* Por Lorraine Ramos *

A língua humana é dotada de características diversas, sendo atribuídas noções históricas, sociais, biológicas e até filosóficas. A capacidade natural, não premeditada, do indivíduo ser um falante parte do princípio de o mesmo possuir o intelecto humano como ferramenta da comunicação com o outro ou consigo mesmo.

Se formos analisar a semântica propriamente dita, o sentido é apreendido em sua forma textual, enunciativa e das palavras. Além disso, nossos pensamentos portam a linguagem, nesse caso a interna, amena ou frenética. Sendo assim, como formamos uma ideia da criação humana, mais especificamente da literatura?

Com essa breve apresentação linguística e habitual aos temas a serem postos nesta resenha, o novo livro do tradutor, escritor e professor Paulo Henriques Britto, Fim de verão (Companhia das letras/2022) resgata não somente o falar em suas múltiplas significações, mas uma trajetória de sua narrativa em completude.

No segundo texto da obra, um poema seriado é deparado ao leitor com uma particular característica: o título Ao leitor. Repartido em dez partes, a condução da enunciação poética é descrita em vigorosos conteúdos sonoros, métricos e temáticos, fluindo em metalinguagem “É como uma sonata que Beethoven/ não houvesse tido tempo de compor./ Música tão abstrata que os que a ouvem/ não sabem se é música ou algo pior/ ou melhor do que música, sintaxe/ tão tensa que não dá margem a sentido,/ como se o autor autista desprezasse/ as exigências básicas do ouvido/ e de um outro órgão da consciência.” e ao decorrer do eixo numérico, a vocação dramática ao contemplar ouro e duplas lamentações no interior da própria composição da poesia.

É possível se ater aos elementos tanto da forma quanto do discurso das imagens retratadas: Britto escreve tanto em versos livres quanto regulares – especialmente quartetos -, não se limitando a uma única cesura das estrofes. Esse transporte do ritmo se dá mediante uma atuação do enjambement e sua quebra métrica e sintática, não estando, portanto, em uma equiparação sonora.

Dispondo a voz como veículo singular e coletivo dos afetos, conteúdo a resplandecer na obra, ela se mantém em um estado quase orquestral, se lançando em vias de vai e vem ao decorrer da versificação e temas.

Essa mesma quebra contém, inclusive, a articulação de uma personalidade, tendo em vista seu caráter de repertório musical.

Uma apresentação da língua na composição do livro em suas identidades, é a metalinguagem e o interlinguístico. Exemplo disso é no poema Sem fio, ilustrando “The poem sprouts from its language / and cleaves to it: the two are one. / If cleft from its soil, it will languish; / its sap is no longer its own.” a partitura do espelhamento das nacionalidades, seguida por um ato em português “O poema à língua se aferra, / e dela só sai se arrancado. / Sair, sai; mas em pandarecos: / não é mais o mesmo artefato.” em mais um texto seriado.

Se não é mais o mesmo artefato, parece-nos que o poema ao se aferrar na língua diz do próprio instrumento dos signos linguísticos e seu processo de significações. O sujeito-poesia e sua duplicidade contida na linguagem. Apesar de um código com suas regras, a língua se prolifera em outros núcleos, induzindo a quem participa da leitura a supor que um é dois, partilhando da experiência da própria escrita.

Paulo Henriques Britto em Fim de verão traz um percurso de sua poética juntamente a heranças da literatura a partir desses elementos tão comuns ao seu território musicalizado, sonoro e híbrido, por justamente se encaminhar a gêneros com os quais trabalha, verso e prosa, em uma dodecafonia.

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Lorraine Ramos é poeta.

 

 

 

 

 

 

 

 

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