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Por Jacques Fux *

“Escrever o que não se pode escrever também é escrever.”

Robert Walser

Escrever é também não falar. É calar-se. É uivar sem ruídos.”

Marguerite Duras

Eu tive a imensa felicidade de escrever meu primeiro livro/tese de doutorado, Literatura e Matemática, em Paris. E a partir daí fiquei muito mal acostumado, assim como Hemingway: “If you are lucky enough to have lived in Paris as a young man, then wherever you go for the rest of your life, it stays with you, for Paris is a moveable feast”. Mesmo em meio a muita festa, muitos amigos, muitos amores, consegui (acho, ou invento) ser bastante produtivo e realizar um trabalho razoável. E pensei ingenuamente que o processo de escrita consistisse sempre num ato prazeroso, divertido e gratificante. Uma “festa ambulante” em cada página e letra criada. Não poderia estar mais enganado. (Como a ignorância é uma benção!).

Logo em seguida, ainda exaltante e ingênuo, escrevi o Antiterapias, e transformei a minha própria vida em literatura (ou será que foi a literatura que passou a ser a essência da minha vida?). Escrevi com afinco, dedicação e amor o meu primeiro romance, em meio à confusão festiva da minha vida cotidiana: família, amigos, desencontros, angústias, incertezas. Estava imaginando um projeto literário e tentava vislumbrar as veredas por onde gostaria, ou conseguiria, caminhar. Sofri, chorei, fui premiado, e me encantei definitivamente com esse mundo mágico e quase inconcebível.

Assim, já um pouco mais certo de que a literatura podia ser uma surpreendente possibilidade, dediquei-me fervorosamente a escrever o Brochadas (que será lançado em maio de 2015 pela Rocco, autojabá!). Também foi um momento extremamente conturbado e bastante festeiro: vivia permeado de livros, amigos e amores na deliciosa e inspiradora Boston, mas tinha acabado de tomar um doloroso e inesperado pé-na-bunda (literal e literário). Descobri que a literatura podia ser um excelente refúgio diante das agonias supostamente reais, mas nunca imaginaria que ela também se metamorfosearia num carrasco tão algoz, bestial e assombroso. Eu definitivamente havia feito um pacto sanguíneo faustiano com as letras e por isso tinha obrigação de pagar o meu quinhão. Acabei me transformando na minha própria obra: totalmente impotente e brocha. E aquilo me fez confrontar com o outro lado diabólico desse espelho sombrio que também é a própria literatura.

Acorrentado em meio aos problemas eréteis e à impotência diante da contingência da vida, consagrei minha pulsão à escrita satírica do momento que vivia. Eu, matemático, escritor, judeu brocha e neurótico, tinha acabado de somatizar todas as misérias e zombarias descobertas no Brochadas, e precisava exorcizar minhas quimeras. Consagrei muitas centenas de horas à escrita de um novo livro (ou de um lamento) sobre a loucura. Não sei se o livro presta, nem sei se vai virar alguma coisa, mas garanto que fui bastante prolífico e que consegui me livrar da maldição do livro anterior.  Aleluia. Amém. Glória, glória!

Mas esse demônio literário não te alforria assim tão facilmente. Ele te cobra, ele te persegue, ele te atormenta e transtorna. Ele exige o máximo do seu corpo, da sua alma, do seu sangue. E agora o meu ônus seria outro. Mais uma temível danação. Acabei assimilando todas as torturas, invenções, loucuras e privações dos personagens do novo livro. Eu estava totalmente exposto e indefeso introjetando as agonias, aflições, desesperos e desvarios dos malditos e delirantes heróis do meu romance. Foi uma experiência horrível. E, completamente combalido, cheguei até a conjurar, renegar e execrar o meu próprio amor pela literatura.

Mas então, para meu alívio, para descansar da loucura, fui aceito numa residência literária em Nova Iorque, de onde escrevo agora. Horinhas reconfortantes de descuido! Tive a oportunidade de visitar novamente meus amigos e minhas lindas memórias de Boston, e também algumas de Paris, e me lembrar como eram bons meus longínquos momentos de sanidade. Consegui finalmente me acalmar e comecei lentamente a subjugar os meus desvarios, medos, fabulações e pesadelos.

Eu desfrutaria da tranquilidade de um lugar um tanto isolado, cercado por montanhas, florestas, animais, rios, além das palavras e dos sonhos de outros escritores, para poder voltar a criar. Seria o lugar certo para retomar o meu equilíbrio e reescrever os grandes clássicos da literatura. E eu não seria nem mais brocha e nem mais louco! Que júbilo, eu fantasiava! (Também invejava os audaciosos escritores que já tinham vivido, e engendrado palavras, nesses fecundos ambientes bucólicos. Como bem escreveu Noll: “Separar-se da sua família, do seu idioma, do seu país, para vir assentar em outro lugar é uma audácia acompanhada de um frenesi sexual: sem mais proibições, tudo é possível. Pouco importa se a passagem da fronteira é seguida por uma orgia ou, pelo contrário, por um recolhimento medroso”). Eu ansiava por viver meu frenesi orgástico sexual e inventivo!

Mas, novamente, a literatura que me proporcionava a euforia de viver uma preciosa e singular experiência, reclamava tiranicamente sua parte. Essa maldita e sagrada soberana das artes e das ciências zombava e desdenhava novamente de mim. Cá estou, numa residência de escritores, artistas e visionários, com tudo voltado exclusivamente para o ato de escrever, criar e produzir qualquer obra de arte, na maior quietude, liberdade e harmonia possíveis, além de ser constantemente inspirado por livros, trabalhos e projetos de ilustres ex residentes, mas simplesmente não consigo escrever uma infausta linha. Desde que cheguei nesta bendita e perversa residência estou obscuramente bloqueado. A abominável página em branco, que até então nunca havia me desestabilizado, agora não para de me afrontar e perturbar.

Seria essa minha resistência literária fruto de uma exacerbada pulsão em dizer? Ou seria o silêncio de quem não tem mais condição nenhuma de elaborar? Faria finalmente parte da célebre turma do Bartleby? Os meus fantasmas, antes inspiradores e motivadores como Borges, Perec, Joyce, Rosa, Roth e Proust teriam se transformado em demônios, igualmente instigadores, mas agora exigindo veementemente minha mudez? Doravante caminharia junto aos endiabrados e taciturnos Walser, Rimbaud, Juan Rulfo, Musil, Salinger, Valéry, Nassar, que se calaram misteriosamente em momentos cruciais de suas vidas literárias? Eu, que sempre achei apolíneo, poético e encantado o silêncio (dos outros), nunca imaginaria sentir e experienciar essa pavorosa frustração… muito, muito pior que uma mera brochada.

Aqui não há nenhuma das festas ambulantes de Paris, de Boston ou de BH. Também não há nenhuma grande angústia, brochada ou loucura para me pulsionar a escrever. (Seria esse o motivo da minha afasia?) Miseravelmente me calo no lugar em que mais me incita a falar. Desgraçadamente digo um vigoroso ‘Não’ à toda literatura e à todos os engenhosos escritores. “Disponho-me, então, a passear pelo labirinto do Não, pelas trilhas da mais perturbadora e atraente tendência das literaturas contemporâneas. (…) Apenas da pulsão negativa, apenas do labirinto do Não pode surgir a escrita por vir. Mas como será essa literatura?” (Vila-Matas). Sequer vislumbro ‘essa literatura por vir’ em função do meu lastimável e repentino silêncio. Apenas, e humildemente, desejo voltar a escrever (e não é isso que estou fazendo?)… mas com a certeza, e com o pavor, de que em breve serei cobrado de alguma outra forma. Maldito e fantástico pacto literário!

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Jacques Fux venceu o Prêmio São Paulo de Literatura 2013 com o livro Antiterapias , além do Prêmio CAPES de Melhor Tese de Letras/Linguística do Brasil em 2011.  É pesquisador visitante – Universidade de Harvard (2012-2014), pós-doutor em Teoria Literária – Unicamp e pós-doutorando em Literatura Comparada – UFMG