* Por Tiago Germano *

Tão discutida nas redes sociais, a área é muito maior que as oficinas que aparecem em links patrocinados na sua timeline

Em 1957, o reitor da Faculdade de Artes e Ciências de Harvard escreveu aos chefes de departamento pedindo indicações de professores para integrar o corpo docente da instituição. O nome de Vladimir Nabokov, professor de literatura comparada de Cambridge, foi um dos mais indicados. Houve, entretanto, quem se opusesse ferozmente à sugestão. Roman Jakobson, então chefe do Departamento de Línguas Modernas, foi um deles. O linguista declarou na época: “Senhores, ainda que ele seja um escritor importante, o que virá depois? Vamos convidar um elefante para ser professor de zoologia?”

Mais de meio século depois, o pensamento tacanho de Jacobson ainda persiste na maioria das universidades brasileiras. Fora delas, a ideia romântica de que a literatura é produto de um ou outro ser inspirado nos devolve essa curiosa analogia do escritor-elefante: um animal que obedece a uma espécie de instinto cujas tentativas de explicá-lo resultam, sempre, numa manada estourando ou em alguém sendo pisoteado.

A Escrita Criativa surgiu para tentar modificar esses paradigmas, pousando seus holofotes numa porção do palco que os estudos literários vinham tendo dificuldade de iluminar: o processo criativo, esses bastidores muito frequentados pelos escritores, mas pouco conhecidos da maior parte do público e da crítica.

O termo é uma tradução de creative writing, área que nos EUA conta com programas em diversas universidades, tendo suas origens em fins do século XIX. A nomenclatura não chega a ser consensual entre quem a estuda, mas tem servido para distinguir, sobremaneira, a escrita literária de outros tipos de escritas técnicas como, por exemplo, a jornalística – por mais criativa que, eventualmente, ela possa vir a ser ser. No Brasil, o conceito tem designado principalmente o campo de pesquisa que começou a se desenvolver a partir das primeiras oficinas de criação ministradas por Cyro dos Anjos, em 1962, e por nomes como Raimundo Carrero e Luiz Antonio de Assis Brasil, mais recentemente.

Por iniciativa deste último, no Rio Grande do Sul, existe hoje uma graduação em nível tecnológico (cinco semestres), além de uma pós-graduação com cursos de especialização, mestrado e doutorado na área. Eu sou aluno de um desses cursos.

Quando ouço críticas à Escrita Criativa em eventos de literatura que nada mais são que um reflexo de toda essa trajetória; quando leio as críticas que circulam, com a ironia e o deboche típicos das redes sociais, nos perfis de escritores que, diariamente, nada mais fazem que exercer a Escrita Criativa falando sobre seus processos criativos para leitores que talvez nem verão a cor dos seus livros, eu primeiro me pergunto o que faz alguém ignorar toda essa história cujo presente eu acabei de resumir, mas cujo passado remonta a Aristóteles, um dos primeiros a sistematizar algumas reflexões sobre a poesia e a arte em sua Poética (século 3 a.C).

Depois, respiro fundo e rolo um pouco mais a timeline. No Ceará, a escritora Nina Rizzi anuncia o seu laboratório de escrita para mulheres (cis e trans). O objetivo do laboratório, segundo Rizzi, é buscar junto a essas mulheres formas de expressar o contexto social e cultural em que vivem. O algoritmo do Facebook é potente, então logo depois aparece a escritora Carola Saavedra anunciando seu curso de “Como Escrever um Romance”. Na biografia de Saavedra, leio tudo o que eu já sabia: ela é autora de Flores Azuis (2008), romance do ano segundo a APCA, também finalista do Jabuti. O que eu não sabia e que descubro mais tarde, quando já saí do Facebook e estou lendo uma matéria sobre o romance Enquanto os Dentes (2017), que acabei de comprar, é que o autor, Carlos Eduardo Pereira, fez a oficina da Carola Saavedra enquanto escrevia a história de Antônio, um personagem que, como ele, se locomove numa cadeira de rodas. Numa matéria relacionada a essa, um novo rosto me chama a atenção: é o jovem Geovani Martins, num perfil do que o jornal chama de “a nova aposta da literatura nacional”. Martins acabou de publicar um livro de contos pela Companhia das Letras. É morador da comunidade do Vidigal e uma das primeiras oficinas literárias que fez, na Rocinha, foi ministrada pelo poeta Carlito Azevedo em 2014.

Volto ao Facebook. Num post rápido, um amigo indaga: “Acuda-me, um leigo pergunta, escrita criativa é uma religião?”. Alguém escreve na caixa de comentários: “É um partido político? Quero me filiar”. Outro: “Se for, acabo de me descobrir ateu”. Mais outro: “Ou uma terapia alternativa e holística para resolver qualquer queixa?” Como resposta a essa: “Cura quântica”. E por fim: “É uma forma de ganhar grana. E, nesse ponto, tem a religião como modelo.”

Penso em Assis Brasil e Raimundo Carrero: Marcelo Crivela e Edir Macedo, num púlpito, enriquecendo às custas de uma massa ignara de pretensos escritores, abrindo caminho para que uma nova geração da qual eu faço parte – eu, menino pastor, a mão na Bíblia, gritando a plenos pulmões: “É maravilhoso! Conselheiro! Deus Forte! Pai eterno! E príiiiiiiiiiincipe da paaaaaaz!” – também possa fazer o seu pé de meia logrando a população.

O que gostaria de perguntar diante disso é: será mesmo que é possível embasar as críticas à Escrita Criativa no trabalho de meia dúzia de prestidigitadores que oferecem, em links patrocinados que exaustivamente invadem a nossa timeline, a salvação de um escritor esfregando uma nota de cem reais num lápis?

Será que a Nina Rizzi, oferecendo uma oficina para mulheres cis e trans em Fortaleza, ou o Carlito Azevedo, oferecendo uma oficina de poesia na Rocinha, estão mesmo querendo fazer dinheiro? Será que a Carola Saavedra está vendendo unguento na feira para uma multidão de desesperados? Será que o Carlos Eduardo Pereira ou o Geovani Martins, em suas experiências em oficinas literárias, estavam fazendo terapia ocupacional ou brincando de magia, vendendo a alma a troco de um lugar garantido na literatura brasileira contemporânea?

Creio que não.

Em artigo anterior (http://ficcao.emtopicos.com/2017/09/oficinas-literarias-ideias-equivocadas/), já revelei o quanto as críticas à Escrita Criativa escondem, no mais das vezes, ideias bastante equivocadas em torno do que representa e a que se propõe uma oficina de criação literária. Longe de formar escritores, as oficinas hoje atuam como espaços de discussão e produção de literatura, espaços que ainda não foram de todo contaminados pela vacuidade intelectual das redes sociais e tentam se sustentar em meio a um processo de extinção de livrarias e cafés literários – fomentando, inclusive, essa cultura de resistência. Isso para não falar das oficinas que são ministradas em quadrantes da metrópole em que esse tipo de estabelecimento jamais, de fato, se estabeleceu, e em cidades nas quais atividades culturais são tão raras quanto o número de vezes que vemos seus nomes nos mapas (pesquisem, por favor, os municípios visitados pelo projeto itinerante “Arte da Palavra”, do Sesc).

Eu não devia precisar repetir tudo isso. Escrevi este artigo porque queria esclarecer que resumir a Escrita Criativa a oficinas de literatura (ou a algumas abordagens francamente infelizes do tema) é tão enganoso quanto dizer que Walter Mercado é um astrônomo. É de um reducionismo tão ingênuo quanto o de quem diz que alguém formado em artes plásticas vai terminar pintando letreiros em paredes. Há agrônomos que nunca chegaram a plantar batatas. Psicanálise, meu amigo, não é coisa de maluco.

Na universidade, em sala de aula, projetos de extensão, grupos de estudo, teses e dissertações, ensaios e artigos, a Escrita Criativa está encampando uma luta para que a literatura brasileira contemporânea, sua ficção e não apenas sua fortuna crítica, seja lida, escrita, estudada, discutida, citada, abrindo as portas para os escritores e os seus testemunhos, sua experiência subjetiva, algo que não devia jamais ser alijado do saber acadêmico, muito pelo contrário.

Fora da universidade, em editoras, revistas, grupos de leitura, eventos literários, oficinas (também, claro), e mais importante: em obras – porque alguns de nós são antes de tudo escritores e têm um projeto literário que é prioridade, se desenvolvendo – obras que estão sendo escritas e publicadas, os que fazem a Escrita Criativa estão também movendo as engrenagens de um sistema literário que não é mais somente triangular (autor, livro, leitor).

Da próxima vez que for criticar a Escrita Criativa, pense bem: você pode ser um escritor que nunca se matriculou em um curso e nunca nem sequer pensou em ministrar uma oficina (acredite: a gente sabe que eles existem, literatura não é OAB pra exigir diploma), mas sem nem se dar conta, na sua experiência diária, se você é de fato alguém comprometido com o ofício e não somente um “escritor na empresa escritor”, nesse imenso conglomerado de empresas coordenadas pelo Zuckerberg, você, meu amigo, escrevendo no seu caderninho de notas, pode estar mergulhando na Escrita Criativa até o pescoço.

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Tiago Germano é mestre e doutorando em Escrita Criativa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). É autor do volume de crônicas Demônios domésticos (Le Chien, 2017) e do romance A mulher faminta, que será publicado este ano pela Editora Moinhos. Venceu o Prêmio Sesc Rubem Braga de Crônicas, em 2016, e foi finalista do Prêmio Açorianos de Criação Literária, no mesmo ano.

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Na foto, Véra Slonim e seu marido Vladimir Nabokov

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