* Por Sérgio Tavares *

Uma torção no tornozelo e arranhões pelo corpo são as consequências físicas de uma tentativa malsucedida de escalar uma cascata. Psicologicamente, a coisa é mais grave. Karen, a personagem que dá nome ao romance da portuguesa Ana Teresa Pereira, não se lembra quem é, tampouco onde está.

Acorda num quarto, nas dependências de um casarão no interior rural da Inglaterra. Contempla as pinturas, a paisagem do lado de fora da janela, a fotografia de uma mulher que se parece consigo, porém não consegue ter familiaridade com o local, sente-se uma completa intrusa naquele ambiente.

Em seguida, conhece Emily, uma espécie de governanta que a chama de Karen (embora use o artigo “a” sempre na frente do nome: a Karen, como se falasse de uma terceira pessoa). Ela informa que a personagem é casada com Alan, dono do casarão. O universo doméstico se completa com a empregada Carol e o cachorro Sam.

Quando Karen se encontra com o marido (ainda que não o reconheça como tal), descobre que tiveram uma forte discussão, minutos antes do acidente. Alan confessa que se casou com ela por conta de uma herança que Karen irá receber daqui a alguns dias, quando completará 25 anos.

Ele tenta ser escritor, e o dinheiro será fundamental para sustentar seu propósito de vida. Karen é de Londres, e nada de mais cristalino se revela sobre seu passado. De alguma forma, parece que todos que a rodeiam querem lhe manter prisoneira de sua impossibilidade de discernimento.

Ana Teresa Pereira constrói um enredo de profundo clima psicológico. Apesar da escrita fina, comandada por tons de lirismo e densidade imagética, a força motriz se estabelece na dimensão subjetiva, num espaço cuja plasticidade se compõe da matéria dos sonhos, da textura porosa dos devaneios.

A narrativa alimenta uma atmosfera de crescente mistério que vai tomando conta do relato, potencializada pela interação da protagonista com imagens que sugestionam falta de transparência ou de entendimento, a exemplo de nevoeiros, poços e da própria cortina d’água da cascata.

Tal efeito traz uma aura da literatura produzida no século XIX, ainda que alguns elementos mostrem que a trama se passe nos tempos atuais. Não por menos, o norte-americano Henry James é mencionado e sua obra-prima, A volta do parafuso, representa uma influência direta para a mecânica da história.

Karen, desse modo, pode ser considerado um livro de fantasma, o fantasma que uma mulher se torna quando precisa reaprender quem de fato é. Como mesmo diz, a certa altura: “Lembro-me de ter lido em tempos que cada um de nós é realmente duas pessoas, e quando uma está adormecida num lugar, a outra vive uma existência diferente”.

O romance, cuja edição brasileira mantém sabiamente o português original, conquistou o “Prêmio Oceanos 2017”.

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Karen, de Ana Teresa Pereira (editora Todavia, 118 págs.)

Avaliação: avaliação_penaavaliação_pena (Muito bom)

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Sérgio Tavares é escritor e crítico literário

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