície. De lá, nadei até o barquinho.

Vojo deve ter me ouvido, porque continuou sem olhar para trás. Ele simplesmente estendeu a mão, agarrou meu braço e me puxou para dentro do barco.

E era assim que os partisans ensinavam os filhos a nadar.

Com o tempo, minha mãe comprou de volta muitos desses quadros dos nossos parentes e os pendurou nas paredes da sua casa. Ela sentia orgulho dos quadros, mas eu ficava muito envergonhada. Hoje, várias galerias do mundo inteiro com as quais trabalho de vez em quando ouvem alguém dizer: “Tenho um quadro original assinado por Marina Abramović!” Mas tenho vontade de morrer quando vejo essas telas, porque as fiz por dinheiro e sem nenhum sentimento. De propósito, eu as fiz num estilo muito kitsch, finalizando cada uma em quinze minutos. Quando minha mãe morreu, peguei todos os quadros que lhe pertenciam, cerca de dez, e os guardei num depósito. Tenho de descobrir o que fazer com eles. Pode ser que eu os queime. Ou – como por fim aprendi a expor aquilo de que mais me envergonho – talvez os mostre ao mundo em todo seu glorioso estilo kitsch.

Na Academia, eu pintava de maneira acadêmica: nus, naturezas-mortas, retratos e paisagens. Mas também comecei a ter novas ideias.

Por exemplo, tornei-me fascinada por acidentes de trânsito; minha primeira grande inspiração foi a de fazer quadros a partir deles. Eu colecionava fotografias de jornal com desastres de automóveis e caminhões. Também tirei proveito dos contatos do meu pai na polícia para ir à delegacia e perguntar se algum acidente grave tinha acontecido. E então passei a ir aos locais das batidas para tirar fotografias e fazer esboços. Mas tinha dificuldade em traduzir a violência e o caráter imediato desses desastres para a tinta na tela.

Em 1965, porém, quando eu estava com 19 anos, fiz um tipo de quadro inovador: era uma pequena pintura intitulada Three Secrets [Três segredos]. Esse quadro muito simples mostra três pedaços de tecido – um vermelho, um verde, um branco – cobrindo três objetos. A tela me pareceu importante porque, em vez de apresentar uma imagem facilmente digerível, transformava o espectador num participante da experiência artística. Exigia que a imaginação fosse usada. Permitia a incerteza e o mistério. Para mim, ela abria uma porta de acesso ao plakar do meu inconsciente.

E então veio 1968.

Depois da Segunda Guerra Mundial, a Iugoslávia de Tito tinha rompido com a União Soviética e se declarado um estado comunista independente, não alinhado com o Oriente nem com o Ocidente. Nossa vitória épica contra os nazistas era um enorme motivo de orgulho, assim como nossa independência.

Mas, na realidade, Tito não era assim tão independente. Ele era, sim, bastante habilidoso em jogar os soviéticos e os chineses contra o Ocidente; e em aceitar favores dos dois lados. Ele alegava que sua doutrina de “autogestão”, que permitia aos trabalhadores decidir quanto aos resultados do trabalho, era mais fiel aos ensinamentos de Marx do que o comunismo stalinista. No entanto, Tito tinha criado na Iugoslávia um culto à personalidade, e seu governo de um único partido se tornou vítima da corrupção, com autoridades de todos os escalões acumulando fortuna, bens e privilégios, enquanto a vida da classe trabalhadora era de um desalento anêmico.

O ano de 1968 foi terrível, uma época de perturbações pelo mundo inteiro. Nos Estados Unidos, Martin Luther King Jr. e Bobby Kennedy foram assassinados. Até mesmo Andy Warhol levou um tiro e quase morreu. Nos Estados Unidos, na França, na República Tcheca e na Iugoslávia, estudantes em busca da liberdade estavam na vanguarda das convulsões políticas.

Em Belgrado, naquele ano, era crescente a desilusão com o partido comunista – de repente sentíamos que aquilo tudo tinha sido só de fachada. Não tínhamos liberdade nem democracia.

Naquela época, eu ainda era muito chegada ao meu pai e descobri algo surpreendente: embora Tito tivesse nomeado Vojo para sua guarda de elite após a guerra, ele o havia rebaixado para uma unidade militar inferior em 1948. Os anos do pós-guerra foram um período de sentimento antissoviético exacerbado na Iugoslávia, e meu pai simplesmente tinha amigos demais que eram simpatizantes do regime soviético. Muita gente foi presa nessa época, sendo que meu pai só escapou desse destino por um triz. Vojo se sentia traído pessoalmente por Tito, mas sempre acreditou que uma versão mais verdadeira do comunismo acabaria por surgir. Vinte anos depois, ele tinha perdido essa esperança.

Ele nunca tinha falado sobre nada disso comigo. (De repente, vi o simbolismo no fato de ele usar meu cachecol de Pioneira como uma touca.) A decepção arrasou meu pai. Ele pegou todas as fotografias dele e de Tito juntos e cortou a parte do líder iugoslavo, deixando só a si mesmo. Ficou ainda mais perturbado quando, com o tempo, todo o mundo na linha de sucessão do governo foi sendo afastado. Tanto que, à medida que Tito envelhecesse – àquela altura ele já estava com 70 e poucos anos – e precisasse passar o comando adiante, não haveria ninguém para substituí-lo.

Em junho de 1968, todo o mundo que eu conhecia em Belgrado apoiava as manifestações estudantis. Os estudantes desfilavam por toda a cidade e ocupavam prédios da universidade. Havia cartazes pelo campus inteiro, com dizeres como abaixo a burguesia vermelha e mostre a um burocrata que ele é incapaz e logo ele lhe mostrará do que é capaz. A polícia de choque encheu as ruas e então isolou o campus. Como presidente do partido comunista na Academia de Belas-Artes, eu fazia parte do grupo que ocupava nosso prédio. Nós dormíamos lá. Fazíamos reuniões barulhentas e inflamadas que duravam a noite inteira. Eu estava literalmente disposta a morrer pela causa, e achava que todos tinham a mesma disposição.

Meu pai tomou uma atitude que me causou uma impressão profunda. Todo elegante, de capa de chuva e gravata, com o topete alto e majestoso, ele se postou no meio da praça Marx e Engels e proferiu um discurso vibrante, renunciando à sua condição de membro do partido comunista e condenando a burguesia vermelha da Iugoslávia, assim como tudo o que ela significava. No clímax do seu discurso, ele atirou o cartão de membro do partido no meio da multidão: um gesto espantoso. Todos aplaudiram feito loucos. Como senti orgulho dele!

No dia seguinte, um soldado devolveu o cartão ao meu pai, alegando que ele precisaria do documento caso quisesse continuar recebendo sua aposentadoria.

Os estudantes elaboraram uma petição com doze pontos que queríamos que o governo aceitasse. A intenção era irmos à luta, a não ser que o governo concordasse com todos eles. Nós exigíamos liberdade de imprensa e liberdade de expressão; reivindicávamos o pleno emprego, um aumento do salário mínimo e reformas democráticas a serem aplicadas à Liga dos Comunistas. “As relações culturais devem ser de tal ordem que a comercialização se torne impossível e que sejam criadas condições para que estabelecimentos culturais e dedicados à criatividade sejam abertos a todos”, exigíamos.

O que tínhamos em mente com esta última reivindicação era obter um centro cultural estudantil. O local desejado era um prédio na avenida Marechal Tito, onde os funcionários da polícia secreta costumava jogar xadrez e suas esposas, com suas echarpes de seda, iam bordar, fofocar e assistir a filmes. Era uma construção muito impressionante – semelhante a um castelo – com a estrela comunista no telhado e retratos enormes de Tito e Lenin no saguão.

Nós aguardávamos ansiosos pela resposta de Tito à nossa petição. Por fim, na manhã de 10 de junho, foi anunciado que ele se pronunciaria às três horas naquela tarde. Às dez da manhã, houve uma reunião de todos os representantes universitários. Compareci a essa reunião, achando que, se o governo não aceitasse todos os pontos da nossa petição, nós continuaríamos com as manifestações até o fim. Isso significaria barricadas, armas de fogo, sérios confrontos com a polícia e até mesmo a morte para alguns de nós.

Em vez disso, todos os outros presentes só conseguiam falar na festa que daríamos depois do discurso de Tito! Eles estavam pensando em quem ia cantar e que comida íamos pedir. “Mas como podemos planejar uma festa se nem mesmo sabemos o que ele vai dizer?”, perguntei. Todos olharam para mim como se eu fosse uma perfeita idiota. “Não seja tão ingênua”, disseram. “Não faz diferença o que ele disser. Está tudo terminado.” Perguntei, então: “O que vocês querem dizer?” Eu não conseguia acreditar. Eles estavam dispostos a aceitar o que Tito oferecesse, mesmo que ele não oferecesse nada. O que significava que aquela história toda tinha sido só uma simulação, um exercício vazio. Como me senti traída!

Voltei para a Academia de Belas-Artes e esperei. Às três da tarde, Tito fez um discurso emocionante e muito inteligente. Ele elogiou o engajamento político dos estudantes (que conseguiu associar à sua doutrina de autogestão). Dobrou o salário mínimo (do equivalente a 12 dólares para 24 dólares por mês). E aceitou quatro dos pontos da nossa petição – incluindo o centro cultural estudantil que queríamos.

As assembleias do governo estudantil, que já estavam dispostas a aceitar qualquer migalha que Tito lhes lançasse, ficaram encantadas. Os estudantes encerraram a ocupação dos prédios universitários e, enquanto fogos de artifício iluminavam o céu noturno, desfilaram em triunfo por toda a Belgrado. Com uma sensação que não tinha nada a ver com o triunfo, atirei meu cartão de membro do partido numa fogueira e fiquei olhando enquanto ele queimava e se retorcia.

Uma semana depois, avistei meu pai na rua, beijando a bela jovem loura que se tornaria sua segunda mulher. Ele fingiu que não me viu. Só fomos nos ver outra vez dez anos mais tarde.

Depois das manifestações, comecei a me reunir com cinco colegas meus, estudantes da Academia. Os encontros eram informais porém regulares, para falar sobre arte – e para nos queixarmos da arte que estavam nos ensinando. Todos eram rapazes, menos eu. Chamavam-se Era, Neša, Zoran, Raša e Gera. Nós nos reuníamos na Academia (apesar da concessão feita por Tito, o pessoal da polícia secreta e suas esposas relutaram em liberar o centro social de imediato) e bebíamos café, sem parar. Estimulados pela cafeína, falávamos sem parar, muitas vezes até de noite, com todo o ímpeto e veemência da juventude.

Esse foi um dos períodos da minha vida em que fui realmente feliz. Eu acordava de manhã, ia para meu ateliê e pintava; depois me reunia com esses caras e conversava; então voltava para casa – sempre antes das dez da noite – e me levantava no dia seguinte para fazer tudo de novo.

O assunto que nós seis debatíamos, obsessivamente, era uma forma de ultrapassar a pintura: um modo de inserir a própria vida na arte.

Meus quadros de acidentes automobilísticos continuavam a me frustrar. Por um tempo, em telas quadradas muito grandes, com um metro e meio de largura, comecei a pintar nuvens. Não nuvens realistas, mas algo como símbolos de nuvens – como pesadas formas de amendoins pairando sobre campos monocromáticos. Às vezes, nessas nuvens, aparecia um corpo: o corpo nu de uma grande senhora de idade que costumava posar na Academia, sempre visto de trás. Às vezes, ela se transformava na paisagem. Isso acompanhava uma fantasia que eu tinha quando menina – a de que o universo inteiro, tudo o que conhecemos, não é nada além de uma pedrinha no salto do sapato de uma gorda senhora cósmica.

No Ocidente, lado a lado com as revoluções na política e na música popular, a arte estava apresentando mudanças impressionantes. Na década de 1960, uma nova vanguarda começava a rejeitar a velha ideia da arte como mercadoria, como quadros e esculturas que pudessem ser colecionados; e novas ideias da arte conceitual e performática passavam a ganhar espaço. Algumas dessas ideias se infiltraram na Iugoslávia. Meu pequeno grupo de seis falava sobre os conceitualistas dos Estados Unidos (onde gente como Lawrence Weiner e Joseph Kosuth estava fazendo peças em que as palavras eram tão importantes quanto os objetos); o movimento Arte Povera, na Itália, que transformava objetos do dia a dia em arte; e o movimento Fluxus, anticomercial e antiarte na Alemanha, cujos expoentes foram Joseph Beuys, Charlotte Moorman e Nam June Paik, artistas de happening e performances provocativas. Havia um grupo esloveno chamado oho, que rejeitava a arte como uma atividade separada da vida: para eles, absolutamente qualquer parte da vida poderia ser arte. Já faziam arte performática em 1969: em Liubliana, um artista chamado David Nez fez uma peça intitulada Cosmology [Cosmologia], na qual ele ficava deitado dentro de um círculo no assoalho, com uma lâmpada suspensa logo acima do seu estômago, e tentava respirar em sintonia com o universo. Alguns membros do oho vieram a Belgrado para falar sobre suas crenças. Levantei-me no auditório e os elogiei.

O exemplo deles me inspirou. Em 1969, propus ao Centro da Juventude de Belgrado minha primeira ideia para uma peça performática de minha autoria. Ela envolvia o público e era intitulada Come Wash with Me [Venha lavar comigo]. Minha ideia consistia em instalar tanques de lavanderia em torno da galeria no Centro da Juventude. Quando os visitantes entrassem, eles tirariam as roupas e eu as lavaria, secaria e passaria. Quando recebessem seus trajes de volta, os visitantes da galeria poderiam se vestir de novo e sair limpos, tanto literal quanto metaforicamente. O Centro da Juventude rejeitou minha ideia.

No ano seguinte, propus mais uma performance a eles. Eu me postaria diante de uma plateia com minhas roupas normais e, aos poucos, mudaria de roupa para usar o tipo de vestimenta que minha mãe sempre comprava para mim: saia comprida, meias grossas, sapatos ortopédicos, blusa feia de bolinhas. Então, levaria à minha cabeça uma pistola com uma bala no tambor e puxaria o gatilho. “Essa performance tem dois finais possíveis”, dizia minha proposta. “E, se eu sobreviver, minha vida terá um novo início.”

Mais uma vez, fui rejeitada.

No meu último ano na Academia, me apaixonei por um dos caras do meu grupo. Neša estava com 30 anos, tinha os cabelos finos de um louro-avermelhado, sobrancelhas expressivas e feições estranhas, marcantes, impressionantes. Ele me lembrava um personagem num filme de Ingmar Bergman. Era muito talentoso; sua cabeça funcionava de maneira inusitada. De algum modo, ele era diferente de qualquer outra pessoa que eu conhecia. Para um festival de artes na cidadezinha serrana de Groznjan, na Ístria, Neša içou uma lona vermelha monocromática de um lado ao outro da praça da cidade ao nascer do sol: chamou a peça de Red Square [Praça Vermelha]. Para mim, o que havia de mais sexy nele eram suas ideias. Começamos a passar mais tempo juntos, mas eu ainda precisava estar em casa todas as noites às dez – o que não era o ideal para um relacionamento.

Formei-me na Academia na primavera de 1970, com a nota de 9,25, sendo 10 a máxima. Meu diploma me conferia o grau de “profissional de pintura acadêmica e, desse modo, todos os direitos associados a esse título”. Era uma distinção estranha e conflitante (e, até o fim da vida, minha mãe conseguia me tirar do sério ao endereçar suas cartas para mim com “Marina Abramović, Pintora Acadêmica”). Mesmo assim, ele era um incentivo para que eu continuasse a pintar, pelo menos por um tempinho.

Pouco depois de eu me formar, fui para Zagreb, na Croácia, para um curso de pós-graduação no ateliê principal do pintor Krsto Hegedušić. Foi uma honra imensa ser selecionada para ter essas aulas: ele nunca aceitava mais que oito alunos de uma vez. Hegedušić estava velho e era muito famoso por seus quadros de gênero, com camponeses e paisagens fortemente delineadas de campos de cultivo – uma espécie de Thomas Hart Benton iugoslavo. Não exatamente um parceiro natural para mim! Embora eu também me lembrasse de que Jackson Pollock havia estudado com Benton, e o resultado tinha sido ótimo. E eu gostei muito de Hegedušić. Ele disse duas coisas de que sempre me lembrei. A primeira: se você se tornar tão habilidoso no desenho com a mão direita a ponto de conseguir fazer um bonito esboço de olhos fechados, passe imediatamente a usar a mão esquerda para evitar a repetição de si mesmo. E a segunda: não se iluda achando que tem ideias. Se você for um bom pintor, disse Hegedušić, pode ser que tenha uma única boa ideia. Se você for um gênio, talvez chegue a ter duas, e só. E ele tinha razão.

Para mim, o melhor aspecto de Zagreb estava no fato de aquela ser a primeira vez que eu saía de casa. Era muito empolgante escapar do controle da minha mãe. Mas eu também fiquei longe de Neša, que começou a me escrever cartas, perguntando se nós ainda devíamos continuar juntos, mesmo estando em cidades diferentes. Meus sentimentos por ele eram muito ambíguos.

De qualquer forma, enquanto isso, eu estava livre. Aluguei um quarto minúsculo, com uma pequena cozinha compartilhada, do outro lado do corredor. Alguns amigos meus da Academia também estavam em Zagreb, entre eles uma garota croata que eu conhecia, Srebrenka, que estudava para ser crítica de arte. Ela era uma pessoa muito melancólica – tão melancólica que estava sempre nos dizendo que ia cometer suicídio. Dizia isso com tanta frequência que nós todos meio que ficamos fartos. “Vá em frente! Nos deixe em paz!”, era o que lhe dizíamos.

Srebrenka morava no fim da minha rua. Numa manhã, eu tinha combinado de me encontrar com ela para tomar café, mas estava chovendo demais naquele dia, e não fui. E naquela tarde chuvosa ela realmente cumpriu o que ameaçava fazer: cometeu suicídio. Mas nós, eslavos, quando fazemos alguma coisa, vamos fundo! Ela não cometeu um suicídio simples, mas, sim, um quádruplo. Abriu o gás no forno, cortou os pulsos, tomou soníferos e se enforcou.

No enterro, todos os seus amigos compartilhavam o mesmo sentimento – estávamos com raiva. Todos nós vivíamos fartos de suas ameaças constantes de suicídio e ficamos furiosos com o desperdício da sua vida. Ela era tão nova, tão bonita. Mas havia também alguma culpa. Eu pensei: Meu Deus, se eu tivesse me encontrado com ela naquela manhã, talvez ela não tivesse feito o que fez.

O enterro foi às onze da manhã. Mais uma vez, chovia de modo intermitente. O tempo estava esquisito – às vezes o sol dava uma espiadinha por alguns segundos e então sumia. Quando cheguei em casa, chovia muito de novo. Por volta das cinco da tarde, deitei-me na cama, exausta por conta do longo dia. Meu quarto estava na penumbra. Fechei os olhos e, quando os abri, vi Srebrenka, com perfeita nitidez, sentada ao pé da minha cama, olhando para mim com um sorriso vitorioso no rosto, como se dissesse: “Finalmente consegui.”

Quase tive um treco. Levantei da cama com um pulo, acendi as luzes. Srebrenka tinha desaparecido. Mas, durante alguns dias, sempre que eu atravessava o corredor até a cozinha, num instante antes de acender a luz, eu sentia uma mão se fechar sobre a minha, com muita delicadeza. E depois isso passou.

Na ocasião, eu não sabia e agora continuo sem saber quem ou o que cria esse mundo invisível; mas sei, sim, que ele pode ser perfeitamente visível. Convenci-me de que, quando morremos, o corpo físico morre, mas sua energia não desaparece – ela apenas assume formas diferentes. Passei a acreditar na ideia de realidades paralelas. Creio que a realidade que vemos agora é uma determinada frequência e que todos nós estamos na mesma frequência; por isso, somos visíveis uns aos outros, mas é possível mudar de frequência. Entrar numa realidade diferente. E, para mim, há centenas dessas realidades.

Eu já não me sentia bem no meu quarto em Zagreb. Um dia, pouco depois da morte de Srebrenka, houve uma tempestade, e uma das vidraças da janela quebrou e caiu em cima da minha cama. E eu estava tão deprimida, tão perdida, que nem me dei ao trabalho de recolher os cacos de vidro dos lençóis. Simplesmente me deitei e dormi profundamente. Quando acordei no dia seguinte, estava sangrando. Estava na hora de voltar para Belgrado.

Finalmente o pessoal da polícia secreta e suas esposas saíram, e nós conseguimos nosso centro cultural estudantil – o skc. E o skc ganhou uma diretora fantástica, uma jovem chamada Dunja Blažević. Dunja era historiadora da arte, e o pai dela era presidente do parlamento croata, o que significava que ela tinha o privilégio de percorrer o mundo apreciando a arte. Dunja tirava proveito total da sua posição – de fato, ela viajara muito e era extremamente informada e receptiva. Pouco antes da abertura do centro, Dunja tinha comparecido à primeira documenta, uma mostra de arte de vanguarda na Alemanha sob o comando de um brilhante curador suíço, Harald Szeemann. Szeemann realmente difundiu a arte conceitual e performática. Dunja absorveu tudo aquilo. Quando voltou para Belgrado, empolgada e cheia de inspiração, ela propôs a primeira mostra do skc, que intitulou Drangularium – ao pé da letra, “quinquilharium”, ou “Pequenas Coisas”.

O objetivo da mostra era permitir que artistas plásticos exibissem objetos do dia a dia que, de algum modo, fossem significativos para eles, em vez de obras de arte propriamente ditas. A ideia tinha como origem a Arte Povera da Itália. Cerca de trinta artistas plásticos, entre os quais eu estava incluída, foram convidados a participar.

Foi uma exposição maravilhosa. Gera, um dos caras do meu grupo de seis, apresentou um velho cobertor verde, cheio de buracos, que ele usava no ateliê. Ele escreveu no catálogo que, em vez de ser significativo, aquele era o objeto mais desprovido de significado que conseguiu imaginar. Uma amiga minha, Evgenija, levou a porta do seu ateliê. “Um objeto prático com o qual entro em contato todos os dias através da maçaneta”, escreveu ela. Raša, outro membro do meu grupo, levou sua bela namorada e a sentou numa cadeira ao lado de uma mesinha de cabeceira azul com uma garrafa em cima. “Não tenho nenhuma desculpa racional para os objetos que apresentei”, escreveu ele. “Não desejo que eles sejam interpretados em termos simbólicos.” Mas, para nós, ele admitiu o verdadeiro motivo para sua escolha: “Sempre faço sexo com minha namorada antes de ir trabalhar.”

Minha peça estava relacionada aos quadros de nuvens que eu vinha pintando. Levei um amendoim ainda na casca e o prendi à parede por meio de uma haste reta de metal. O amendoim se projetava da parede apenas o suficiente para lançar uma sombra minúscula. Intitulei a peça de Cloud With Its Shadow [Nuvem com sua sombra]. Assim que vi aquela pequena sombra, percebi que a arte bidimensional era de fato uma coisa do passado para mim. Isso me revelou uma dimensão totalmente diferente. E aquela mostra abriu novos mundos para muita gente.

Quando estava em Zagreb, fui consultar um vidente famoso. Ele era um judeu russo, com a capacidade de olhar para a borra de uma xícara de café turco e prever o futuro. Havia uma fila de espera de seis meses só para vê-lo, mas eu realmente queria ir, porque tinha ouvido tantas histórias a respeito dele e porque queria conhecer meu destino. Por fim, houve algum cancelamento ou coisa parecida, recebi um telefonema e fui vê-lo.

Meu horário foi marcado para as seis da manhã! Não só isso, mas o vidente morava na parte nova de Zagreb – precisei pegar três ônibus para ir até lá. Finalmente, cheguei ao apartamento, toquei a campainha, e ele abriu a porta. Era um velho muito magro e alto, talvez com seus 50 ou 60 anos. Eu era tão jovem que qualquer um com mais de 45 anos me parecia velho. Muito silenciosamente, numa atitude profissional, ele me conduziu a uma mesa e serviu duas xícaras de café turco.

Bebi meu café. O vidente então pegou minha borra e a misturou com a dele. Na mesa, havia um jornal russo. Ele virou sua xícara em cima do jornal, e nós aguardamos, calados. Ele então endireitou a xícara e examinou a borra no jornal. Recostou-se na cadeira e revirou os olhos de modo que só as partes brancas eram visíveis.

O sujeito era uma figura… e meio assustador. Enquanto estava ali sentado, com os olhos virados para trás, ele me disse um monte de coisas. Disse que eu só faria sucesso tarde na vida; que moraria à beira de um grande oceano; que me mudaria de Belgrado. Disse-me que de início eu iria para um único país, que seria importante para mim no princípio da carreira; que eu receberia um convite inesperado para voltar a Belgrado; que me ofereceriam um emprego que eu deveria aceitar. Disse-me que uma pessoa ia me dar uma ajuda enorme, que essa pessoa teria passado por uma tragédia terrível na vida, e que seu nome seria Boris. Disse que eu precisava procurar um homem que me amasse mais do que eu a ele – que só então eu encontraria a felicidade. Mas também disse que de fato meu maior sucesso ocorreria quando eu estivesse sozinha, porque os homens criariam obstáculos na minha vida.

Uns dois anos mais tarde, depois de participar do Festival de Edimburgo na minha primeira viagem para fora da Iugoslávia como artista plástica, eu me descobri morando em Londres, aceitando empregos subalternos e necessitando desesperadamente de dinheiro. Um dia, minha mãe me telefonou de Belgrado para me dizer que tinha me inscrito para uma vaga de professora na Academia de Belas-Artes de Novi Sad. Normalmente, eu teria dito não à minha mãe – naquela época, eu vivia me rebelando, na tentativa constante de escapar da sua influência –, mas, dessa vez, eu realmente estava numa situação crítica. Ela me disse que havia algumas pessoas interessadas no emprego, que eu tinha passado por uma primeira seleção, mas que precisava voltar para uma entrevista.

Danica providenciou a passagem, e eu voltei para a Iugoslávia. Desci em Zagreb para trocar de aeronave e embarcar no curto voo de conexão até Belgrado. O avião de Zagreb a Belgrado estava quase vazio. Voar me deixava nervosa; e naquela época eu fumava, de modo que me sentei no setor de fumantes. Peguei um cigarro e percebi que não tinha um isqueiro. De repente, um cara apareceu e acendeu o cigarro para mim. (Eu segurava meu cigarro com o polegar e o indicador, com a palma virada para o alto, muito sofisticada.)

O cara sentou-se ao meu lado, e nós começamos a conversar – de início, nada de significativo. Disse-lhe que eu estava vindo de Londres para um compromisso em Belgrado. Ele respondeu que também estava a caminho de um compromisso em Belgrado. Depois, falou um pouco mais, e eu me dei conta de que ele participava da comissão de artes que supervisionava o emprego ao qual eu estava me candidatando. De repente, me lembrei da sessão com o vidente russo. O cara acendeu mais um cigarro para mim. “Obrigada,Boris”, agradeci.

O homem empalideceu de imediato – nós não tínhamos nos apresentado. “Como você sabe meu nome?”, perguntou ele.

“Também sei que você passou por uma tragédia pessoal terrível.”

Ele começou a tremer. “Quem é você?”, perguntou ele. “Como sabe dessas coisas?”

Não mencionei o fato de que estávamos nos dirigindo para o mesmo compromisso, mas lhe falei da minha sessão com o vidente; e ele me contou sua história. Boris fora casado com uma jovem que ele amava muito. Ela engravidou. Mas – isso ele só descobriu mais tarde – ela estava tendo um caso com o melhor amigo dele. E um dia sua mulher e o amigo estavam juntos num carro e os dois morreram num acidente.

Depois do nosso encontro no avião, compareci à entrevista com a comissão, e Boris ficou muito surpreso ao me ver entrar na sala! Consegui o emprego e nunca mais o vi.”

*

O trecho acima foi gentilmente cedido pela editora José Olympio, que acaba de lançar no Brasil Pelas paredes – Memórias de Marina Abramović (Tradução de Waldéa Barcellos, 416 págs.)

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