* Por Paulo Ribeiro *

Quando a neve se desenha trêmula, incerta, imprevista, não entendemos este céu que nos cabe na furiosa desproteção. Quando a neve se desenha sofrem os filhos distantes colocando seus rosários contra o peito e com seus longos terços pedem notícias de suas mães, tão-só.

Mães que ficaram no Bonja de onde há sempre alguém partindo.

Cada um deste lugar já sabe que o céu se desenha como um incerto precipitar: pode ser agora, pode ser depois. Tempo de desafio. Desde crianças experimentamos a neve em nossos lábios e ela não tem gosto algum.

A neve é como a cópia de uma gravidez que não se confirmou.

A neve é nossa conhecida, a nossa neve é a mesma de nossos pais. Galho de pinheiro que a neve vergou. Rio que subiu. A neve vem de um mármore suspenso no céu. É a cor de trevo. Céu roxo, baixo, um céu no seu instante furioso: derrama seus capuchos de neve nas cumeeiras, derrama seus capuchos de neve nas cabeceiras iniciais.

E os rios enchem. Os fogões se enchem de lenha e se tapa a cidade de um branco total. E é quando os filhos distantes beijam o santinho no peito e lembram de suas mães. Dos casacões, das mantas e dos cachecóis. Cachecóis quase inúteis, pois que vale mesmo é um quente café.

A neve se desenha e se choram lágrimas a pensar uma mãe no Bonja a torrar o seu café. O aroma do café torrado é muito melhor do que o aroma da neve, que não tem aroma nenhum.

Filhos da neve, Bom Jesus sai para as ruas com suas botas campeiras e coturnões. As capas pretas em abrigo, os chapéus garantindo a visão. Neva nos chapéus destes homens, mas eles não deixam de ver. A neve, os filhos e filhas da neve sem temor.

A neve resulta num boneco bem montado. Palhaços, coelhos, castelos de bruxas, enfim. A neve faz de cada bom-jesuense um artista, um poeta que não gosta de poesia e descobre gostar. Olhar a neve da vidraça é um prelúdio inteiro. Um poncho que se arregaça para um declamar.

Canta a neve uma Ceres. Declama a neve um Tio Hugo. Toca a neve uma legião de gaiteiros surgidos no frio.

Ah, a neve. Quando a neve se desenha no anoitecer de Bonja é triste! Quando a neve se precipita pensamos ser as Meninas do Céu.

Quando a neve se desenha no Bonja há um temor e um afagar de cabelos.
Quando a neve se desenha há um perfume de afeto nas mães, nas lavouras brancas, brancas, tapadas, um aceno em cada mão. Quando a neve cai é como um adeus entristecido.

Com a neve nossos parentes então roucam com a coqueluche de quem não se preveniu. Desde sempre foi assim: neva em Bom Jesus e parece ser uma hóstia minúscula derramada por Deus. E Deus se derrama, se derrama, se derrama na transmissão de tudo o que ele criou: Adão e Eva. A neve de Bom Jesus.

Quando neve em Bom Jesus há um escapulário, um rosário, oração para a mãe que lá ficou.

E as ruas de Bom Jesus em noite de neve ainda mais se desenham como um medo. Uma espada de pau. É uma multidão de meninos que surge na esquina para o duelo, para as escaramuças e negaças que poderiam ferir.

Por isso, chamavam o Abilinho, juiz de menores, para a ronda geral e enregelado de frio. Seu apito não apita porque seus lábios finos endureceram com o severo frio.

As ruas de Bom Jesus, portanto, com a neve que continua a cair se desenham como um antigo medo, mas não é daquele medo dos meninos em fuga que eu falo.

Na verdade, eu nem deveria falar em medo, porque acostumei a acompanhar minha avó com sua bíblia contra o peito depois da sua Assembleia com Deus.

É um medo diferente. Talvez medo bom, porque é o temor de sair caminhar à noite pelas velhas ruas de nossos pais.

Nossas ruas, de fato, não parecem outras se andamos à noite. São mais ruas, entendem?! São mais ruas deles do que nossas.

Somos parece que perseguidos pelos seus fantasmas, pelas suas memórias, talvez por aquilo que ainda desejassem fazer. Não fizeram. Deixaram este céu estrelado e este inexplicável clarão.

E é bem isso. Andar nas ruas de Bonja é como um acerto de contas, um acerto de contas deles, mas que somamos a acrescemos juros por nosso dever.

Por que nos obrigamos a tal ajuste?

Em dias e noites de neve, no entanto, se suspende qualquer indagar. Observem as nossas passadas na neve: não são frágeis, mas é uma espécie de passear na incompreensão.

A Rua Farias Cancello, por exemplo, com a neve, é muito particular. É a rua das dores. Na casa do velho médico funcionou o primeiro hospital. Ali nasceram aqueles que andariam antes de nós pelas ruas de Bom Jesus. Ali uma perna quebrada. Ali uma cama feito padiola, maca de futura mãe.

Dar à luz à noite no que foi o potreiro deste homem: José de Farias Cancello. Seu potreiro depois virou Ginásio. E é uma experiência passar por lá pisando no chão macio da neve que acumulou. Há bem nítida a presença daqueles inúmeros freis. Subindo quem sabe as escadas, ajeitando uma incerta janela, eles em plena aula de latim. É de beijar santinho no peito.

E o velho céu de nossos pais prossegue com seus capuchos de neve a caminhar conosco pelas ruas do Bonja.

Trazemos bonés e gorros de proteção com um céu desses. Não há pausa. Serena na verdade é a noite mais linda do Bonja que se escolhe para caminhar na neve macia.

Às vezes, num dobrar de esquina, há algo a se esconder. Mas aí já não há o medo. Instintivamente continuamos pedindo as notícias mais comuns: ainda mora o fulano aqui? O que fizeram daquele bar?

Uma espada de pau de meninos a duelarem nas noites de neve em Bom Jesus.

É uma multidão de meninos que caminha então pelas ruas do Bonja sem saber que, numa outra parte da cidade, uma moça caminha só. É um outro mundo, é um outro Bonja que não soubemos compreender. Mas cai nos cabelos dessa menina só também a neve. A neve só dela. Meninas do Céu.

O Bonja da neve, das ausências prematuras, das mães que partiram cedo, dos pais que nunca chegaram a voltar.

Há este sentimentalismo que não tem o que cure e mesmo que a neve perdure continuamos a caminhar.

Gostamos de caminhar pelo Bonja em noites de neve. Não porque haja um mapa, lembre, sei lá, um trechinho de Londres.

Não. É porque as peras do Colégio das irmãs ainda estão ao nosso alcance com a lembrança do verão. As uvas e o cachorro brabo das irmãs por trás daquele muro ainda estão com a lembrança do verão. O verão de Bom Jesus, o Bonja, situado no Brasil.

Memórias em cada sapato, coturno ou bota a pisar pelos trilhos que nossas passadas na neve fazem.

Por isso voltamos às ruas de Bom Jesus em noite de neve e elas se desenham como um medo.

Você quebra na esquina do Seu José Sapateiro e vem aquele ventão. E aquela rua Laurindo então vai, vai, vai escura e soterrada de neve até no fundão.

Antes, balançou uma antiga placa do Dorval Vianna. Chacoalhou com o vento ainda no tempo em que a Lojinha Vianna rivalizava com o Ismael.

Ficava pairando sobre os dois comércios o Danda. Seu Danda que só usava um poncho bem grosso e queria lá saber…

Neve é pra quem bate pernas. Anda na Inácio Dutra. Dispensa a Empresa Régius.
Ande a pé nas ruas do Bonja à noite sem mais sentir o frio! Com uma coragem de mãe grávida. Há ruas cobertas de neve que parecem como cópia de uma gravidez.

Caminhar bem rente à paroquial e haverá sempre um pingo da calha a cair. É a neve a descongelar.

Neva. Neva. Neva e há um noturno encontro com os dois cavalos na fachada da casa do Adílio Velho. Os cavalos, os tobianos altaneiros, azulejos não sentem o mais duro frio.

Vejam como é bem variada a neve que acumula ali. Há um corrediço portão. Até aquário! Pra valer. Esquina Arthur Ferreira.

Esquinas imortais soterradas de neve. Esquina pra pensar um filho. Ruas que homenageiam a Pátria, vielas de lágrimas comuns. Uma lágrima na neve!

Quantos amores! Quantas tristezas, ruas de Bom Jesus.

Por esta muda consolação que aprendemos na caminhada — a multidão de meninos com a espada, a moça que segue só — se deduz por fim: não há um medo da neve, mas há um afagar de mães. Perfume de 100 anos que ainda perfuma. Afetos de 100 anos que ainda afetam. Lavouras de 100 anos que ainda nos dão o pão.

Um aceno de 100 anos persiste em cada mão. São nossos bons fantasmas, fantasmas de tudo, de todos, em nosso jejum.

Nas ruas do Bonja, à noite, com a mais terrível neve, nenhum medo nos ocupa.

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Paulo Ribeiro é escritor e lançará em breve a coletânea de contos Bagorra