* Por Ronaldo Cagiano *

Em sua nova safra poética – O livro das mãos (editora Coisas de Ler, Coleção Clepsydra, 2017) – Gisela Gracias Ramos Rosa confirma uma peculiaríssima característica já percebida quando de sua estreia com “A tradução das manhãs” (vencedor do Prémio Glória de Santana 2013): a sutileza estilística e uma confecção poética apurada e meticulosa, que não transige quanto à concentração textual.

Obra que atinge o máximo de comunicação com o mínimo de recursos, na esteira do que assinalou Maiakovski (“Eu/ à poesia/ só permito uma forma:/ concisão,/precisão das fórmulas/ matemáticas.”), O livro das mãos também carrega em seu título a própria metáfora de um fazer poético sem adereços, em que nada falta ou sobra nesse conjunto que rastreia o tempo, a natureza e a aldeia global, conduzido por um comedido sopro lírico. A poeta se lança com um sensível aparato vocabular e semântico e nesse profundo mergulho, com a habilidade de ourives, sinaliza que “impossível é dissociar as mãos da construção/ do mundo”, pois nessas “mãos repousa o primeiro dia,/ a primeira vez/ de todas as coisas.”

Simbolicamente, são versos que examinam a poesia como experiência de uma engenharia extremamente delicada, em que o ser ergue catedrais e em seus íntimos altares sacraliza uma mirada crítica e um acento reflexivo. As palavras se encadeiam com diligente harmonia interna, convergindo numa tessitura que também se exprime nas entrelinhas ou na vacuidade das palavras, amparada também por uma certa inflexão emocional e imagética: “Escrevo como se estendesse raízes e sou/ um ramo adormecido alcançando em silêncio”. Aqui, a verdade poética reverbera o que está oculto e se exprime na força comunicativa de uma tecelã de mistérios, pois “na orla do silêncio, as mãos” tateiam o invisível. Nessa íntima relação artística, faz um trânsito dialético entre o metafísico e o real, entre o imaginário e o onírico, para, enfim, declarar que “estas mãos sonâmbulas transcrevem/ tudo o que sonhei em vigília.”

Em outra vertente, a poesia de Gisela é receptáculo da intertextualidade, no diálogo que enceta com a própria literatura, realizando uma delicada simbiose com outros autores e obras, a exemplo das epígrafes, referencialidades e dedicatórias que, ultrapassando o teor da homenagem, funcionam como flertes temáticos e uma sinergia entre atmosferas estéticas e mundos análogos.

Em seu arcabouço criativo a escola intelectual e a herança sanguínea de António Ramos Rosa marcam presença salutar em sua obra. Mas enganam-se os que pretendem vislumbrar em seus versos qualquer domínio ou pressão dessa ancestralidade sobre sua escritura, pois de sua oficina resultam arquiteturas distintas e autônomas. Ainda que tenha escrito um livro em parceria com o tio – “Vasos comunicantes” (Poética Edições, 2017), celebração de uma sintonia – em Gisela a dicção poética já se pronunciara no primeiro livro com voz e sintaxe distintas e marcadamente sensoriais, enunciadas por uma maneira de ver e refletir, que se referenda com vigor: “Amo o mundo perdoo e mostram-me/ que não caibo no reflexo do espelho/ sou o que sou, ou não sou?”

Sem dúvida, o apreço e o respeito pela monumentalidade da obra de Ramos Rosa são recorrentes nas palestras e recensões que a autora vem fazendo, de modo a valorizar e resgatar a memória de um dos mais importantes autores da lusofonia. Por outro lado, Gisela não se deixou contaminar nem viveu à sombra dessa consanguinidade e afeto literários. Desde o primeiro livro venceu, superou e transcendeu a angústia da influência, delimitando claramente sua identidade, percurso e espaço criativos. Dele não herdou a máquina de fazer versos, mas a paixão pela poesia, com seu estilo e sua luz que se projetam sem pastiches ou escadas, mas a herança vital é aquela que concerne à mesma e irredutível consciência e responsabilidades que norteiam o ato da criação. Como ele, que nos assegura em A poesia moderna e a interrogação do real, que “é pela poesia que se formula um dos mais inalienáveis anseios da alma humana: a total comunhão de si com o mundo”, Gisela expressa seu olhar fecundo em sintonia com as demandas, emergências e inquietações do seu tempo, de sua alma, do nosso mundo.

Com uma leitura apriorística da realidade e percorrendo a geografia dos sentimentos – “Escrevo para sarar a asa ferida da origem/e num movimento de dança libertar o impulso/ da imagem incompleta com afeto (…) e porque à memória não devo o sacrilégio/do fogo roubado, encontro a flor inesperada” – seu manejo instrumental e sua poética surgem de uma experiência individual e distinta, compatível com a epígrafe de Holderlin, que batiza sua obra: “Tudo está em nós”.

Apenas para concluir e sintetizar, a preci(o)sa e sofisticada linguagem poética de Gisela é fruto de um trabalho vocabular que equilibra forma e conteúdo e que culminam numa leitura epifânica. Exemplificando, eis um dos momentos altos de seu novo livro, quando a autora reivindica ou demarca seu lugar: “Na minha casa moram várias palavras nuas/ as que inauguram o espaço/ e as minhas mãos”. Eis a plena consciência de que as mãos continuarão a moldar no livro da vida sua inegável aspiração: “O poema: um aceno ao sonho de ser/ em compreensão e extensão”.

 

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Ronaldo Cagiano é escritor brasileiro, reside em Portugal. Autor, dentre outros, de O sol nas feridas (Poesia, Finalista do Prêmio Portugal Telecom 2012) e Eles não moram mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016)

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Ilustração: tela de Iberê Camargo

 

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O LIVRO DAS MÃOS

Gisela Gracias Ramos Rosa
Ed. Coisas de Ler, Lisboa, 2017

74 pgs. $ 10 euros

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