* Por Pedro Taam *

O que mais se destaca nessa grotesca boneca de Judith Butler incendiada às portas de um Sesc em São Paulo? Suas roupas íntimas. De que cor são as roupas íntimas? Rosa choque. Que roupas são essas? Uma peça: o sutiã. Um auto de fé pressupõe fogo. Fogo pode simbolizar muita coisa. Mas fogo com sutiã é uma referência incontornável ao “bra-burning”, outro manifesto, lá da década de 1960. Só que no sentido oposto: aquele auto pedia a libertação da mulher.

Este exige que ela se cale.

O auto dos anos 1960 ficou conhecido como “Miss America Protest”. O que aconteceu ali envolveu mais do que a queima de sutiãs. Inspirados por Germaine Greer, as e os manifestantes tinham, sim, a intenção de queimar seus sutiãs, mas isso foi impedido pela polícia. Segundo Greer, a aceitação feminina do desconforto imposto pelos sutiãs da década de 60 constitui um símbolo da opressão machista [1].

O próprio ato de “queimar sutiãs” remete à convocação de Elizabeth Phelps, que escreve em 1873: “queimem os espartilhos! (…) façam uma fogueira dos ferrolhos cruéis que se impuseram sobre seus tóraxes e abdomens por tanto tempo e desfrutem de um suspiro de alegria porque sua emancipação, eu asseguro, a partir deste momento já começou” [2].

O sutiã é o espartilho mitigado. O seu símbolo, ali, é o da opressão.

Não há nada mais velho do que, na impossibilidade de atingir diretamente um objeto, direcionar nossa ação para um signo que acreditamos significar aquele objeto, como se a mediação feita pelo símbolo pudesse acontecer numa via de mão dupla. Mas, não. É via de mão única, malgrado o fato do meu bisavô supostamente ter o hábito de acenar para as chacretes, acreditando que, assim como ele podia vê-las, em sua casa, através da televisão, elas também podiam vê-lo.

Na impossibilidade de queimar “a opressão machista” diretamente, queimam-se os sutiãs.

Na impossibilidade de queimar as forças que põem em questão estruturas e modelos que abusam perversamente das forças vitais de muitos em prol do benefício de poucos, queima-se a grotesca boneca de Judith Butler.
Só que, aí, nem Judith Butler é Judith Butler. Quem tem medo de Judith Butler? Quem tem medo da mirrada figura de uma filósofa de 61 anos? Ninguém tem medo de Judith Butler.

O medo é de buceta, mesmo.
E aqui me aproprio da mais torpe figura de linguagem machista, uma metonímia grotesca, infinitamente repetida em conversas de bar, que não necessariamente acontecem em bares. É que, ao mesmo tempo em que a mulher é vista como um objeto (sexual, no caso), a vagina é também um símbolo de mistério. O patente desconhecimento a seu respeito, que deu origem por exemplo ao mito da “vagina dentata”, os milênios de opressão feminina, geram um temor de proporções épicas.

É que o preço da ignorância é o medo.

Aquela que sempre é desprezada e subestimada, sem jamais ser conhecida, a voz que jamais é escutada, é capaz de colocar em questão todo o sistema que a oprime e subjuga. O cerne de toda narrativa de terror é um certo vazio, um espaço em branco em que se projetam todos os medos. No momento em que o monstro é colocado nitidamente no plano da tela, no cinema, o que se segue inevitavelmente é uma decepção. Ao imaginar, sabemos melhor do que qualquer um o que nos provoca medo.

O que dizem essas vozes que jamais escutamos, onde projetamos tudo o que nos afeta da forma mais irracional e atávica? Não sabemos o que dizem, mas deve ser terrível. Melhor calá-las. Melhor dar a elas uma “solução final”.

Probleminha: não dá.

Como até o pastor Silas Malafaia sabe, sem mulheres, que além de vaginas têm úteros e ovários, extingue-se a raça humana. A mesma relação objetificadora que se estabelece com o corpo feminino (“a buceta”), se apresenta também como necessidade (“o útero, os ovários”). A manutenção do arcaico aqui não é possível. Não se pode eliminar o objeto de seu medo sem eliminar a raça humana inteira. Seus métodos de repressão, que funcionaram por milênios, continuam a fazer vítimas, vitimando a humanidade toda, da qual o carrasco amedrontado — por mais que grite na rua dizendo o contrário — faz parte.

A guerra está longe de estar ganha. Mais uma vez, o campo de batalha é o corpo da mulher. O ciclo paranóico do reativo, capturado neuroticamente num triângulo edipiano do qual não consegue sair, esquizofreniza a mulher em três arquétipos: mãe, puta e bruxa. [3]

A mãe é a “boa mulher”, a “bela, recatada e do lar”. Ocupa o lugar milimetricamente definido, aquele e só aquele que ela pode ocupar. Mas aí, falta algo. A contrapartida da mãe é a puta. Porque, veja você, geralmente homens não trepam com suas mães, mas têm que trepar com alguém. Afinal de contas, “homem tem seus desejos, né?”. A puta também não é um ser humano, é o lugar da mulher que satisfaz outros desejos masculinos.

Resta a bruxa.

A bruxa é uma pessoa. A bruxa é sempre singular. A bruxa não tem limites, não se deixa ser capturada sem se tornar mãe ou puta, ambas “bruxas boas”, destituídas de sua potência revolucionária: torna-se bruxa-velha-mãe ou bruxa-nova-puta, uma que garante a perpetuação do macho-guerreiro, curando-o dos ferimentos da batalha e da conquista e a outra dando-lhe ferramentas, por meio de seus sortilégios místicos, para que obtenha sucesso na batalha e na conquista. Virgem Maria e Maria Madalena.

Judith Butler não se deixa capturar: lésbica e sem filhos, não se torna nem mãe nem puta. É só bruxa. É por isso que a turba furiosa gritava “queimem a bruxa”. Uma das bruxarias da boneca grotesca de Judith Butler é usar um sutiã rosa-choque. Um sutiã de renda, um sutiã sexy. Precisamos levar em conta que, no sistema de signos de quem concebeu esse disparate, o que o sutiã rosa de renda significa é a sexualidade feminina, sugestão exacerbada pela cor exacerbada (um rosa forte, rosa-choque). Se, na convocação à manifestação dos reativos, pedia-se para que “homens usassem azul” e “mulheres usassem rosa”, numa declaração de manutenção de símbolos arcaicos, o rosa-choque se coloca como um ultra-rosa, über-rose, que leva para além dos limites seguros a feminilidade.

No caso, a sexualidade da bruxa, a energia vital que não se submete às pré-determinações reativas. Essa energia vital se materializa na pulsante intelectualidade de Judith Butler, que alargou entendimentos dentro e fora da academia não só, mas notavelmente, sobre as questões de gênero. E veja, ela nem estava vindo para o Brasil para falar de gênero. Mas, num mundo em que um dos últimos bastiões do conservadorismo é vociferar que “o deus criou Adão e Eva/macho e fêmea”, a figura de Judith Butler é insuportável. Como ela mesma me disse: “I’m a boy too”.

É isso, portanto, que está sendo queimado: a potência vital indomável, o desconhecido, aquilo que foi sempre reprimido sem jamais ser visto e conhecido. Aqui, “feminino” deixa de se referir somente à mulher, e passa a se referir a essa potência avassaladora como um todo.

Agora precisamos olhar ao que se opõe à bruxa. Que arma é usada para detê-la? Não é o fogo.

É a cruz.

“Você não pode generalizar, há bons cristãos”.

Há. Deve haver.

No entanto, é muito difícil acreditar na historinha do “bonzinho que casa com o filho da puta”. Todos conhecemos casais assim. Um é crápula, um barba azul, filho da puta de proporções bíblicas. O outro (geralmente, “a outra”) é um amor de pessoa, um anjo, tão boazinha, coitada.

Segredinho: não é.

Sabe aquela pessoa que viveu do lado de um escroto por 50 anos e nunca levantou a voz ao vê-lo perpetrar suas barbáries? Tão filha da puta quanto.

Sabe aquela pessoa que é cheia de boas intenções, mas vive ao lado de alguém cujas más ações sempre prevalecem? Tão filha da puta quanto.

Minha convocação é: não sejam. Façam seu dever de casa. Façam sua micropolítica ativa.

Você é cristão? Fica puto que colocam todos os cristãos numa cesta etiquetada “retrógrados e conservadores”? Fique puto, é ótimo. Aproveita, pega toda essa raiva e coloque-a em ação. Produza diferença. Reaproprie-se da cruz. Devolva a este símbolo a sua potência revolucionária originária, que, há dois mil anos, conforme nos conta a historinha, foi capaz de chacoalhar as fundações do império mais poderoso da Terra.

A diferença entre os reativos e os ativos é uma só. Ambos são órfãos. O reativo não cessa de chorar a morte de pai e mãe e espera a ressurreição. O ativo sabe que não vão ressuscitar e que precisa, ele mesmo, dar conta das suas escolhas.
O próprio modo de vida do ativo põe o reativo em questão, pisa incessantemente na ferida que o vazio do transcendente (o pai, a mãe, “o chefe”, esse que destruiu o Brasil) deixa. É que, ao agir, aceita-se o vazio e passa-se à ação, um estágio necessariamente posterior à aceitação. Isso é insuportável para quem, por negação, decidiu esperar.

Existe no meio da turba a ilusão da ação. Entre os agressores, instaura-se a ilusão de segurança. Novamente, o medo que vem da ignorância, também origem do ódio irracional, da destruição cega. Faça como as bruxas: conheça. Não delineie um inimigo imaginário num limite seguro e se bata contra esse espantalho. Observe-o com seus próprios olhos, passo a passo, ponto a ponto, tateando. Procure brechas, pontos moles, entradas secretas, capazes de convertê-los em aliados. Se queremos todos a tal liberdade, lutamos pela não-perpetuação e não-imposição de uma identidade castradora e devemos viver em constante vigília para não estabelecê-la nós mesmos, sobre “nós” ou sobre “os outros”. Porque não há “os outros”. Só há “nós”.

Se não, corre-se o risco de não ser um ativo, mas um reativo do reativo, ainda sob o domínio de um limite pré-traçado, um espantalho. E aí, talvez você nem seja filho da puta. Mas uma anta bem intencionada faz os mesmos estragos. Ou piores.

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0. Essa discussão é, em grande parte, motivada pelo texto “Esferas da insurreição: sugestões para o combate à cafetinagem da vida”, de Suely Rolnik, publicado em “Negri no Trópico 23o26’14”, TIBLE, Jean; TELLES, Vera e SANTIAGO, Homero (org.). São Paulo: N-1, Atonomia Literária e Editora da Cidade, 2017.  Uma apresentação do texto pode ser encontrada em: https://youtu.be/4NdE3CAIOlo

1.
https://www.theguardian.com/books/2003/oct/05/highereducation.gender

2.
phelps, elizabeth. “what to wear”, publicado em 1873. p.79. disponível integralmente em: https://books.google.com.br/books?id=wTQEAAAAYAAJ

3.
embora a autora faça uma outra divisão, essa ideia foi tirada daqui:

http://rascunho.com.br/atraves-de-muitos-espelhos/

Área de anexos
Visualizar o vídeo Esferas da insurreição: sugestões para para o combate à cafetinagem da vida – Suely Rolnik do YouTube

Esferas da insurreição: sugestões para para o combate à cafetinagem da vida – Suely Rolnik

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