A travessia da terra vermelha, do jornalista Lucius de Mello, traça a saga de refugiados judeus no Brasil, com a história detalhada de famílias que fugiram da Europa dominada por Hitler, fundando a cidade de Rolândia, no Paraná. Para escrever o texto, o jornalista literário ouviu todos os descendentes diretos dos pioneiros da cidade. Na época em que atravessaram o Atlântico, Rolândia não era mais do que uma selva. Ao chegar ao Paraná, refugiados acabaram encontrando alemães nazistas em pleno interior do Brasil. Recém-lançado na Livraria Cultura, em São Paulo, com leitura da atriz Beatriz Segall, o livro mostra como se alocaram as povos vindos ao País, em contrastes com fotos de festas que nazistas realizavam para comemorar o aniversário de Hitler, em pleno interior do Brasil.

Leia trecho abaixo:

               Chegou a noite do casamento de Sophia Cremer e Romeo Dallmathan. A Fazenda Torah ficou toda iluminada por lâmpadas de querosene. Atendendo aos pedidos da senhora Dallmathan e de Wille, mãe e irmão de Romeo, frequentadores da Congregação Israelita Paulista, o rabino Fritz Pinkuss, então presidente e fundador da instituição, veio celebrar a cerimônia. Na época, Pinkuss tinha um irmão que vivia em Londrina, o que o estimulou ainda mais a viajar ao interior do Brasil. Chamava-se Kurt Pinkuss e prestara serviços algumas vezes como tradutor juramentado interino para a delegacia de polícia de Londrina.

Ao convidar os vizinhos, Ester e Alexander Cremer pediram sigilo, para evitar que o casamento fosse interrompido pela polícia justamente por ser realizado em hebraico e dentro dos ritos judaicos. Como determinava a religião semita, a calá e o chatán deveriam ficar um curto período de tempo sem se ver antes do matrimônio. Algo entre um dia e uma semana. Nesse caso especificamente, Sophia e Romeo conseguiram ficar longe um do outro um único dia, o dia da véspera da festa. Os noivos também jejuaram nesse dia até o fim da cerimônia. Os Cremer fizeram questão de montar, ao ar livre, a tenda chamada de chupá. Era uma chupá simples, um tecido sustentado por quatro mastros, que simbolizava o novo lar que iria ser criado. A ideia da celebração ao ar livre é como se fosse um prenúncio de que o casamento será abençoado com tantas crianças como as estrelas do céu, disse Ester. Ruth e Lola decoraram a chupá com flores-do-campo. Pouco antes do ritual, o noivo foi levado até Sophia e colocou um véu sobre o rosto dela. Órfão de pai, Romeo foi acompanhado pela mãe. A senhora Dallmathan dirigiu-se com o filho sobre o tapete vermelho até o altar. Logo atrás, seguiram Alexander, Ester e Sophia.

Como não havia só judeus na cerimônia, rabino Pinkuss fez questão de explicar rapidamente as passagens do rito de casamento judaico. Na primeira parte, a noiva dá sete voltas ao redor do noivo. O número sete corresponde às sete vezes que está escrito na Bíblia: “quando um homem recebe uma esposa”. Ao dar voltas em torno do noivo, a noiva demonstra que entra nas sete esferas da alma do seu amado. Ela também mostra, explicou o rabino, que capturou o coração do seu marido tal como Josué capturou a cidade de Jericó ao marchar por sete vezes ao seu redor. Depois, o líder religioso pediu ao noivo para começar a leitura da Ketubá. Romeo leu o documento legal, uma espécie de contrato nupcial, pelo qual se comprometeu a sustentar Sophia e mantê-la, caso eles viessem a se divorciar mais tarde ou ele morresse antes dela. O rabino, então, pediu para Romeo pôr o anel no dedo indicador da mão direita de Sophia. “Sejas consagrada a mim com este anel – disse o noivo – de acordo com a Lei de Moisés”.

Antes de beberem da mesma taça de vinho, Romeo e Sophia foram abençoados por Fritz Pinkuss. Ele explicou que a palavra shalom, que significa paz, também é a palavra que o judaísmo usa para abençoar o casamento. Shalom bait, paz no lar. A harmonia doméstica, disse, é tão importante quanto a paz entre as nações. Assim como os judeus rezam para que todos os povos do mundo aprendam a conviver, também temos o dever de trabalhar para que essa visão universal seja verdadeira, pelo menos, dentro do nosso próprio lar e do nosso casamento, vocês não acham? Mas a paz no lar não ocorre por acaso, não. As bodas são feitas no céu, mas devem ser preservadas aqui na terra. Você, Sophia, você, Romeo, foram predestinados um ao outro. Quarenta dias antes do nascimento de vocês, uma voz celestial já tinha determinado que Sophia seria de Romeo e que Romeo seria de Sophia. Portanto, amem um ao outro mais do que a si mesmos. Egoísmo e egocentrismo são inimigos de um casamento bem-sucedido. O grande sábio judeu Maimônides diz que cada parceiro deve colocar o outro em um pedestal; as necessidades e as preocupações do parceiro ou da parceira devem ser mais prioritárias do que as suas próprias. Lembrem-se: Deus foi o grande cupido desse encontro de vocês, e, portanto, em respeito a ele, façam um ao outro felizes.

O discurso do rabino se prolongou por mais de uma hora. Ora em alemão, ora em hebraico, ele também comentou sobre a guerra e sobre a perseguição que o povo judeu sofria na Alemanha e também aqui no Brasil. Elogiou o trabalho realizado pelo grupo de refugiados judeus de Rolândia, os laços de amizade que conseguia manter com os cristãos que viviam na colônia, e homenageou Otto Prustel, por ter prestado ajuda e exercido papel fundamental no salvamento de dezenas de famílias judias, no caso as que haviam se refugiado em Rolândia.

Otto foi aplaudido por todos os presentes. Nós, judeus e cristãos, devemos viver assim, respeitando uns aos outros, em paz, meus irmãos, em paz, proclamou o religioso. O rabino também deixou claro que os refugiados judeus que tinham se convertido ao catolicismo podiam ser readmitidos à comunidade judaica, porque, nesse caso, a conversão tinha sido apenas um ato de sobrevivência. Por mais que não exista um rabino todos os dias entre vocês, não desanimem, afirmou. Eu me tornei rabino correspondente de uma pequena comunidade de refugiados judeus em Assunção, no Paraguai. Posso também orientar vocês dessa mesma maneira, por que não? Rolândia não é tão longe assim… Façam dessa floresta uma linda sinagoga, usem a imaginação que Deus lhes deu.

Ruth Allmann aproveitou a ideia de Fritz Pinkuss e pediu licença para contar rapidamente uma bela história que se encaixava perfeitamente na sugestão que o rabino tinha acabado de dar. Contou que o medo de serem perseguidos e punidos por praticarem o judaísmo os fizera criar soluções muito simples, mas ao mesmo tempo mágicas, para o exercício da religião judaica. Temos aqui, rabino, uma menorah que voa. Deus nos presenteou com sete vaga-lumes, que se aproximam um do outro e se acendem, piscam, representam as chamas das sete velas das nossas sagradas menorahs, que estão muito bem escondidas desde que passamos a sofrer represálias do governo brasileiro, explicou a esposa de Rudolf Allmann. E quanto a fazer desta nossa floresta uma sinagoga fique tranquilo, senhor Pinkuss, que nós já fazemos isso há alguns anos. Não há limite para esse nosso templo, que é invisível aos nossos inimigos e completamente palpável aos olhos e ao coração da nossa gente. Quantas datas religiosas já comemoramos aqui, sob a copa das caviúnas, das perobas, das figueiras… Nossa sinagoga imaginária foi construída nessa mata fechada, que para nós se revelou o verdadeiro Paraíso que Deus nos reservou para que possamos sobreviver à tragédia que se abateu sobre o nosso povo na Alemanha.

As palavras de Ruth emocionaram o rabino e os convidados. Antes de agradecer os aplausos, ela pediu que todos ficassem atentos, porque a menorah voadora poderia aparecer a qualquer momento. Os meus sete vaga-lumes adoram fazer boas surpresas, disse. Vocês vão se emocionar quando o nosso castiçal sagrado surgir entre as árvores centenárias, voando, voando em nossa direção para nos presentear com luz. E precisa mais? Muito obrigada pela atenção. Antes de encerrar a celebração o rabino passou a palavra para Samuel Cremer, avô de Sophia, que depois convidou Adine Walk, a avó da noiva, para homenagear o jovem casal. Após as palavras dos avós, foi a vez de os pais discursarem. Alexander e Ester Cremer agradeceram a presença do rabino e de todos os presentes. Antes do início da comilança, Ester quis ler um texto que tinha escrito para jamais se esquecer de uma triste passagem que Sophia viveu na infância ainda na Alemanha:

“O seu nome é Sophia. Ela é tão loira e de olhos azuis como as demais colegas da escola. Brincava com elas no pátio e, nas aulas, sentava-se com os óculos no nariz cheio de sardas para poder enxergar a lousa… Ela sofria muito de saudade porque, como seus pais viviam no campo, tinha de morar com os avós na pequena cidade para frequentar a escola. Para o Natal, a classe toda estava preparando uma peça de teatro muito bonita com coro, anjos, lua e estrelas. Todas as tardes, mal e mal terminadas as tarefas, as crianças voltavam à escola para os ensaios. Nem a melhor pista de trenós, nem o rio que virou gelo e que era tão bom para patinar podiam atrair Sophia. A peça de Natal ficava em primeiro lugar e o prazer dela sobrepujava todas as outras alegrias. Ela nem se melindrou quando uma menina ao passar por ela chamou-a de ‘Judenmadchen’, menina judia. Se o bom Deus me fez judia, deve ser bom, disse ela para a coleguinha. Uma semana antes das férias de Natal, quando os ensaios estavam quase terminando, o professor explicou às crianças como ele imaginava que seriam as fantasias para a apresentação: vestidos compridos azuis com aplicação de estrelas douradas. Nos cabelos uma fita azul com grandes estrelas douradas. Que bom, pensou Sophia. Sim, falou o professor. E a voz dele parecia inalterada. ‘As três meninas judias não precisam fazer os vestidos, pois naturalmente elas não podem participar do evento.’ Em meio à alegre confusão das outras crianças, as três meninas ficaram atônitas. Mas isso era impossível. Por que de repente elas haviam sido excluídas? Até então, podiam fazer tudo junto com as outras crianças. Vocês podem ir, disse o professor. Eu acho, disse Sophia quando saiu da escola com as outras meninas, que quando ele disse isso o meu coração parou de bater. O meu também, disse a pequena Inge. Sophia voltou para casa correndo. Não podemos mais participar da peça de teatro, disse chorando e correndo para os braços da mãe. Eu não quero ir nunca mais para a escola, afirmou Sophia. A escola é obrigatória, disse a mãe sentindo seu coração se quebrar. Você precisa ir, minha filha. Esse era o fim. Daqui por diante a sua pequena menina tinha de carregar sozinha o seu destino e nem a mãe podia ajudar. Que profunda e trágica sabedoria para a mãe e a criança, profunda até as raízes na relação mãe e filha. No dia seguinte, Sophia voltou à escola e, mesmo estando em três, as três crianças judias agora estavam sozinhas, cada uma carregando o grande peso de serem expulsas do grupo das outras, isoladas e desprezadas. Depois das férias de Natal as três passaram a se sentar na última fila. Eu não consigo ler daqui o que está escrito na lousa!, reclamou Sophia. Mas o professor deu os ombros.

“O martírio que significava cada dia escolar, cada uma das aulas, era visível ao se observar as crianças. Elas não eram mais alegres e soltas. Roubaram-lhes a infância, plantaram o medo nos seus pequenos corações em vez da confiança e segurança na justiça dos adultos, que deveria ser a base da alegria das crianças.

Em fins de janeiro, a classe tinha de escrever uma redação: ‘Celebramos o dia 30 de Janeiro’ era o título. Dia 30 de janeiro era o dia da posse de Hitler. Queriam que as três meninas judias escrevessem: nós celebramos o dia 30 de janeiro. Elas, que foram expulsas, maltratadas e se sentavam na última fila. Que exigência absurda! Que cinismo cruel! Se a gente não se lembrasse do perigo constante que os pais das crianças judias viviam, mal poderíamos entender que alguns deles pudessem cogitar que os filhos escrevessem tal composição: ‘Não há outro jeito. Se não quisermos arriscar tudo, as crianças têm de escrever’, resolveram eles, enojados pela própria traição, mas com medo das consequências. Os pais de Sophia não permitiram que ela escrevesse a composição. É melhor que te expulsem da escola, disse a mãe, do que você escrever essa coisa. Quando Sophia disse que tinha muito medo, a mãe sugeriu: “Faça um outro trabalho, escreva sobre qualquer outro assunto que vocês leram e diga que a tua mãe a proibiu de escrever essa composição.” Quando a criança, tremendo de medo, falou baixinho o que a mãe recomendara, o professor fingiu não vê-la. Daí por diante, tratou-a como se ela não existisse. Não corrigiu mais os seus deveres, não a interrogava quando ela levantava a mão timidamente, enquanto as outras crianças, alegres, disputavam entre si, fazendo sinal com a mão, para demonstrar que sabiam bem a lição. Agora tudo perdera o sentido. Sophia nem havia percebido que era de propósito, mas aos poucos tudo se tornou claro”.

Assim que concluiu a leitura, Ester foi aplaudida por todos durante longos minutos. “O que me deixa feliz – disse a anfitriã – é que hoje a minha Sophia, apesar de tudo por que passamos, de tudo o que sofremos, é uma mulher linda, inteligente, guerreira e feliz. Parabéns, Romeo, você ganhou um tesouro de mulher! Parabéns, minha filha, você é uma vitoriosa!”, disse Ester, ao abraçar e abençoar Sophia com lágrimas maternas.

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A travessia da terra vermelha, de Lucius de Mello (Companhia Editora Nacional, 352 págs.)

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