* Por Marcel Novaes * 

No primeiro dia de julho, o Congresso iniciou suas atividades por volta das 10 horas da manhã. Depois de lidar com as habituais questões de ordem iniciais relativas à guerra (recrutamento de homens para o Exército, obtenção de chumbo para fabricação de balas, construção de fortificações etc.), o presidente Hancock abriu as atividades relativas à Declaração de Independência em torno das 11 horas. O primeiro congressista a falar foi o veterano John Dickinson, da Pensilvânia.

Dickinson era o autor das famosas Cartas de um fazendeiro da Pensilvânia, nas quais defendera que as taxas impostas pela Coroa sobre as colônias eram inconstitucionais. No ano anterior, 1775, escrevera para o Congresso a versão final da Declaração das causas e da necessidade de pegar em armas.

Sua atividade política fora marcada pela vontade de chegar a um acordo com a Grã-Bretanha e tentar evitar tanto a independência como qualquer conflito armado. Naquele dia, ele faria sua última tentativa.

Depois de concordar que a América havia sido prejudicada e que os americanos tinham de fato direito de resistir aos atos da Coroa britânica, Dickinson insistiu que a independência não serviria aos interesses de longo prazo do continente. Em vez disso, argumentou que era necessário buscar uma reconciliação. Afinal, uma guerra por independência contra a poderosa Grã-Bretanha, o mais vasto império que o mundo já viu, seria provavelmente longa, custaria muitas vidas e muito dinheiro e, ao final, talvez fosse perdida. O povo americano, enfraquecido pela guerra, poderia ser presa fácil das potências europeias.

Dickinson era um orador experiente, mas já havia entendido que não tinha mais chance e via aquele discurso como sua despedida da política (na verdade, ele ainda viria a ser governador de dois estados: Pensilvânia e Delaware).

Os congressistas o ouviram por cerca de duas horas. Quando ele acabou, John Adams se levantou para oferecer sua resposta. Como líder daqueles que buscavam a independência, era sua responsabilidade fazer o último discurso antes da apreciação do texto da declaração. Adams não tinha a oratória excelente de Dickinson, mas tinha sua cota de experiência como congressista e como o advogado mais famoso de Boston.

Durante seu discurso, no meio da tarde, o céu da Filadélfia ficou escuro com nuvens carregadas. Uma tempestade forte castigou a cidade, com raios e trovões que ribombavam como os temidos canhões ingleses. Velas tiveram de ser acesas para que a sessão do Congresso continuasse. Enquanto a chuva batia nas janelas, a voz de Adams hipnotizava a audiência. Jefferson disse mais tarde que Adams era o “pilar” que suportava a independência, “seu mais hábil advogado e defensor”.

Nenhum registro escrito do discurso de Adams sobreviveu, mas podemos imaginar o que ele deve ter dito com base em sua correspondência da época. Certamente descreveu em detalhes os fatos que levavam a América a buscar sua independência (muitos dos quais constavam da acusação ao rei escrita por Jefferson). Deve ter insistido no aspecto moral da questão, no valor da liberdade e na importância de lutar contra a tirania. Ao mesmo tempo, certamente não terá deixado de lado a importância de poder fazer alianças com outros países e as vantagens comerciais que inevitavelmente adviriam da independência.

O discurso acabou por volta das 16 horas, normalmente o horário em que o Congresso encerraria suas atividades. Naquele dia, no entanto, todos os congressistas queriam dizer algo a respeito da independência, contando com a inspiração para deixar registrada alguma frase memorável. Um após o outro, os discursos entraram pela noite adentro.

No dia seguinte, 2 de julho, depois de mais alguma discussão e mais alguns discursos, o Congresso votou oficialmente a questão. A moção pela independência foi aprovada sem oposição. John Adams escreveu que o dia 2 de julho seria para sempre lembrado como “uma época memorável na história da América”, um dia que seria “comemorado com pompa e solenidade, com shows, jogos, esportes, tiros, sinos, fogueiras e fogos de uma ponta à outra do continente”.

Adams acertou em tudo, menos na data. Ou melhor, no documento. Ele a princípio achou que a moção pela independência, que realmente era o fato político relevante, é que restaria lembrada. Em vez disso, depois de a moção ter sido aprovada, o Congresso ainda levou mais dois dias debatendo os detalhes do texto da correspondente declaração, que acabou por levar toda a fama.

O “Preâmbulo” é a parte mais famosa e mais influente da Declaração da Independência. Ele contém três ideias centrais. A primeira é que todos os homens são iguais no nascimento e possuem direitos inalienáveis (entre eles a famosa trinca “vida”, “liberdade” e “busca da felicidade”). A segunda é que todo poder político emana do povo. A terceira, derivada da segunda, é que o povo tem direito de derrubar o governo se este se tornar “destrutivo” (essa ideia se concretizou da forma mais sangrenta treze anos depois, na Revolução Francesa). Por incrível que pareça aos nossos olhos de hoje, o Congresso não deu atenção e não fez nenhuma alteração no “Preâmbulo”. Naquele momento, as acusações ao rei eram mais importantes; o “Preâmbulo” era considerado mera retórica.

Por exemplo, Jefferson acusara o rei de usar de políticas com “crueldade e perfídia inapropriadas ao chefe de uma nação civilizada”. O Congresso achou melhor aumentar a pungência da frase, aumentando-a para “crueldade e perfídia sem paralelo nas eras mais bárbaras e totalmente inapropriadas ao chefe de uma nação civilizada”.

O artigo em que o rei era denunciado pela escravidão acabou sendo retirado por completo, por pressão de congressistas dos estados do sul, fortemente dependentes do trabalho escravo. A remoção do artigo não contou com muita oposição dos estados do norte que, apesar de não empregarem muita mão de obra escrava, participavam ativamente do comércio de escravos. O antagonismo entre o norte e o sul do país, especialmente na questão do abolicionismo, eventualmente levaria, quase cem anos depois, a uma guerra civil vencida pelo norte, governado pelo presidente Abraham Lincoln.

Finalmente, em 4 de julho de 1776, o texto final da Declaração da Independência foi lido e aprovado pelo Congresso. Contra a vontade de Adams, que defendia o estabelecimento do dia 2 como data comemorativa, foi o 4 de julho, quando os Estados Unidos já eram independentes havia dois dias, que ficou para a história.

Desde 1776, mais de uma centena de “declarações de independência” foram promulgadas mundo afora, muitas delas inspiradas, quando não decalcadas diretamente, da versão americana. Esse número serve como indicador da transformação ocorrida no mundo; em relativamente pouco tempo, uma era dominada por impérios deu lugar a uma era dominada por repúblicas.

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O trecho acima faz parte de O grande experimento: a desconhecida história revolução americana e do nascimento da democracia moderna, de Marcel Novaes (Record), que apresenta de forma acessível, com bom humor, no ritmo de um thriller, o desenrolar da criação dos EUA.

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