* Por Daniel Manzoni-de-Almeida *

Não está sendo incomum eu escutar de várias pessoas que já olham o confinamento iniciado em 2020, causado pela pandemia da covid-19, como algo muito distante, que a sensação é de que aquele pesadelo aconteceu há muito tempo atrás. Em real, não temos nem dois anos de afastamento daquele primeiro isolamento e ainda não saímos da perspectiva do vírus circulante entre nós. O que intriga é a sensação estranha de um tempo distante. Olho para trás, um ano ou não menos do que isso, e vejo o quanto as coisas mudaram, se reconfiguraram, se reestruturam, outras foram substituídas e muitas outras esquecidas na vida. Não é incomum, também, uma sensação de aceleração de tempo ao qual não tinha impressão antes. As coisas estão acontecendo tudo muito rápido. Alguns vão dizer que é a tecnologia das máquinas, que desde meados do século XX, invadiram nosso cotidiano para facilitar a vida. Outros vão dizer que é a virtualidade da vida, na Era da internet, principalmente nas redes sociais que faz essa sensação em que uma imagem ou vídeo postado tenha apenas a durabilidade da visualização por algumas poucas horas. Rapidamente as postagens nas redes ficam obsoletas e há necessidade imediata de outra postagem, de novidade de informação da vida alheia para nutri o nosso vazio. Enfim, a vida virou uma sensação de story em que uma postagem dura exatamente um dia, o tempo de vida de efeméridas – um tipo de inseto que tem apenas 24 horas de existência. É aquele ser vivo que nasce, se reproduz e morre no tempo de um story seu. Entre um story e outro há uma existência que tem que fazer valer sua chance no mundo. O que esse inseto faz? A sorte na natureza é que vai dizer. Porém, nas redes sociais é a lei de quem viu, viu; quem não viu, não verá mais e ficará com a próxima postagem, se ela vier. E ela virá, pois o nosso tempo de existência está tão comprimido em cada story que logo precisamos, como uma fênix, renascer, reproduzir curtidas e desaparecer em outra postagem.  A sensação de vazio no percurso de um espaço de tempo não é à toa.  Será que não precisamos, em verdade, de uma sensação de vida de um efeméridas para cairmos na real e fazer valer a pena o que vivemos?

Por isso proponho um exercício aqui por alguns instantes, mais rápido que o tempo do story, mas com a verdade de uma vida de efeméridas. Feche os olhos e tente realizar como estava a vida de você exatamente um ano atrás. Olhe como ela está agora. Tente não se preocupar com o tempo que passou. Se rápido ou devagar para você. Preste atenção, sim, entre o ponto de início desse ano e o momento que você está agora que há um espaço interessante chamado de percurso. É sobre o processo que chamo atenção. O tempero do tempo, o que dá sabor para a vida.

Olhar para o percurso não foi à toa. O livro “Elas marchavam sob o sol” (2021) da escritora e jornalista Cristina Judar publicado pela editora Dublinense me ajudou a pensar sobre essa face da existência, que está por detrás dessa dimensão do tempo que passa rápido, pois o livro de Judar fala, antes de mais nada, sobre o tempo. O tempo de duas mulheres em que apenas o sol é a testemunha constante. O romance de Judar trata do último ano de Ana e Joan antes de completarem 18 anos de idade. São duas garotas com perspectivas completamente diferentes. Uma tem uma vida ligada ao mundo contemporâneo em todos os sentidos: preocupações com a estética do corpo, com a profissão em um mundo competitivo, com a autoestima dependente de outrem. A outra é o oposto e tem uma vida considerada “alternativa” ligada aos valores de ancestralidades: tradição, passado, valores familiares. O que liga as duas personagens é que ambas estão há um ano para completar os marcantes dezoitos anos e Judar nos leva a acompanhar esse percurso de ambas em uma espécie de mosaicos de vozes, uma polifonia como um coro de formas de dizer, que vão se misturando e formando uma amálgama em que nasce cada uma das personagens em seu derradeiro ano. Essa abordagem feita pela escritora é interessante, pois cerca um ano importante da vida de qualquer pessoa, o ano antes de completar a maior idade e ser considerada como uma pessoa adulta em que responsabilidades, desafios e liberdades estão batendo à porta de forma desesperada e ansiosa. Dezoito anos é a idade onde passamos poder tudo e a vida se abre. O último ano antes dos dezoito anos é então aquele balão de ensaio da aceleração do tempo em que cada dia dura séculos. O modelo escolhido por Judar leva a pensar na pergunta: queremos que o tempo passe rápido para alcançar os nossos desejos?

A resposta rápida diria que sim. Porém, para as personagens Ana e Joan, nas páginas diários criados por Judar, há mais camadas nesse tempo dilatado de 1 ano. Completar dezoito anos para essas mulheres não é apenas uma questão temporal. Nesse caminho de ano derradeiro elas se chocam com realidades violentas, desafiadoras e não tão felizes das suas vidas, mas que são como marcas que suas famílias, suas histórias entregam para ambas como se quisessem dizer que a vida de qualquer mulher não é um simples completar dezoito anos, mas é uma vida de luta em que o último ano é apenas um túnel de memórias e lembretes preparatórios para os anos que virão a frente na condição de mulher em um mundo machista e misógino. O sol que ilumina as mulheres de Judar em seu romance as queimas, durante a marcha, para lembra-las do compromisso em sororidade. Ana e Joan, em verdade, são faces de uma mesma pessoa que não encontra um lugar ao sol, mas na marcha como perspectiva de vida, uma vida de luta, afinal, entre o início e fim de uma vida o que vale é a marcha por ela. As mulheres de Judar em seu romance, na sua polifonia, nos mostram essa marcha expondo opressões, o massacre dos corpos por regras violentas de uma sociedade impositiva.

Talvez podemos chegar aqui em um consenso rápido de que o tempo da vida de um efeméridas é uma marcha sob o sol e não um story. Judar nos instiga, com suas poderosas jovens mulheres, a pensar que existe muita vida, e também luta, no tempo contraído e acelerado dos nossos tempos. O tempo da vida de um inseto tem muita vida e luta, tem marcha sob o sol.

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Daniel Manzoni-de-Almeida é escritor e doutor em teoria literária da Université Bretagne Occidental, Brest, França.

Contato: danielmanzoni@gmail.com

 

 

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