* Por Bruno Inácio *

Experimentalismos de linguagem e o olhar perspicaz sobre a solidão marcam Perdeu vontade de espiar cotidianos, novo livro de Evandro Affonso Ferreira, publicado pela editora Nós. Na obra, a protagonista – chamada apenas de nossa ontológica personagem – está à beira de um colapso, diante de abismos e rupturas que resultam em uma crise existencial das mais originais da literatura brasileira contemporânea.

Seu pessimismo transita entre o desespero e o quase-cômico em meio a uma prosa sofisticada, que em nenhum momento comete o erro de cair no hermetismo.

Não por acaso, desde as primeiras páginas, nossa ontológica personagem se mostra complexa demais para caber em meia dúzia de adjetivos. Carrega contradições tão peculiares que, aos poucos, o romance se aproxima de um eficiente estudo de personagem.

A linguagem adotada por Evandro Affonso Ferreira, evidentemente, contribui bastante para isso. O autor parece ter escolhido sem pressa cada uma das palavras e explora muito bem os neologismos e a sonoridade dos vocábulos, ao mesmo tempo em que constrói uma atmosfera sóbria e introspectiva.

É nesse contexto que nossa ontológica personagem caminha com insegurança entre o tédio e a descrença e “consegue criar, em seu laboratório abstrato, dezenas-centenas de dias ambíguos”.

A ambiguidade, inclusive, é um elemento bastante presente na obra, especialmente porque a protagonista se coloca, por diversas vezes, entre a intenção e a realização, num exercício meditativo que alcança infortúnios, divagações e epifanias quase místicas.

Em alguns momentos, o clima contemplativo dá espaço à urgência imposta por uma personagem apressada que se desapegou da ideia de um mundo melhor. Esse movimento é evidenciado pelas diferentes pontuações utilizadas por Evandro Affonso Ferreira para marcar os mais variados ritmos ao longo da narrativa.

“Perdeu vontade de espiar cotidianos” é um exercício de linguagem que flerta com existencialismo, ao colocar em evidência a visão pessimista de uma personagem relevante e bem construída.

Assim, o novo romance de Evandro Affonso Ferreira surge como um exemplo da capacidade que grandes autores e autoras têm para abordar temas contemporâneos – como o consumismo ou a solidão – de maneira concisa e original, sem se tornarem expositivos ou simplistas.

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Bruno Inácio é jornalista, mestre em comunicação e pós-graduado em literatura contemporânea. É autor de Desprazeres existenciais em colapso (Patuá) e Desemprego e outras heresias (Sabiá Livros) e colaborador da São Paulo Review e do Jornal Rascunho.

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