asas

Por Raimundo Neto *

No início, a surpresa:

Já na página quatro do livro de Alex Andrade, pensei nos temas líquidos de Zygmunt Bauman. E ao terminar Amores, truques e outras versões, deparo-me com uma menção a ao sociólogo. Impossível não resgatar as ideias de Bauman ao ler o livro de Alex.

Em seguida, a indefinição:

Todas as linhas do livro montam um romance, ou são contos? Depende de como é lido: se os olhos lamberem as práticas sexuais dos personagens, o vazio varando a carne, então se tem em mãos uma história longa, um romance em progresso. Se o livro for lido ao poucos, experimentando o fim, a cada lamúria, que são suspiros e gemidos de um prazer melancólico, se o início de cada fim a cada linha for bem recebido, então teremos contos.

Os personagens, que são fins e começos de histórias que se comunicam em perspectivas diferentes, vivem o sexo como uma realização do corpo; o corpo é um palco para um espetáculo de vaidades rígidas; e tudo se esvazia tão rápido: o palco, o corpo, a possibilidade de durar. Tudo duro, rígido, veias saltando, líquidos engrossados por belezas esculpidas. E ainda assim tudo não dura nada. Todos os homens estão sufocados pela ideia de liberdade que a modernidade os emprestou: escolhe-se alguém para satisfazer o desejo com um toque; o toque que não alcance ninguém.

(“Da mesma forma que a maioria das inovações tecnológicas recentes, elas encurtam a distância entre o impulso e sua satisfação e fazem com que a passagem, de uma a outro seja mais rápida e menos trabalhosa. E podem também evitar que um parceiro exija mais benefícios do que o encontro episódico permite” Bauman)

E o dedo que penetra o corpo é o mesmo que seleciona os perfis para possíveis encontros.

É no contexto do mundo dos aplicativos e encontros casuais-sexuais que os homens manifestam o desejo voraz pelo corpo; homens que nunca se satisfazem, que consomem o outro e não possuem nada; um encontro sem nome não é suficiente, nada dura; e de dentro do desejo sem freios a destruição da subjetividade e da identidade: todos os homens do romance vagam ansiosos-vorazes-extasiados em busca da satisfação do impulso, desfocados, perdidos no próprio ato de desejar, que é infinito e sempre e muito indefinível.

(Bauman enxerga o mundo pós-moderno como um enfraquecimento dos laços humanos. Para ele, os sinais que temos hoje são confusos, propensos a mudar com rapidez e de uma maneira imprevisível, o que, segundo ele, é fatal para nossa capacidade de amar.)

É assim: os personagens do livro de Alex Andrade experimentam uma facilidade ao se desconectarem. As noções de ética liquifizeram-se, escorreram pelo corpo saturado de outros corpos sarados-definidos (O corpo definido traz si definição do que mais?). O movimento – do corpo também – de romper relações tornou-se banal: não há culpa, ressentimento, luto, arrependimento; não há incerteza, dúvida, ou qualquer tipo de investimento: o que existe é um desejo insaciável que não dorme nunca, que não pede desculpas, que vira as costas para quaisquer pessoas que já tenham satisfeito o corpo.

E a repetição é a única concretude. De novo, de novo, de novo. Liga, escolhe, anseia, decepciona-se, língua, corpo, a vida rasa, Deus me perdoe, a culpa, o cu, o pau, a frustação, a rua devora o corpo sem rumo, depois volta pra casa, aconchego, ninguém, a tela do smartphone, o bip suplicante dos aplicativos, o diabo, só pode ser o diabo, quero mais, não aguento mais, quero mais, não aguento mais, quero mais, não aguento mais, uma punhetação da alma estraçalhada, gozando rios de desejo insaciável.

(“Estar conectado é menos custoso do que ‘estar engajado’ – mas também consideravelmente menos produtivo em termo de construção e manutenção de vínculos. (…) Não admira que a proximidade virtual tenha ganhado a preferencia e seja praticada com maior zelo e espontaneidade do que qualquer outra forma de contiguidade. A solidão por trás da porta fechada de um quarto com um telefone celular à mãe pode parecer uma condição menos arriscada e mais segura do que compartilhar o terreno doméstico comum.” Bauman)

O dedo que desliza na tela, o gosto/não-gosto na ponta do dedo, uma luz acessa no olho que tudo vê e nada sabe ao certo; são centenas de perfis vistos por dia, e um mínimo de investimento; é a vaidade amplificada; o dedo quantifica pontos, e progressivamente a dependência torna-se insuperável: é preciso cada vez mais ver e ser visto – Não é preciso nome, não é preciso saber muitos detalhes do outro – curte o que? Ativo ou passivo?  Afeminado? Fora do meio? Tem foto mais à vontade?

A repetição toma conta de mim, por isso repito-me, enquanto leitor que escreve um texto-resenha. Também pretendo fazer sentido:

Alex Andrade desnuda as relações líquidas em tempos de aplicativos que facilitam (Facilitam?) relações; a luz em curto circuito de relações, das quais restam cinzas após a possibilidade de eletrocutarem-se. Relações temporárias na velocidade de um like; dois likes; 6 likes; 23 matchs; 76 visualizações; 122 perfis visualizados; 12 contatos de whatsapp; 34 caras ativos; centenas de homens sem vida, sem nome, sem rumo, entregues ao deus – o deus do cu valente que dá pra quem quiser, o deus que antagoniza com demônios insaciáveis que lambem paus desconhecidos em noites de insônia iluminadas por telas coloridas – ao deus dará, dará o corpo, e não sobrará nada.

(“Estar conectado é menos custoso do que ‘estar engajado’ – mas também consideravelmente menos produtivo em termo de construção e manutenção de vínculos. (…) Não admira que a proximidade virtual tenha ganhado a preferencia e seja praticada com maior zelo e espontaneidade do que qualquer outra forma de contiguidade. A solidão por trás da porta fechada de um quarto com um telefone celular à mãe pode parecer uma condição menos arriscada e mais segura do que compartilhar o terreno doméstico comum.” Bauman)

São três perspectivas: Três homens buscando experiências. Não se pode dizer que estejam perdidos, parecem saber com clareza o que querem. Um deles fala sobre o amor. É o olhar de cada um deles sobre o outro.

Um deles, noivo de uma mulher, encontra-se com o primeiro, que narra a primeira experiência, depois o primeiro encontra outro, com as mesmas frases cansadas, e então encontram-se, não rola, ou rola, depois um quarto, um quinto, e então outra perspectiva, e voltamos a olhar para o primeiro, ou é o segundo, sob outra perspectiva; chegamos a um emaranhado de homens sem medo, homens de muitos nomes, que são muitos, que estiveram próximos, desejaram-se momentaneamente, romperam um contato que nunca existiu de fato – como é que se rompe o nada? – e seguiram para o próximo desejo, como se nada tivesse verdadeiramente acontecido. E no final de cada página, questionei-me se algo de real aconteceu entre eles. É a orgia do sem nome.

(“A modernidade líquida em que vivemos traz consigo uma misteriosa fragilidade dos laços humanos – um amor líquido. A insegurança inspirada por essa condição estimula desejos conflitantes de estreitar esses laços e ao mesmo de mantê-los frouxos.” Bauman)

Em Amores, truques e outras versões, um emaranhado de homens sem nome que nunca se conheceram (e nunca se conhecerão) de fato, incapazes de se reconheceram na vida além de aplicativos, desinteressados que vivem nas peculiaridades; são homens que leem trechos e fragmentos do que o outro se propõe a ser, mas que também não sabe assumir-se inteiro: todos os homens sem nome são trechos soltos de histórias incompletas.

Nas relações que não se efetivam com permanência o que existe é fluidez, é assim a modernidade líquida de Bauman, onde não há valorização do permanente, o que tem valor é o temporário, é assim para os personagens de Alex Andrade.

Por fim, a certeza: Alex Andrade é um nome da literatura contemporânea que trata de “temas líquidos” com a solidez dos grandes escritores.

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Amores, truques e outras versões (editora Confraria do Vento, 107 págs.), de Alex Andrade

Avaliação: Bom

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Raimundo Neto é escritor, colabora com a SPR