* Por Alessandra Simões * 

Uma das principais características da produção artística na contemporaneidade tem sido a dominação do discurso sobre o resultado estético. Essa foi minha impressão quando visitei o artista Tunga (1952-2016), em seu ateliê, no Rio de Janeiro, em novembro de 2004. A visita foi por encomenda de uma reportagem para a revista Bien’Art, de São Paulo. O artista também morava no local, enfim, era sua casa-ateliê, uma espaçosa construção em forma de cubo branco, de matriz modernista, erguida sobre enormes colunas, pé-direito altíssimo, generoso ambiente interno, amplas portas de vidro, cravada aos pés da pedra da Gávea, cercada de Mata Atlântica.

É claro que Tunga produziu uma obra complexa, portanto, um risco superficial generalizá-la como reprodutora apenas dos parâmetros propostos pela arte conceitual. Tunga desafiou idéias estéticas habituais, mesclou uma série de propostas cujas raízes podem ser encontradas desde as vanguardas do início do século 20, passando pelas inovações dos anos 1960 e 19070, até a contemporaneidade. Mas a presença do discurso na obra se revelou como a espinha dorsal do artista.

A arte pop, o minimalismo, a arte conceitual, a performance; são muitas as matizes na enviezada obra de Tunga, uma verdadeira investida contra o dogma greenbergiano e sua visão formalista, e contra as noções clássicas da obra de arte no ocidente. O predomínio da ideia sobre a forma; a linguagem como “material” de feitura da obra; o processo como fim; a tautologia.

Tunga reuniu todas essas características e algo além. Moldou-se como um artista significativamente situado em seu tempo: a contemporaneidade. Sua obra, complexa, enviesada, extremamente auto-referente, é definida principalmente pelo seu caráter tautológico e pela presença preponderante do discurso em relação à forma.

A maneira com que o artista moldou seu discurso passou principalmente pela formulação da ficção, construída a partir de elementos imaginários calcados no real, elementos da realidade inseridos em contexto imaginário ou mesmo elementos auto-referentes em suas várias obras.

Durante a entrevista, Tunga se colocou como personagem de suas próprias ficções. Logo na primeira pergunta, que teria como objetivo extrair dados biográficos do artista , surgiu a seguinte resposta:

“Começar pelo começo já começa a me interessar. Porque toda realização temporal que eu coloco à disposição dissolve a noção de começo. Há uma noção de contínuo na qual o começo pode ser encontrado em qualquer ponto, em qualquer momento da produção. É um contínuo resgate de obras anteriores ou posteriores. Isto vai, portanto, caracterizar uma ideia de pastiche. O fim da ideia de começo é talvez o início da noção de frentes de trabalhos, descobertas, portas abertas que levam a caminhos que se entrecruzam. Esta visão tautológica do espaço faz com que este começo seja apenas um momento determinado, ou seja, o momento em que estamos agora ou o momento em que se entra na obra. A obra é evidentemente um complexo aonde você tem inúmeras entradas, algumas mais traficadas, outras herméticas, entre aspas. O começo pode ser a fascinação estética que uma obra impõe, ou pode ser uma fascinação por um campo magnético que tem uma particularidade visual inédita, ou estar ligado a uma situação política precisa ou à sensualidade ou a um conjunto de idéias claramente apresentadas etc. etc. O trabalho pode te remeter a outros trabalhos, referências, de modo que o começo pode ser Palmares, Pernambuco, ou Rio de Janeiro. Costumo falar que nasci nestes dois lugares, no mesmo dia, na mesma hora, no mesmo local, talvez por coincidência a minha mãe ou as minhas mães sejam gêmeas. Então, pode parecer ficção absurda, mas tem como função desestruturar a noção de biografia. Ou seja, talvez eu tenha me juntado de duas mães e de dois lugares diferentes. Isto se resume a uma coisa mais simples: não importa de onde você vem, mas para aonde você vai.”

O nome de batismo do artista é Antonio José de Barros Carvalho e Mello Mourão. Durante a entrevista, ele também afirmou que não sabe de onde veio o apelido Tunga, apenas lembra que desde muito criança seu irmão o chamava assim. Tunga é filho de Gerardo de Mello Mourão, jornalista e poeta épico, católico de erudita expressão. Nasceu em Palmares, interior de Pernambuco, em 1952. Diante da minha insistência em saber mais sobre suas origens, o artista respondeu: “Não sou made in Brazil, sou made in Vênus (…).Só tenho uma certidão de nascimento de Palmares, não fiquei lá. Posso acreditar nos documentos em si? Isto já uma ficção, as ficções sim me interessam, pois têm motivo e loca.l A pergunta certa a ser feita é ‘você se lembra?’ Não me lembro quando nasci.”

Com ironia peculiar, Tunga se colocou constantemente como o próprio personagem das ficções que criava e retratava em diversas obras. Em 1989, foi ao programa de TV Jô Soares Onze e Meia para mostrar a obra Cipó Cinema. Durante a entrevista, contou que, num dia de ócio, em sua casa, deitado na rede, viu duas lagartixas se engolindo. Depois da deglutição mútua, elas haviam se transformado em outras duas lagartixas: uma com duas cabeças nas extremidades e sem rabo; outra com dois rabos e sem cabeça. Para provar o feito, ele mostrou os animais: eram duas lagartixas de borracha, daquelas vendidas no camelô, montadas de acordo com a ideia do artista. O título Cipó Cinema é uma referência ao cipó ayahuaska, utilizado no antigo ritual indígena hoje conhecido como Santo Daime. Cinema, explicou o artista, porque a alucinação é o cinema das selvas tropicais. A gargalhada no programa foi geral.

Além de criar ficções como discurso justificativo de suas obras, Tunga mistura uma série de elementos em seus trabalhos, muitas vezes compostos por obras que se referem umas às outras, mesmo que apresentadas em lugares e momentos diferentes. Estes elementos estavam bem representados em uma das maiores antologias de sua obra, em 1997, no Museum of Contemporary Art, em Miami. Em texto que acompanhava a mostra, intitulado Xifópagas Capilares Entre Nós, Tunga contou histórias supostamente vividas por ele quando da construção do Túnel Dois Irmãos, no Rio. Ali, teriam sido encontrados restos arcaicos da história de duas gêmeas sacrificadas em ritual de escalpo (couro cabeludo arrancado do crânio) por sua comunidade. As cabeleiras viraram troféu e esta imagem foi parar em várias outras obras. Uma das imagens mais conhecidas na obra de Tunga são as grandes cabeleiras feitas de materiais diversos, muitas vezes, em forma de longas tranças. A história do túnel também foi tema do vídeo Nervo de Prata, feito com o artista Arthur Omar.

A questão do discurso na obra de Tunga é tão pertinente que o artista passou também a criar “neologismos conceituais”. Utilizou por exemplo, o termo “instauração”, que seria uma performance intercalada com outros recursos, como desenhos, instalações, esculturas etc. Na entrevista, afirmou que performance é “linguagem usada por revista americana, lembra resultado, desempenho”. Ele preferiu a ideia de experiência para definir algumas de suas obras. “Instalação tem pouco sentido. A palavra se vulgarizou e não define absolutamente nada”, afirma com seu engajamento antimodista. Um de seus termos prediletos é instauração, que significa “inaugurar um fenômeno.”

Uma das “instaurações” mais conhecidas de Tunga é Cem Terra, feita no final dos anos 1990, a convite do Instituto Itaú Cultural para as comemorações do Dia da Escultura. Tunga juntou uma centena de office-boys, que ocuparam um quarteirão inteiro na Avenida Paulista, ora deitados em redes, ora fazendo coisas aparentemente absurdas, como mergulhar ossos em baldes com tintas. Para Tunga, tratava-se de comemorar o dia da “ex-cultura”, pois conceitos com este já estariam ultrapassados para a arte.

A atitude de criar esses termos revela-se intimamente ligada ao perfil de uma arte contestatória frente às relações de poder nos circuitos artísticos, como comprova a instauração Cem Terra. “Sou radicalmente contra colocar uma escultura em via pública e obrigar os passantes a engolir aquilo. É uma forma autoritária de criar um diálogo com a arte. Então, propus colocar outros passantes”, afirma o artista na entrevista. Até mesmo o espaço de criação – seu ateliê – seria o que ele chama de “espaço psico-ativo”. Ateliê para ele seria apenas modismo do meio artístico. E um outro galpão onde estava parte de suas obras seria a “Tungolândia”. Tunga também afirma não se encaixar no rótulo de “artista”. Ele se diz “poeta”, pois a poesia seria a forma transformadora:

Toda visão poética é necessariamente política. O que é preciso é tornar vigente o pensamento poético no campo social, na medida em que o pensamento político se propõe a transformar a visão da realidade. Além disso, a construção poética nos permite pensar a realidade, soluções para o campo real, apresentadas antes pelo campo da política, sociologia, economia. É um modo efetivo e transformador. Tem uma vigência. É preciso levar a sério a poesia. Ela não produz apenas um efeito mercantil, estético, mas o efeito, a capacidade de transformação do sujeito.”

Com esta visão, ele seria uma representação paradigmática dos anseios da arte contemporânea. Na “instauração” Tereza, realizada pela primeira vez, em 1998, no Museu de Belas Artes, no Rio de Janeiro, o artista reuniu um grupo de sem-teto; todos fizeram tranças de cobertores, em referência à “teresa”, tática usada por fugitivos das cadeias. Neste caso, as “teresas” representavam a fuga do museu e de seus padrões elitizados. Segundo Suely Rolnik: “Em função dessa política específica de separação entre arte e vida, própria do contemporâneo, a utopia de religá-las continua na ordem do dia; mas esta questão, que atravessa toda a história da arte moderna, recoloca-se hoje em novos termos. É exatamente neste ponto que encontramos Tunga e suas ‘instaurações’, que compreendem um dispositivo singular que, com sagacidade e humor, se instala no âmago da ambiguidade do capitalismo contemporâneo e, dentro dele, o artista problematiza e negocia com sua nova mobilidade de relação com a cultura” (Citação de parte do texto “Despachos no Museu, sabe-se lá o que vai acontecer”/2001).

Tunga propôs uma espécie de jogo artístico auto-referente, no qual o discurso e as palavras são as bases propositais. Claro que há muitas outras características inseridas em sua obra, como a ideia de uma poética ligada a um lirismo alquímico, revelado no uso de elementos como chumbo, ouro, madeira, ferro, borracha, argila, éter, imã. Porém, a questão do discurso tornou-se amplamente pertinente visto que em torno dele rondam os satélites de suas propostas. Ao mesmo tempo, diante de tanta complexidade, continua-se diante de uma forte questão – para alguns ainda em aberto; para outros, já esgotada – relativa à arte contemporânea: é preciso conhecer o artista e seu processo para fruir sua obra? Diante de tantas complexidades, onde está o sentido final da obra?

Para o próprio artista, não haveria como medir questões tão subjetivas, mas falou de uma certeza explícita a respeito do efeito transformador dessa arte:

Os significados se multiplicam no tempo, este é um atributo da arte. Não sinto nenhuma piedade por quem possa se vexar frente à complexidade de uma obra. Ao contrário. Quer ver coisas mais simples, veja um sinal de trânsito, vai ser fácil entender se está aberto ou fechado. Fazer arte é criar densidades, é criar complexidades, criar camadas de sentidos, que se desdobram no tempo e criam sentidos novos. O mistério está aí porque a arte nunca se revela integralmente, nunca se desnuda totalmente. Haverá sempre ossos para trás.”

Tunga mostra assim que a potência de transformação da arte passa necessariamente por instâncias difusas, complexas, quase intocáveis. Seu efeito pode ser visto muito mais tarde; seja de forma individual, coletiva, subjetiva, social. Mas é definitivamente um efeito transformador. Seu legado está definitivamente em cada um de nós, fruidores da arte contemporânea.

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Alessandra Simões é pesquisadora de artes visuais, docente na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e auto-desescolarizadora no momento

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