* Da redação *

Entre 1915 e 1951, La Maison des Amis des Livres, livraria de Adrienne Monnier, em Paris, foi ponto de encontro de Paul Valéry, André Gide, Jean Cocteau, André Breton, Walter Benjamin e James Joyce. O local funcionava também como editora, e uma de suas publicações em especial teve grande repercussão: a primeira edição em francês do romance Ulisses, de Joyce, em 1929.

Os textos que compõem Rua do Odeon, de Adrienne Monnier (Editora Autêntica, 240 págs.) constituem um relato da trajetória do lugar, de suas atividades e de alguns de seus frequentadores, além de ser um autorretrato de uma mulher que soube reunir em torno de si um fascinante grupo de intelectuais. Leia trecho do livro abaixo:

Odeon_paris

Elogio do livro pobre 

Não quero fazer o elogio do livro pobre às expensas do livro rico. Um belo livro liberalmente revestido de beleza conta entre os bens mais desejáveis desse mundo; o espírito não tem morada que lhe agrade tanto e que o afague melhor. Não há elogios mais sensatos que aqueles dirigidos às magníficas ilustrações e às encadernações sérias. Mas são elogios feitos inúmeras vezes, e não me parece que já se tenha pensado em elogiar livros pobres.

Vamos tentar definir o “livro pobre”. Trata-se, em suma, do livro barato, o mais barato, e sobretudo o mais desnudado de pretensões em sua forma. Não incluiremos nessa categoria de “pobres” aqueles que, apesar de seu preço módico, ganham formatos, ilustrações e mesmo coloridos afastados de toda modéstia. Não, o livro pobre é um livro de formato comum, preferencialmente menor que o comum, e cujos detalhes, todos, manifestam economia. O papel não é belo, é verdade, mas não pretende ser nem espesso, nem lustroso: é papel. A impressão é apertada, corpo 9 no máximo, as margens são pequenas: é um impresso. A capa não se arrisca a uma nudez orgulhosa; prefere um fio simples ou duplo, com cantos suavizados por um arabesco ou algum pequeno jogo de linhas; mostra com frequência uma vinheta, sempre a mesma, como uma joia de família finamente trabalhada. Os Michel Lévy,[1] os primeiros “Romans étrangers” [Romances estrangeiros], da Hachette, eram os modelos do gênero. Não vejo, entre as produções da edição moderna, livros pobres segundo meu gosto.

Há uma coleção do século passado que tem todo meu apreço (confessarei que empreendi o elogio do livro pobre para falar dela?), a Bibliothèque Nationale. Não se veem mais livros dessa coleção, não são vistos mais de modo algum; Gibert e Flammarion os ignoram; parece que as caixas dos cais não os recebem mais. E, no entanto, abundavam antes da guerra. Lembram-se, custavam 5 sous; eram encontrados usados por 2 sous. Eram pequenos, de um azul-cinza cor céu de Paris que, com o tempo, esverdeava um pouco, mas de uma maneira muito digna. Sua capa era ornamentada com uma vinheta como um friso que pode passar por um dos bons produtos do espírito ingênuo do século XIX.

Via-se uma perspectiva de cidade com um Panthéon, uma cúpula dos Invalides, uma Notre-Dame, uma flecha da Sainte-Chapelle, um arco de triunfo – provavelmente a Câmara dos Deputados e a Bolsa; nos ares, um balão. No centro, sobre uma plataforma para a qual subiam escadas laterais, uma mulher com traje longo erguia-se, com o sol às suas costas. A mão direita mergulhava em uma pilha de coroas posta sobre uma estela, e a outra mão apresentava uma dessas coroas a um indivíduo que subia a escada esquerda, os braços estendidos, e que só estava separado dela por quatro degraus. Na parte inferior da escada, a multidão se comprimia, indistinta. A plataforma que se estendia entre as escadas apresentava três placas dispostas em triângulo; a do alto mostrava a palavra “Arts”, e as de baixo, “Sciences” e “Lettres”; dois ramos de louro entrecruzados asseguravam o enfeite dos espaços compreendidos entre as placas. O conjunto da imagem repousava sobre bordas longitudinais de folhagem que formavam dois enquadramentos superpostos. O enquadramento superior, o dobro do outro, continha o título da coleção, “Bibliothèque Nationale”, o nome do autor e o título da obra, cuidadosamente separados por pequenos traços; o enquadramento inferior continha a identificação da editora, que punha, antes de qualquer outra indicação, o da cidade luz: Paris. É preciso acrescentar que, na base das bordas de folhagem, repousando sobre o solo falso, eram representados, à esquerda, uma pá e uma foice, e, à direita, uma bigorna e um martelo. Fora do enquadramento, bem embaixo, duas linhas destinadas ao preço: “25 cêntimos” e “Vendido sem custos de remessa em toda a França: 35 cêntimos”.

Alguns de meus leitores, fazendo aqui um intervalo, pensarão que não sou lógica em relação a mim mesma. Defini o livro pobre como o mais desnudado de pretensões em sua forma; ora, não ressalta de minha descrição que essa excelente coleção tinha um aspecto antes atravancado? Pois bem, não, esse aspecto era, apesar de tudo, o mais apagado, o mais humilde que se possa imaginar; o monte de símbolos que o governava se reduzia a pequenos nadas indiscerníveis. Essa capa era vista e não era vista; eu a quis olhar com os olhos do amor, fiz dela um monstro. De fato, ela não era mais visível que a semeadora num selo,[2] a fênix de uma moeda, as procissões minúsculas de tipos que cobrem o fundo dos cheques. Ela atingia sua ideia a passos de formiga e se fundia nela.

Na quarta capa (as faces internas da capa traziam o catálogo da coleção) havia este texto: “A Bibliothèque Nationale, fundada em 1863, com a finalidade de fazer penetrar no seio dos lares mais modestos as obras mais notáveis de todas as literaturas, publicou, até hoje, as principais obras de: […]” Seguia-se uma lista abundante.

Em 1889, isto é, vinte e seis anos depois de sua criação, ela contava cento e quatro nomes. Nela se encontravam mais ou menos todos os clássicos franceses, alguns antigos e alguns estrangeiros, sem dúvida muito bem escolhidos. Avaliem: Alfieri, Ariosto, Beccaria, Byron, Cervantes, Dante, Erasmo, De Foe, Goethe, Goldsmith, Maquiavel, Milton, Schiller, Shakespeare, Sterne, Swift, Tasso.

Tenho nas mãos Hamlet, publicado em 1873. Começa com uma advertência cujas primeiras linhas são as seguintes: “Desde a criação da Bibliothèque Nationale anunciamos que publicaríamos as obras de Shakespeare, o homem de gênio, entre os escritores estrangeiros, que conquistou entre nós a maior popularidade, graças às numerosas traduções ou imitações de que a maioria de suas peças de teatro foi objeto”.

O autor da advertência diz mais adiante: “Decidimos ficar pura e simplesmente com a tradução de Letourneur; é a nosso ver a mais completa e a melhor. Não quisemos levar em consideração os retoques dos senhores Guizot, de Barante, Pichot e Francisque Michel, que nada acrescentaram à inteligência do texto. Temos em particular estima o recente trabalho do filho de Victor Hugo, mas não podíamos, para nosso grande pesar, nos servir dele. Quanto a Ducis, suas pálidas imitações não podiam dar uma ideia suficiente do poder de imaginação e de estilo de Shakespeare”.

Eu gostaria de saber o nome do fundador da Bibliothèque Nationale. É mais que um homem destemido. Tratava de maneira talvez levianamente os retoques dos senhores Guizot, de Barante, Pichot e Francisque Michel, mas não hesito em adotar seu ponto de vista, diante da finalidade que ele se propunha. Seguramente era muito modesto; seu nome não figurava sequer nos volumes dos primeiros anos; a imprenta trazia simplesmente “Librairie de la Bibliothèque Nationale”. Por volta de 1880, um certo L. Berthier era editor da coleção; parece-me que, a seguir, ela passou por várias outras mãos. Atualmente, está com Tallandier; os volumes custam 75 cêntimos e 1 franco; o catálogo está bastante empobrecido, a maioria dos títulos estrangeiros está em falta. E depois, como eu dizia acima, não há como encontrar um só exemplar, pelo menos na margem esquerda, onde passei uma tarde a fazer buscas.

Guardo uma lembrança muito terna da Bibliothèque Nationale, porque foi ela que me deu, quando eu era criança, os primeiros elementos de minha cultura literária. Minha mãe comprava nos cais tudo o que encontrava dela e deixava que nós, minha irmã e eu, fizéssemos todo o uso. Para ela e para nós, eram menos livros do que pequenos veículos imateriais que nos transportavam ao reino do espírito. Nunca sua aquisição pesou em nossa bolsa, eram dados, como a água e o sol. Os centavos que nos custavam não eram verdadeiramente uma despesa, mas um óbolo vertido alegremente nas portas do templo.

Certamente eram pobres e feitos para os pobres, e todavia eu lhes devo a mais verdadeira e mais duradoura das riquezas. Foram eles que me fizeram conhecer Ulisses, Dom Quixote, Panurge, Gulliver, Robinson Crusoé, Fausto, Hamlet e o Rousseau das Confissões. Foi por meio deles que me aproximei de Dante, Shakespeare e Milton. Epiteto chegou a mim sob sua capa, e essa capa era-lhe perfeitamente adequada.

Com frequência penso nessas primeiras leituras com emoção. Teriam elas sido tão fortes, tão fecundas, se me tivessem posto nas mãos um livro caro, ou mesmo simplesmente um livro comum mas julgado digno das prateleiras de uma biblioteca, e se me tivessem recomendado, antes de tudo, para ter cuidado com eles? A ideia de valor material não limitava o movimento do espírito. Lembro-me de um Dom Quixote de que havíamos encontrado os quatro volumes com a lombada nua, sem capa, amarrados por um grosso barbante que marcava duramente as páginas. Esse triste estado, longe de nos afligir, havia nos alegrado ainda mais, na medida em que era a causa de um excessivo baixo preço. E nunca, em nenhuma edição, conheci melhor o cavaleiro da triste figura.

Sim, pensando bem, parece-me certo que os grandes livros nunca estão tão bem instalados como quando estão nos livros pobres, na verdade só são mesmo grandes assim. São os livros pobres que lhes asseguram uma circulação obscura, vital, como o curso do sangue; são eles que, por sua humildade, lhes mantêm a glória; são eles que lhes dão a liberdade de que têm necessidade para seguir seu destino e para ultrapassá-lo; são eles que fazem o melhor para torná-los imortais.

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[1]  Referência a livros publicados pela Michel Lévy, antiga editora francesa. (N.T.)

[2]  A partir de 1903 muitos selos postais franceses traziam a imagem de uma mulher que semeia (“semeuse”, “semeadora”). (N.T.)

 

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