Por André Nigri *

Esta entrevista é resultado de uma longa correspondência com Silviano Santiago depois de ler um punhado de vezes sua obra Machado, publicada no final do ano passado pela Companhia das Letras. Silviano nasceu em 1936, em Formiga, localizada no Centro Oeste de Minas. Ele tem uma carreira sólida como acadêmico e vários livros de crítica e ensaio publicados. É também romancista. Em 2015, seu romance Mil Rosas Roubadas foi vencedor do prêmio Oceanos. Machado é um livro ambicioso e o acesso até ele não é uma tarefa fácil. A obra é carregada de erudição e exige empenho, esforço que vale a pena. É como entrar em uma sala de espelhos e ver a imagem de um mímico refletida. Silviano reinterpreta e reinventa os últimos cinco anos de Machado de Assis, investigando sua viuvez, a amizade paternal com Mário de Alencar, filho de José de Alencar, as crises de epilepsia, os últimos romances do autor, Esaú e Jacó e Memorial de Aires, a velhice. A crítica machadiana tem seus cânones: John Gledson, Roberto Schwarcz, Alfredo Bosi. Da leitura e do diálogo, saí convencido da originalidade de Santiago.

SPR: O narrador, um homem velho e desamparado, adquire o quinto volume da correspondência de Machado de Assis publicado pela Academia Brasileira de Letras. São cartas de 1905 a 1908, ou seja, período que começa um ano depois da morte de Carolina Augusta e termina com a morte do escritor.

Após a viuvez, as crises se multiplicam e em uma delas Carlos de Laet ampara Machado na rua Gonçalves Dias. Vem-lhe então, Silviano, me parece, a ideia sobre a origem da criatividade artística em Machado, a qual você associa a Antonio Francisco Lisboa e a Flaubert: a epilepsia como força propulsora da criatividade.

Quando o narrador adquire o livro isso soa como uma relíquia há muito desejada, esperada. Ele o leva para casa, contempla-o, entra em uma espécie de estado de graça, de júbilo, à semelhança de um arqueólogo que acabasse de fazer uma descoberta importante, decisiva, capaz de elucidar um grande mistério. Mas parece também uma comunhão, entre o narrador e Machado.

Silviano: Não sei se o narrador é apenas um homem velho e desamparado. Todo narrador é antes de mais um detetive, no sentido amplo da palavra. Vale dizer: todo narrador é um pesquisador de situações-limite: da sua própria condição dramática ou trágica, da condição do seu protagonista e dos seus personagens, do cenário onde pretende dar-lhes experiência, sentimentos e emoções, etc. Julgo que, na minha ficção como na ficção dos bons autores modernos que invejo, o narrador tem personalidade tão curiosa, quando não tão fascinante, quanto a do protagonista. Repare a importância do narrador nas detective stories. São semelhantes ao narrador do meu romance. Ele é tão importante quanto a pessoa who done it, o criminoso.

Mais do que o objeto em si do livro, a correspondência de Machado de Assis, interessa ao narrador para entender o que acontece com alguns seres que ultrapassam a taxa normal de vida dos humanos. Ele sobrevive aos demais e quer saber como Machado de Assis sobreviveu aos demais. Interessa-lhe saber como enfrentar a sobrevida e a morte. Dou-lhe essas informações para que se dê conta do fato de que o romance Machado não nasce exclusivamente de uma pista, a correspondência, ou de uma ideia, a doença, que elucidaria o grande mistério. Ele nasce do próprio mistério que vem sendo arquitetado e constituído pelos últimos livros que escrevi. Ele é apenas um fragmento (mais, ou menos, importante do que os demais fragmentos, mas isso, o julgamento, é tarefa do crítico).

Não há dúvida de que a aproximação de sobrevida e doença se dá pela primeira vez, e de maneira explícita, no romance Machado. A doença é dado que decorre de outro antigo interesse do detetive, evidenciado por Michel Foucault no célebre ensaio “O que é um autor?”. Lá ele diz que o retorno a Freud e a Marx, questão particularmente forte a partir dos acontecimentos de maio de 1968, marca um interesse pela “costura enigmática entre vida e obra”. Machado de Assis – na minha obra – tem estatuto semelhante ao que teve Graciliano Ramos em Em liberdade e Antonin Artaud em Viagem ao México. No primeiro caso, interessava-me a costura enigmática entre prisão política e obra, entre liberdade e não-obra. No segundo, ela oscila entre a utopia e o desespero do artista ao viver uma realidade desesperante. Simplifico, claro. Mas minha intenção está sendo a de assinalar a você, meu leitor, que o mistério – vale dizer, a criação literária e/ou artística na sua relação com o seu respectivo autor – não nasce assim tão de repente na cabeça do criador, do narrador. Ele persegue a costura enigmática assim como um detetive persegue em múltiplos planos estratégicos o motivo para o crime.

Machado tampouco está solitário entre os grandes criadores cuja obra, se relacionada à vida, teria de ser referida não a uma mera dor de estômago. Teria de ser referida a um tabu na sociedade brasileira – a epilepsia. Por isso, o romance também é – à sua maneira e discretamente – uma espécie de nascimento da clínica epiléptica no Brasil.

Acrescento que a versão dada no primeiro capítulo sobre a relação entre doença e obra é apenas uma das versões que o romance apresenta. Repare que é para isso que se criam personagens diferentes com propostas e raciocínios diferentes. Tudo deve dialogar dentro do livro. A versão que está em pauta no primeiro capítulo é substantivada pelo relato (publicado em jornal postumamente) de Carlos de Laet. Só para que você tenha uma ideia do que seja o diálogo interno, o leitor, bem mais tarde, verá que a versão Carlos de Laet dialogará com a versão de André Breton – “a beleza convulsiva”, as planilhas de sismógrafo – que estará sendo avançada pelo narrador do romance. Da beleza convulsiva fala Breton no primeiro Manifesto surrealista. O motor condutor da multiplicidade de versões é o próprio sentido de drama ou de tragédia. Há drama e tragédia tanto entre seres humanos quanto entre pensamentos num romance com a dimensão que pretendeu ser Machado (mais de 400 páginas).

Outras versões seriam articuladas através de Aleijadinho e a bela leitura que dele faz outro doente, o tuberculoso Manuel Bandeira; através de Gustave Flaubert, e a leitura precursora que dele faz um amigo e confidente, Maxime du Champ. Já vê que congelar uma das versões é ato-de-leitura que não chega a ser arbitrário, mas que traz algum resquício do desejo de autoridade do crítico sobre o texto que lê.

SPR: O narrador está velho, sozinho, não tem herdeiro, sem filhos, assim como Machado, e se vê numa semelhança de datas (29 de setembro de 1908 e também de 1936), no dia em que nasce, no dia da morte de outro. Um belo jogo de espelhos. As duas datas, 08 e 36, abarcam grandes mudanças: o Brasil muda de dono.

Isso me lembra algo como Os Filhos da Meia-Noite, de Salman Rushdie, e também Passo de Caranguejo, de Gunter Grass.

Os auspícios que essas datas evocam são do romano Jano, do monte Janículo ( colina na parte ocidental de Roma) , que empresta seu nome ao primeiro mês do ano – um local privilegiado para olhar o passado, que metaforicamente desaparece com a demolição dos sobrados e palacetes coloniais – tão caros a Machado – transformados em cortiços, desalojando mais de mil pessoas que buscam os subúrbios ou as encostas dos morros – da Favela ou da Providência no Centro – para dar lugar às edificações retilíneas da arte nova francesa, obras idealizadas e preconizadas por uma nova elite, a elite dos engenheiros da nascente República.

Nesta última década, o senhor também testemunhou uma grande mudança na paisagem do centro do Rio com o bota-abaixo na zona portuária, onde bilhões de reais foram investidos para embelezar a Praça Mauá, com a implantação por exemplo do VLT, que transporta mais turistas que moradores, e isso me lembra a frase cunhada por Coelho Neto em 1908 (ano da morte de Machado), Cidade Maravilhosa. No Rio, as autoridades nomearam as obras distantes cem anos das obras de Pereira Passos, de Porto Feliz – uma persistência otimista, uma repetição histórica, em que aqui como lá, o povo fica do lado de fora, não é convidado para a festa.

Silviano: Começo pelo fim e deixo que suas palavras sobre o romance dialoguem com artigo recente publicado no The New York Times no dia 15 de fevereiro de 2017 sob o título sintomático de “Legacy of Rio Olympics so far is a series of unkept promises” (“O legado das Olimpíadas do Rio até agora é uma séries de promessas não cumpridas,”), cujo subtítulo diz mais ainda: “Less than six months after the Games ended, many sites have been abandoned, despite government promises to leave ‘no white elephants’ behind” (“Menos de seis meses depois que os Jogos terminaram, muitos locais foram abandonados, mesmo com as promessas do governo de ‘não deixar elefantes brancos’ para trás”)

Lá de dentro do artigo retiro esta declaração de uma cidadã carioca, residente em Deodoro:

“The government put sugar in our mouths and took it out before we could swallow,” Luciana Oliveira Pimentel, a social worker from Deodoro, said as her children played in a plastic pool. “Once the Olympics ended, they turned their backs on us.” (“O governo colocou açúcar em nossas bocas e o tirou antes que pudéssemos engolir,” disse Luciana Oliveira Pimentel, assistente social de Deodoro, enquanto seus filhos brincavam em uma piscina de plástico. “Assim que as Olimpíadas acabaram, eles deram as costas para nós.”)

Da própria sede do capitalismo selvagem, Wall Street, vem a crítica mais feroz ao que representa no nosso país essas modernizações apressadas e interesseiras e desonestas, cujo propósito – às vezes válido temporariamente e para o gozo dos privilegiados – acaba sendo negado à população como um todo por uma incapacidade de gerenciamento público das conquistas que passam a existir apenas no plano da politiquice desenfreada. Edificações e mais edificações redundam numa piscina de plástico onde, durante o violento verão carioca, brinca uma criança moradora de Deodoro.

Quanto custou aos cofres ditos públicos aquela piscina de plástico? Quanto custou aos cofres públicos a criação de favelas nos morros cariocas, depois do bota-abaixo e da construção da Avenida Central?

É o olhar enviesado do convulsivo que consegue enxergar os perigos da linha reta, que representa as ideias positivistas sobre ordem e progresso. Enxerga-as e as expressa artisticamente pela beleza convulsiva.

Não gostaria de ir adiante porque a proposta de leitura que a sua pergunta sugere deve ser de única e exclusiva responsabilidade do leitor – e menos do autor. Este quer e tenta perceber a genialidade da crítica sócio-política de Machado de Assis através duma análise cuidadosa tanto da sua condição precária de vida (a convulsão é uma série de mortes e renascimentos) como também dos notáveis recursos retóricos de que se vale para levantar um romance.

SPR: Retornando aos problemas da urbe carioca anotados no romance – falta d’água e enchentes se alternam com soluções governamentais mirabolantes como a incrível empreitada Água em Seis Dias, durante o tórrido verão de 1889, promovida pelo engenheiro Paulo de Frontin, poucos anos depois encarregado de chefiar as obras da Avenida Central. Transtornos apropriados muitos anos depois, 1954, numa célebre marchinha carnavalesca. Mas já em 1906, você pinça uma formidável pantomima aquática levada pela companhia Circense Sul-Americana no Teatro São Pedro na Praça Tiradentes. Durante a encenação, um homem de cartola toma banho na piscina montada no meio da plateia, acaba na delegacia e vira tema para uma crônica de Olavo Bilac. Você recupera essa crônica e pensa em colocá-la no segundo capítulo, mas a coloca no terceiro, no capítulo onde Mário de Alencar pega o tílburi em Botafogo para ir à consulta na clínica do doutor Miguel Couto no Centro. Duas questões me ocorrem: a apropriação “cultural” e cômica do problema da água na cidade por uma trupe popular – outro traço persistente na história das comédias nas várias formas que assumiu ao longo do século – chanchada por exemplo; e o deslizamento confesso de um capítulo para outro, num jogo de armar. A imagem é de um narrador funâmbulo, um equilibrista atravessando uma corda que balança e é tensionada o tempo todo, tal como nossa história, tal como nós no Brasil parecemos o tempo todo.

Silviano: Antes dos deslizamentos na cronologia e na organização dos capítulos, aos quais você se refere, há outro e mais importante deslizamento, que lhes abre espaço e os justifica. Refiro-me ao deslizamento da etiqueta biografia para a de romance. Machado é biografia e é também romance e é também ensaio. Não haveria modo diferente ao proposto pelo híbrido (em termos de gênero literário) para apreender uma figura tão complexa, misteriosa e intrigante quanto à de Machado de Assis.

Vamos por partes. O gênero literário biografia obriga seu autor a obedecer com pudor e respeito a ordem cronológica. Entrega ao leitor um produto, a biografia de Fulano, que é semelhante, caso o produto final seja apresentado em tamanho reduzido, a um verbete de enciclopédia. O leitor de biografia – no sentido estreito do termo − acompanha tintim por tintim, ou seja, página após página, acontecimento após acontecimentos, as peripécias do protagonista e dos personagens que o cercam e pouco participa da organização e da semântica, da significação real ou simbólica, dos caracteres e dos acontecimentos. Ele jamais é convidado a intervir, a reorganizar, a repensar o material que lhe está sendo apresentado de modo linear e evolutivo, cuja origem data do nascimento do biografado e cujo fim, da sua morte.

Toda biografia me parece se tornar mais interessante se apresentada de forma fragmentada (nenhuma vida é tão certinha e linear quanto a que se encontra exposta numa biografia clássica ou num verbete de enciclopédia tradicional) e em contextos mais amplos. Outra coisa é uma balela a famosa objetividade do autor de biografia. Autor de biografia é aquele que monta sozinho – embora com a ajuda duma multidão de informações − uma vida que, por definição, não foi, nunca é e nunca será passível de ser compreendida só retilínea e evolutivamente. Portanto, o gênero romance – com a presença do seu narrador, que se transforma muitas vezes em personagem − é uma forma mais apta a abrigar o bom, inventivo e curioso leitor de biografia, forma mais apta, contraditoriamente, que a forma biografia.

Ponhamos, por exemplo, que no romance Machado eu abrir as perspectivas de conhecimento do que seja o cotidiano do carioca. Posso trabalhar, por exemplo, um verbete aparentemente estranho dentro do livro “a falta d’água na capital federal”. Se fosse seguir a ordem cronológica estrita, apenas falaria das enchentes e da falta d’água nos anos em que transcorrem os fatos narrados (1905-1908). Mas minha intenção é mais ampla, já que definidora da própria vida cotidiana do cidadão no Rio de Janeiro, em particular quando a cidade colonial é posta abaixo e se constrói a passos de gigante a Avenida Central. Recordar o episódio da “Água em seis dias”, que você não encontra facilmente nas narrativas dos bons historiadores nossos, é remeter à importância crescente do engenheiro (do Clube de Engenharia) na modernização da capital federal (e também da capital provinciana, Belo Horizonte, e da futura capital do Brasil, Brasília). Remeto ao aparecimento espetacular do jovem Paulo de Frontin, cuja boa estrela iluminará seus passos até à construção da Avenida Central. E assim por diante.

Através do mesmo tema da falta d’água, posso agora no plano da produção teatral falar de Machado de Assis, um escritor-mímico na literatura brasileira de grandes falastrões, como Euclides da Cunha. O tema da falta d’água (há que buscar um mínimo de coerência narrativa) é retomado na encenação dum espetáculo de pantomima aquática que passou despercebido dos especialistas em teatro de revista da USP e da Unicamp. Mostro, ainda, como o teatro popular (as manifestações de arte popular) é sempre direto, realista e crítico. Mostro ainda, através da figura do senhor que não tendo conseguido tomar banho em casa, toma banho no teatro, como a figura do espectador/leitor é sempre importante para quem se aproxima e lê livros – e vê peças de teatro ou exposições de arte – como quem abre livro do mímico Machado. Participando. E assim por diante. E, sentado no trenzinho da arte popular, posso viajar até 1954 em busca duma canção carnavalesca que é repetida à exaustão nas matinés no mesmo teatro que levou a pantomima aquática e que, portanto, nada termina em termos de arte popular e de obras públicas na capital federal. Tudo recomeça de zero. Em coluna recente, Frederico Coelho conseguiu apreender bem a sensação que sentimos: “o impacto do tempo parado”. Só o percebe, evidentemente, o leitor que é capaz de armar o texto que se lhe apresenta.

O deslizamento do episódio do banho no teatro foi deslocado do segundo para o terceiro capítulo pelo desejo que tinha de caracterizar o protagonista e romancista Machado de Assis através da metáfora do mímico (e não do ator convencional, que apresenta texto e explícito ao espectador). No segundo capítulo, com forte sabor erudito, a metáfora foi apresentada pela primeira vez. Aliás, no rascunho do romance um poeta francês de vanguarda, Stéphanne Mallarmé, é quem reforça a metáfora do mímico utilizada para descrever o escritor. Na estética de Mallarmé, há que apenas sugerir as situações poéticas ou dramáticas, nunca as descrever minuciosa e realisticamente. “Eis o sonho!”, escreve ele. No rascunho, vali-me de espécie de poema em prosa de Mallarmé, cujo título é “Mimique” e se encontra no volume Divagations. Esse texto foi objeto de leitura extraordinária pelo filósofo argelino/francês Jacques Derrida (v. De la dissémination). Na revisão escrupulosa que fiz do primeiro original completo do romance, os dois franceses foram guilhotinados. Mas ficou o clima elitista no uso da metáfora do mímico para Machado de Assis.

Achei que seria oportuno que se seguisse a essa apresentação sofisticada do romancista brasileiro como mímico, uma versão popular, terra-a-terra, da figura, que seria parecida à do palhaço circense. Ocorreu-me situação melhor: o mímico Machado de Assis seria semelhante ao cidadão que, ao ir assistir a uma pantomima aquática, passa de espectador a ator. No lugar da encenação da pantomima há um excesso de água que falta totalmente nas residências. Oportuno matar dois coelhos com uma só cajadada. O espectador assiste ao espetáculo e toma um banho. Versões sucessivas da mesma metáfora, a do mímico popular que complementa o erudito, tornariam o segundo capítulo longo e pesado demais. Foi por essa razão bem básica que transferi o episódio do banho no teatro para o capítulo terceiro. Interessava-me também mostrar como o mímico (silencioso e aparentemente alheio à realidade) é transgressor das normas de boa conduta. É preso e levado à delegacia.

No plano da imagem, o mímico popular é ainda o cômico do cinema Buster Keaton, travestido de Venus de Milo, a insinuar helenicamente o cristão Rafael que dramatiza a Transfiguração de Cristo. É ainda, no plano da imagem, o Pierrô com uma máquina fotográfica, de Nadar (“Pierrô Fotógrafo”, série de fotografias “Expressões de rosto de Pierrô”, feita por Félix Nadar em 1854 e 1855 ), a lembrar carnavalescamente o romancista da objetividade (terceira pessoa do singular para o narrador) Gustave Flaubert.

Essas são as vantagens do deslizamento de biografia para romance no tocante à compreensão da vida e obra de Machado e à compreensão das grafias-de-vida pelo leitor qualquer que seja ele.

SPR: A metáfora é provocativa: a Roda dos Enjeitados muda de lugar, de nome, de aparência, assim como só na aparência transfigura-se a sede do poder republicano, o Palácio do Catete, tudo muda para ficar no mesmo lugar. O proprietário do futuro Catete alforria seus escravos antes da Lei Áurea, sabendo que os agora pretos livres ficarão na sua fazenda, onde nasceram e muitos deles não exigirão nem mesmo os módicos salários. O Catete troca de mãos, a especulação e o fácil enriquecimento – que nos lembra só para citar o caso de Eike Batista – são a tônica do Encilhamento. De novo, o povo não participa do banquete. E a Roda dos Enjeitados contemporânea como uma enorme engrenagem continua a moer gente. Silviano, você costura um século no outro, toca numa fissura entre dois séculos. Me permita citar Giorgio Agamben (filósofo italiano, 1942) pois todo o seu Machado se ilumina com essa frase dele: “É verdadeiramente contemporâneo aquele que não coincide perfeitamente com este (presente)”.

SILVIANO: A lembrança de Agamben, ao final, me parece corretíssima. Digo isso porque tenho me interessado mais e mais pela distinção entre atualidade e contemporaneidade. Não desprezo as obras de arte que têm como poética a representação do presente, cujo melhor e mais importante exemplo se encontra na moda do documentário cinematográfico no Brasil. Na maioria dos casos, o documentário pretende mostrar a atualidade de algum problema social ou ideológico aos presentes. Apesar de ser manifestação artística, o gênero tem compromisso forte com os meios de comunicação de massa. Tem tudo a ver com o melhor da imprensa escrita, da televisão e, hoje, da interação online.

Em situações extremas da brasilidade, como o período logo posterior a 1964, a representação da atualidade nas artes tinha todo o sentido. Fazia-se indispensável para se compreender o que se passava na nação tomada arbitrariamente pelos militares. Havia necessidade de o romancista e o poeta denunciarem em alto e bom som as ações cruéis da ditadura, o silêncio repressivo imposto à imprensa em geral e a tortura aos oposicionistas. Em período em que a imprensa em geral pode se manifestar com linguagem jornalística livre, e só não se manifesta de maneira mais livre porque há interesses maiores escondidos por detrás da aparência de objetividade, acho que compete ao artista chamar menos atenção para o FATO EM SI (este, afinal, é do conhecimento da maioria, só não o vê quem optar pela cegueira voluntária) e mais para isto a que chamo de ASTÚCIAS DA LINGUAGEM (a própria preparação do espectador para absorver a mensagem do documentário o leva a compreender sempre a linguagem como reprodução fiel do real – e não como essa representação se vale das astúcias da linguagem no processo de encobrimento do real).

O que se esconde nos meios de comunicação de massa é efeito das artimanhas (em geral, sedutoras) da linguagem. O fato em si está dito e é comunicado a todos pelo jornal, a televisão e a Internet, mas esse fato está escrito na maioria das vezes de maneira distorcida, ou ideológica. Compete, pois, chamar a atenção para as astúcias e as artimanhas da linguagem e para as distorções que são operadas no manuseio inescrupuloso da dita objetividade na informação sobre o fato em si, sobre a realidade. Mais importante do que estar a par é aprender a ler como se nos põem a par. É preciso trabalhar o leitor na interação menos com o fato em si e mais com a própria linguagem pela qual o fato lhe é transmitido.

Hoje e sempre, o artista que não se quer atual, que se quer contemporâneo é aquele que se descola do descalabro do presente em que vive para perceber o escuro da atualidade em que vivemos todos. Esse deslocamento do (ponto de vista do) presente para (o ponto de vista da) contemporaneidade pressupõe menos um trabalho artístico calcado só no fato em si e mais um trabalho lúdico na linguagem propriamente ficcional. Nos últimos anos, tenho trabalhado o dualismo apresentado acima com o Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa.

Vejo em primeiro lugar como a linguagem artística de Rosa escapa completamente da poética do “menos é mais”, que toma conta de todas as manifestações artísticas no momento em que Juscelino Kubitschek impõe sua política desenvolvimentista (cinquenta anos em cinco) e inicia a construção de Brasília. A poesia dominante na época trabalha o “menos é mais”: ela vem das sempre mesmas vinte palavras de João Cabral de Melo Neto que desemboca no plano-piloto da poesia concreta, em São Paulo. Na prosa, Rubem Fonseca diz que “não dá mais para Diadorim”, e Fernando Sabino escreve em estilo jornalístico O encontro marcado. A Bienal de São Paulo premia em sua primeira edição a escultura Unidade tripartida do suíço Max Bill e uma tela do nosso Ivan Serpa. Domina a bossa-nova, ritmo tão cool quanto o jazz que impera soberano na América da bonança posterior à Segunda Grande Guerra.

Interessa-me perceber que Rosa joga tudo isso na lata de lixo do presente, conformado que está este pela última palavra na linguagem da propaganda (de que é bom exemplo “Gosto de levantar vantagem em tudo”), para apreender o que seja a contemporaneidade nos desenvolvimentos brasileiros, ou seja, não descreve o fato em si, ou os fatos em si. Quer apreender o fato em si, os fatos em si, por uma alegoria radical do Brasil desenvolvimentista. Tem como único objeto para sua prosa dramática de 1956 um enclave no Alto São Francisco, apenas abordado por visitantes ilustres ou, de vez em quando, pelas tropas do exército. Entrega a fala a um jagunço, cujo valor superior é a ferocidade, já que para ele a ferocidade do humano só o é se ele matar uma onça pintada e comer o seu coração. Para narrar sua alegoria, Rosa se vale duma linguagem onde o menos não é o mais; é o mais que é mais, tal a repetição dos 32 nomes, como numa ladainha, para denominar o Diabo. Rosa constrói uma alegoria desembestada para se compreender o Brasil em desenvolvimento. Repito-me. Rosa é o único artista que se descola do presente em que vive – e até da estética mão-de-vaca que é canônica naquele momento histórico − para que percebamos a selvageria da atualidade em que vivemos todos. Portanto, talvez daquela massa de produtos artísticos, apenas Rosa seja nosso contemporâneo em 2017.

A meu modo, tentei mostrar como Machado de Assis é nosso contemporâneo em 2017. Para tal, tenho de contar evidentemente com o papel do leitor. É um romance escrito menos PARA o autor e mais PARA o leitor. Com o auxílio dos neurofisiologistas, novamente o filósofo Agamben alerta para o fato de que a percepção do escuro do presente não é manifestação de inércia ou de passividade por parte do observador. Implica que se entregue à atividade – ao trabalho fora do espaço do presente e fora do tempo que lhe toca viver − de neutralizar as luzes sedutoras que provêm da época para enxergar suas trevas, de que são inseparáveis. Contemporâneo é só quem recebe no rosto o facho de trevas – e não de luzes − que provém do seu tempo. Recebe o facho de trevas no rosto e, no entanto, enxerga.

SPR: Gostaria de voltar à participação dos engenheiros na nova configuração política e social do Brasil e que é tratada no capítulo VI.

Os engenheiros-confeiteiros. O Palácio do Catete quando finalmente é escolhido para a sede do Executivo no lugar do Itamaraty deve passar por uma reforma, e para isso convocam Aarão Reis, que em 1894 é constituído como engenheiro-chefe da construção da nova capital de Minas, Belo Horizonte.

Silviano: Não há grande novidade no tratamento que o romance dá à passagem do mestre-de-obras da época colonial ao engenheiro que se afirma junto aos poderosos como alguém dotado de formação específica, com diploma escolar de nível hoje dado como universitário.
A transição é uma das facetas da modernidade, do papel da ordem e do progresso na modelação da modernidade. Não há dúvida de que, em termos de “ponts et chaussées”, para retomar a expressão que designava as escolas de engenharia francesas desde o século 18, o episódio da “Água em 6 dias” é exemplar. Demonstra o modo como o jovem engenheiro Paulo de Frontin enfrenta a tradição e a concorrência pública, ganhando o apoio de figuras políticas de destaque como Rui Barbosa. Daí minha escolha do episódio (pouco estudado pelos historiadores) não só para salientar o momento em que dois fatos históricos mais importantes e simbólicos se dão em 1888 e 1889. A passagem da Monarquia para a República, de um lado, e o fato de a construção pública ter sido feita com “trabalho livre” (veja o detalhe das medalhas que são conferidas por jornal carioca ao engenheiro e sua equipe; veja, nesse mesmo capítulo, o modo como os Nova Friburgo articulam astuciosamente a passagem do trabalho escravo ao trabalho livre, safadeza devidamente recuperada por Machado de Assis em Memorial de Aires na figura do Barão de Santa-Pia). Não há por que minimizar o impacto da modernização no plano do saneamento básico. Esse é o lado positivo da entrada do engenheiro em cena no século 19, a que não se deu continuidade até os dias de hoje. Por outro lado, o mesmo engenheiro que é capaz de trabalhar a natureza a favor do homem, não é capaz de trabalhar a cidade a favor do cidadão comum, em particular a favor do cidadão pobre. Esse é o problema maior da liderança governamental por engenheiros. Moderniza-se o centro do centro do centro.

No caso da capital federal, veja-se como a cópia de Paris acaba por botar abaixo a cidade colonial e por obrigar os pobres moradores dos cortiços (estes verdadeiros descalabros, como sabemos, desde o famoso romance de Aluísio Azevedo) a moverem para uma situação pior, a da moradia no morro, em favelas. São levados a construir casebres com o material sem valor comercial dos sobrados removidos pelas picaretas e com demais entulhos típicos de construção, como então as latas de zinco. Por um lado, o engenheiro só consegue pensar a planificação urbana a partir da estaca zero e, por outro, não presta a mínima atenção ao que o bota abaixo significa no plano dos pobres ou dos lavradores recém-imigrados da Europa. No governo se não me engano Lacerda, a Praia do Pinto, no Leblon, é derrubada e nela são erguidos os famosos condomínios para a classe média, enquanto os favelados da Praia são mandados para os confins dos Judas. (Aí está até hoje o grave problema dos meios de transporte dos trabalhadores para o trabalho no centro ou nos bairros nobres da cidade.) O mesmo se dará também com a remoção do Morro do Castelo nos anos 1920, onde, poucos anos depois, será erguido o edifício do Ministério da Educação, primeiro marco público da arquitetura moderna na capital federal.

Quando se pensa no modelo Roma para o século 19 e não no modelo Paris do Barão de Haussmann, pode-se notar o que teria significado uma modernização que fosse guardando os vários extratos do envelhecimento natural e nobre da capital federal. Nesse sentido, Paris só se salva hoje pelo Marais. Em Roma você vai da cidade antiga à cidade renascentista e à moderna, visual, sentimental e historicamente. A história gloriosa de Roma está lá e bem organizada, aos olhos de todo e qualquer morador ou de turista aprendiz.

Acrescento que, às vezes, situações embaraçosas e, por isso, camufladas, são os responsáveis pelos jogos de ironia armados pela História. É o caso dos militares republicanos que, logo depois da proclamação da República, não têm onde instalá-la. Comportam-se como verdadeiros sem-teto recém-endinheirados pelo poder, ou como o próprio D. João VI quando chega intempestivamente ao Rio de Janeiro em 1808, só com comitiva e bagagens. Um súdito lhe oferece uma chácara que se transformará no palácio da Quinta de Boa Vista. Como os republicanos não querem assentar o governo na Quinta da Boa Vista e estão acostumados à vida na caserna, são obrigados a comprar os palacetes dos aristocratas (em geral, dos cafeicultores ou dos exploradores de minas, todos escravocratas) para sediar o novo governo. Por obra do Acaso, são essas as relíquias arquitetônicas que são salvas do período monárquico, como o até hoje suntuoso Palácio do Itamaraty, primeira sede do governo republicano, e o Palácio do Catete, construído originalmente pelos Nova Friburgo, a segunda sede do governo até a transferência para Brasília. Se existe um trabalho a ser feito que se impunha no caso do Catete, o da transformação de residência em prédio público, por outro, os vários detalhes arquitetônicos na fachada são trabalhados de maneira a singularizar – por símbolos e metáforas – os novos tempos sem o mínimo cuidado de preservar aquilo que dá autenticidade à arquitetura monárquica no momento em que os prédios art nouveau tomam conta do centro da cidade.

Mas a História arma um segundo jogo irônico. Os todos poderosos engenheiros – como é o caso de Aarão Reis, depois de ter desenhado de Belo Horizonte e dado início à sua construção – se transformam em restauradores das magníficas construções de responsabilidade dos mestre-de-obras que tanto criticavam no Clube de Engenharia. Viram confeiteiros, como você lembra. Perdem a imaginação criadora para poderem se dedicar à modernização dos palacetes residenciais com o fim de adequá-los a organização interna compatível com a gerência do poder republicano.

Um terceiro jogo irônico se esboça no caso do médico Miguel Couto. Por pertencer à nata dos cidadãos republicanos, não quer ficar atrás na aquisição de palacete aristocrático. O mais pobre dos Nova Friburgo tinha mandando construir sua residência na Rua Marquês de Abrantes (palacete que desde 1930 é a sede do Colégio Bennett, no Flamengo). Não titubeia. Por volta de 1905 compra-o do antigo proprietário e ali se instala com a família, não sem antes ter-se valido de Frederick Anton Staeckel, famoso arquiteto e artista de origem alemã (que terá o nome aportuguesado para Frederico Steckel do momento em que, no ano de 1897, deixa o Rio de Janeiro e pisa em Minas Gerais, dedicando-se à decoração dos prédios governamentais localizados na Praça da Liberdade). Como seu colega Aarão Reis, o artista – tanto o engenheiro confeiteiro quanto o artista decorador − passa a circular entre o espaço público republicano e o espaço privado dos nouveaux-riches.

O caso de Belo Horizonte, levantado por você, é diferente do caso carioca e teria de ser contrastado com Brasília. A construção da nova capital parte necessariamente de zero, como se fosse um aeroporto. Ouro Preto, capital da província, se transfere para uma cidade totalmente planificada, assim como o Rio de Janeiro sede do governo se transferirá todo para Brasília. Fiquemos apenas com o caso mineiro. Já o trabalhei em livro anterior, Mil rosas roubadas. Se não fosse egoísmo da minha parte, pediria que reportasse àquele romance, onde o grave problema da modernização na passagem da Monarquia para a República se encontra emblematicamente enfatizado – tantos e tantos anos mais tarde − pela marchinha de carnaval (de novo, sim, de novo uma marchinha) cantada por Blecaute, que fala do pedreiro Waldemar. Faz tanta casa e não tem casa para morar. O Waldemar, que é mestre no ofício, constrói o edifício e depois não pode entrar. E por aí vai a marchinha.

SPR: Queria citar um trecho de Machado:

“A criação literária libera ao público o material reprimido socialmente e o torna razão de ser para o questionamento da identidade do artista e das normas estéticas vigentes, elaborando outros conceitos críticos e apontando para uma reviravolta na ordem política e social. O material reprimido política e socialmente proporciona um caminho original para o artista chegar ao tempo fora do tempo, que propicia a alta qualidade da sua produção artística.”

Vejo nisso um resumo de seu programa estético, sua poética.

Santiago: Não sei se seria “minha” poética, como você quer, ou se não seria a poética que desentranho das obras de Machado de Assis, dado desde o início do romance como um romancista/mímico, à la Mallarmé. Um mímico do porte de Buster Keaton (que tira o riso e o escárnio da plateia sem os exageros sentimentais de um Chaplin). Um romancista/homem da cartola em pleno Teatro S. Pedro. Um romancista/Pierrô fotógrafo, como na foto de Nadar. E assim por diante. Ou se não se trata duma poética “comum” ao narrador e ao protagonista do romance. Todas as figuras narrativas determinadas pelo narrador/mímico liberam o reprimido no plano pessoal (a doença, por exemplo) e no plano social (a modernização), sem, no entanto, escancarem-nos de maneira grosseira, ou só pelo seu avesso. Tipo: liberou geral. A condição do escancarado − em termos estéticos − é terrível porque impede que o leitor veja por conta própria. Impede que tome conhecimento dos meandros dos processos históricos e ideológicos que constituem o governo repressivo tanto do próprio corpo quanto do corpo social da jovem nação. Pelo escancarado, não há dúvida, se enxerga de maneira mais fácil o que está segregado nas entranhas; será que é por ele que se compreende melhor o que está sendo segregado e impedindo o pleno desenvolvimento da liberdade de ação? Questão que tem a ver com a política na estética, evidentemente.

Machado não é uma narrativa em preto e branco, onde tudo o que é preto tem de se transformar, pela palavra ficcional ou pela retórica, em branco. A linguagem, aliás, se escreve preto sobre branco, e é meio de comunicação de ideias e não é a realização, no plano pragmático da vida, dos bons sentimentos humanos, políticos e ideológicos. Romance não é manifesto político, embora o autor não seja contra os manifestos políticos. Apenas os enquadra noutro plano. No plano da ação; menos no plano da reflexão.

Esse tempo fora do tempo, anacrônico por definição, é que será responsável pela constituição de espaço também diferenciado do espaço que constitui a realidade imediata. O tempo e o espaço da ficção visam a articular uma crítica da atualidade pelo viés da análise do real pela sua contemporaneidade, muitas vezes de caráter alegórico. Alerta Agamben para o fato de que a não coincidência entre atualidade e contemporaneidade não é instaurada para que o homem se refugie noutra cidade e noutro século. Tampouco é ela instaurada para que o artista seja um nostálgico, a sentir-se mais em casa na Atenas de Péricles, ou na Paris de Robespierre. O ser humano inteligente e criativo sabe que não pode furtar-se ao seu próprio tempo. Esse raciocínio merece uma metáfora de Giorgio Agamben.

A lógica exemplar do desfile de moda feminina lhe oferece um mirante metafórico, de que ele lança mão para legitimar o modo como o contemporâneo não se cola à sua época, reproduzindo-a. O anacrônico se adianta à época para manter ou para fomentar um diálogo mais ambicioso sobre a atualidade. Na passarela, a bela e intempestiva roupa da moda oscila entre o momento-que-já-não-é-mais e aquele cujo presente-ainda-não-chegou, e que, na melhor das hipóteses, estaria para chegar. O desfile de moda é reconhecido como acontecimento de algo que ainda não é e que talvez seja nalgum dia. “Neste instante estou na moda” – a afirmativa só faz sentido se dita por Gisele Bündchen ao desfilar na passarela. Se a mesma frase for dita pela modelo a caminhar ao lado do marido Tom Brady e filhos pelas ruas de Nova York, ela não é intempestiva nem paradoxal. É apenas a fala vazia duma supermodel autoirônica e fanfarrona, contraditória e nostálgica.

SPR: Você escreve: “Machado está sempre desgastando de modo atribulado e enviesado a figura exemplar da musa. A mulher amada não é modelar. A mulher é dissimulada e ambígua.”

 Interessa-me saber mais sobre como essa mirada de viés machadiana se mistura com o seu olhar, o olhar de um escritor mais de um século depois da morte de Machado e no que ele se aplica à mulher, às musas.

Santiago: Uma das questões mais delicadas apresentadas por Machado – e das menos exploradas pela crítica − é a da apreensão que o romance tenta da vida amorosa de Machado de Assis. Fica no mato sem cachorro porque, em geral, as biografias acabam impondo certo silêncio sobre essa faceta da vivência humana a dois ou a três (pouco importa, do ponto de vista masculino, se o terceiro elemento é real ou fantasmático). Nesse sentido, tento dar continuidade no romance – onde a vida de Machado de Assis se manifesta pela análise da sua escritura como impulsionada por doença dada como tabu – por leituras antigas minhas em particular do primeiro romance em data, Ressurreição (1872), e pelo mais famoso de todos, Dom Casmurro (1900). Dou continuidade através da aproximação aos dois exemplos do seu último romance, Memorial de Aires, e principalmente através das cartas que troca, no momento em que escreve o Memorial, com o discípulo e confidente Mário de Alencar. Em suma, esse é o pano de fundo para a análise da mulher, da esposa, em Machado de Assis.

Estão em jogo quatro temas surpreendentes na obra de Machado de Assis: sexualidade, fecundidade, esterilidade e descendência. Temas estes que raramente são tratados ao pé da letra.

A questão é delicada e, pior, não é nada simples de expô-la em alguns parágrafos. No romance Machado ganhou o recheio de vários e sucessivos capítulos.

Começo pelo começo. E pelo começo do próprio Machado de Assis, quando assina um poema que o trai – normal que poetas iniciantes avancem uma metáfora e tenham necessidade de facilitar a sua descodificação pelo leitor − na concepção que tem da mulher e do amor, concepção esta que será mais bem trabalhada no seu primeiro romance, Ressureição. Em suma, esse é o pano de fundo para a análise da transformação duma concepção da mulher, da esposa, como a Eva bíblica, para uma concepção tomada de empréstimo dos gregos, a Pandora do mito de Prometeu. A figura mítica suplanta (ou convive, em termos mais amplos) com a figura religiosa.

O fundamento dos dois tópicos se encontra no poeta iniciante. Em metáfora pobre, ele fala do “verme”, que é o ciúme. O verme que corrompe a flor, esquecendo-se de dizer que ele também – por ter nascido no coração masculino − corrompe o admirador da flor, seu amante, seu esposo. O fundamento dos dois tópicos se encontra ainda no romancista iniciante. Em escolha pobre, Ressurreição elege como protagonista feminina uma “viúva”. Ou seja, instala o amante num triângulo amoroso que existe a priori, assim como todo e qualquer preconceito. Tendo já experimentado o amor por um homem, a viúva seria capaz de esquecê-lo para amar a um segundo homem? Se fosse capaz de esquecer o primeiro amor, também não esqueceria facilmente o segundo amor, para sair em busca de um terceiro?

Tanto o ciúme quanto a figura fantasmática dum terceiro num relacionamento amoroso a dois se dão plenamente na narrativa em primeira pessoa de Dom Casmurro. Antes de ser um romance sobre a traição feminina, como Madame Bovary ou Primo Basílio (narrados em terceira pessoa), é um romance sobre o ciúme de Bentinho, que se baseia em jogos retóricos a que chamo de verossimilhantes (usando um vocábulo caro ao próprio Machado). A mulher, a esposa, é sempre fonte de desconfiança. Não poderia ser a Eva, retirada do próprio corpo do homem. Seria antes Pandora, um manequim feito à semelhança das deusas, mas dotado de um caráter que os gregos não guardam segredo.

Perdoe que cite um trecho do romance em minha ajuda e para resumir: “Pandora não nasce humana. É uma espécie de manequim, construído artificialmente em argila. Tendo por modelo a beleza das deusas Atenas, Artêmis e Héstia, ganha as características físicas de deusa imortal e a personalidade de moça que nunca deu à luz. Os deuses emprestam também ao manequim Pandora a voz dita humana. Não para que ela diga a verdade, mas para escondê-la. A bela mulher esculpida brilha de charis − charme, beleza e sedução. No entanto, os deuses decidem implantar no charis o temperamento de cadela e o espírito de mentirosa, e até de ladra”.

Pandora tem os belos e sedutores olhos de cigana oblíqua e dissimulada.

Para rematar, lembre-se, no tocante à musa, o caso de Flora em Esaú e Jacó e o notável capítulo “Uma Beatriz para dois”. Não gostaria de tirar do leitor desta entrevista o gosto da leitura do romance. As musas são para dois. Nunca para um único e fiel amante. Pobre Petrarca!

SPR: No capítulo VIII você se aproxima novamente da relação de Machado com Mário de Alencar: “No correr das últimas décadas do século XIX, Machado foi se distanciando do legado do romancista José de Alencar, pai de Mário, para se tornar, no século XX, o mais fiel dos amigos do filho.” Gostaria que você comentasse esse paradoxo e como entender essa afeição de Machado por Mário, que fica assombrado por uma “dupla paternidade”: o pai biológico que buscava “uma identidade brasileira” através de elementos como o índio, o gaúcho etc…, e o pai espiritual, o autor avesso à filiação romântica de larga tradição na arte brasileira do século 19 e autor do artigo Instinto de Nacionalidade.

Silviano: Em alguma bibliografia, o bom relacionamento entre os dois se dá por o jovem Machado de Assis ter sido o pai (ilegítimo, para usar o velho adjetivo) de Mário Cochrane de Alencar, como reza a certidão de nascimento. Por alguns motivos, tenho dificuldade em aceitar essa tese, embora seja ela corrente entre estudiosos de Machado de Assis. Em primeiro lugar, Mário é o quinto filho de José de Alencar com a esposa Georgiana Augusta Cochrane. Não se conhece – e não se fala de − traições matrimoniais no histórico da família nuclear. (De espetacular, sabe-se apenas que um dos filhos de Mário se suicidará nos anos 1930 por ser homossexual.) Por dados que temos, Mário teria sido concebido por volta de 1872, época em que Machado fazia a corte à Carolina, em condições que sabemos extraordinárias (um preto de família humilde querendo casar com uma branca de família de boa condição social num país ainda escravocrata). A família de Carolina, portuguesa de origem, não estava nada contente com o assédio do mulato brasileiro. O francês Jean-Michel Massa estudou a questão em detalhe. Numa cidade do tamanho da capital federal naquela época, em que o destaque era concedido a pouquíssimas famílias, difícil de uma infidelidade matrimonial levada a cabo por um escritor pobre e preto que assedia uma senhora da aristocracia tupiniquim e já com família constituída. E por aí iria. Por essas e outras razões, a questão evidentemente me desinteressou. Apenas um último detalhe, uma sombra verdadeira, essa sim, pesava sobre o nascimento de José de Alencar, pai de Mário. Como dizem as biografias, era filho ilegítimo de padre – e oficialmente futuro marido − com uma de suas primas, Bárbara. Conhece-se e bem o papel da fofoca nos meios familiares brasileiros… Tal pai, tal filho.

Preferi centrar a aproximação de Machado e Mário (já que, pelos dados que estão à nossa disposição, não se trata de re/aproximação) de circunstâncias mais palpáveis e concretas na vida de um e do outro.

No caso de Machado, a solidão. Terrível e até mesmo tenebrosa desde o falecimento da esposa Carolina em 1904, agravada pela doença que se torna mais e mais insidiosa devido à velhice e ao excesso de atividades. Tendo vida profissional intensa, mas vida social de âmbito restrito, o velho escritor do Cosme Velho precisa de companhia que o possa atender em situação emergencial, ou seja, de pessoa próxima, um amigo, que dedicaria atenção a ele como a um pai. Claro que Machado contava com duas criadas em casa, mas falo de relacionamento doméstico-afetivo noutro nível. Acentuaria ainda o fato de que, visivelmente doente e sem cura previsível para os males que padece, a condição do interlocutor Mário, neto de famoso homeopata e seguidor dos preceitos do avô (como demonstra as cartas que escreve), não deixa de ser motivo para a boa e cotidiana conversa como ainda serve de fator de equilíbrio diante da figura notável embora (obrigatoriamente) ineficiente do seu médico, o Dr. Miguel Couto. Poderia arrolar outros argumentos, mas não faz sentido, já que a amizade (e é disso principalmente que o romance fala) entre o velho e o moço é tema preponderante no romance. E a bom leitor…

No caso de Mário de Alencar, trata-se evidentemente de filho órfão nos vários sentidos que o adjetivo conota. O pai falece poucos anos depois de ter nascido. Casa-se bem, mora bem, mas tem postos no serviço que ficam aquém das pretensões de neto de Tomás Cochrane e de filho de José de Alencar, um dos mais famosos políticos do Segundo Reinado. Mário é um amanuense, ou, quando muito, um assessor de ministro. Pouco muito pouco para quem é filho de quem é, casado com quem está, morando bem em casa no Botafogo, e com prole numerosa. Ele não corresponde às exigências do “passado” familiar. Tem vida profissional, financeira e artística medíocre. Daí a necessidade de um patrono, por assim dizer, ou de um “pai espiritual”, expressão que se torna comum entre os amigos de Machado depois da entrada de Mário para a ABL. Machado não nega fogo. A entrada de Mário para a ABL carrega vários sentidos semânticos que apontam para vitória e para derrota, todos eles trabalhados à exaustão no livro. Em suma, é uma vitória com ranço de derrota. Entre amigos, essas situações extremas, em lugar de distanciar, aproximam ainda mais.

Não é por coincidência, por exemplo, que Mário se descobre também epiléptico depois da eleição (a data da consulta ao Dr. Miguel Couto garante esse detalhe). Até nisso quer imitar o pai espiritual. De posse da bibliografia médica francesa, que encontrei nos ótimos estudos sobre Gustave Flaubert, vi que a imitação – como origem da epilepsia – é fato corriqueiro e um dos temas mais trabalhados nos livros especializados. Empresto as palavras da bibliografia que consultei à fala do Dr. Miguel Couto na primeira consulta de Mário. O próprio pai de Flaubert, grande médico, acredita inicialmente que o filho não é epiléptico. Imita o gestual, os sintomas de epiléptico, como o jovem e bom ator que se apresentava em esquetes no lar. Destaquei esse exemplo de imitação porque me tranquiliza quanto à intensidade da admiração e da amizade que Mário nutre por Machado. Admiração e amizade perfeitamente retribuídas a Mário de Alencar durante aquele curtíssimo espaço de tempo. Ele só vem a falecer em 1925. Sobrevive por 17 anos. Na sua biografia, apenas se destacam os quatro anos que viveu ao lado do viúvo do Cosme Velho. Digo isso sem ironia.

 SPR: Emendo a questão com o capítulo IX, no qual você tira para dançar Joaquim Nabuco, dez anos mais novo do que Machado, e por quem este nutre grande admiração. Machado colabora com a publicação de Nabuco com um conto admirável que você analisa. Vê-se num primeiro momento um Machado dividido entre, para usar sua metáfora, dois bois, optando pelo segundo, Nabuco, ma non troppo. Ocorre-me aqui a ideia de Machado como síntese. A arte brasileira do século 19, e também a do seguinte, é marcadamente antirrealista; nossos artistas recusam o realismo, recusam a observação; ora se voltando, como Alencar, para mitos fundadores e telúricos, o sertanejo, o índio, o boi…ora pelo cosmopolitismo europeu, como Nabuco; com Machado situando-se criticamente entre esses dois polos, mas superando. Você concorda com isso?

Gostaria de terminar essa questão copiando o trecho o livro que me parece a chave que destranca a porta da arte: “A boa leitura da obra de arte não é a do autor, mas a que o leitor faz da obra alheia, em diálogo crítico com ela”; e acrescentar uma outra pergunta: Machado e o seu Machado nos impõem uma ética do olhar, uma ética da leitura?

Silviano: Perdão se o contradigo. Se concordasse com você, teria que minimizar a influência extraordinária que Eça de Queirós exerce sobre os jovens romancistas brasileiros nos séculos 19 e 20, de que é exemplo maior, evidentemente, Aluísio Azevedo, autor entre outros de O cortiço, e de que é exemplo tardio e também notável Graciliano Ramos. Este, em 1915, escreve em jornal da província: “Eça não é somente o escritor mais querido dos dois países, é uma invidividualidade à parte, adorada, idolatrada. Temos para com ele uma admiração que chega às raias do fanatismo”. Acrescenta no parágrafo seguinte: “Seus personagens não são, por assim dizer, entidades fictícias, criações de um cérebro humano – são indivíduos que vivem a nosso lado, que têm nossos defeitos e as nossas virtudes, que palestram conosco e nos transmitem ideias mais ou menos iguais às nossas”.

O sucesso de Eça no Brasil chega à segunda metade do século 20, tocando a área nobre da televisão Globo. É fundamento de duas excelentes telenovelas (O primo Basílio e Os maias). Machado de Assis é que é exceção no grosso da ficção literária brasileira. Ele não é atual, ele é contemporâneo, recorde-se palavras nossas logo no início desta entrevista. Leia-se, ainda, o livro de Flora Sussekind, Tal país, qual romance?, que tive o privilégio de orientar ainda nos anos 1970. Repare que minha contradição é tão verdadeira que um dos maiores nocautes críticos de Machado de Assis vai atingir o maxilar de Eça de Queirós. Leia-se, com o devido cuidado ou até mesmo sem cuidados maiores, a resenha que faz de O primo Basílio (publicada em abril de 1878).

Não é por obra do acaso, mas como consequência do sucesso alcançado pela instigante e madura obra literária, que o nome de Eça de Queirós atravessa o oceano Atlântico e reaparece no Brasil dois anos depois da publicação da resenha, em 24 de julho de 1880. Eça é convidado a colaborar no jornal carioca Gazeta de Notícias. Relembre-se que, naquele mesmo ano de 1880, Machado de Assis publica na Revista brasileira, de março a dezembro, o romance Memórias póstumas de Brás Cubas em forma de folhetim. Em editorial, a Gazeta de notícias anuncia a nova contratação: “Temos a satisfação de publicar hoje a primeira carta [coluna, diríamos talvez hoje] do eminente escritor Eça de Queirós, que acedeu ao convite que lhe fizemos para ser nosso correspondente em Londres”. E justifica a escolha: “Seria ocioso encarecer os méritos do novo colaborador, que tem nome firmado por trabalhos de grande valor literário”. O duelo se escancara, portanto, em 1880. Sintomaticamente.

Permita-me que me alongue, pois se trata de luta de boxe e de nocaute do brasileiro que ficaram fora do Machado. Refiro-me, agora, ao grupo de romancistas e poetas brasileiros que passa a frequentar a residência de Eça de Queirós em Portugal. Destaco o testemunho do poeta Olavo Bilac, que comparece e bem no romance Machado. Em crônica, Bilac anota com precisão: “Machado era uma preocupação de Eça. Eça, admirando-o vivamente, não podia compreender certos aspectos da sua figura de homem e de escritor; e, para satisfazer a curiosidade, multiplicava as perguntas, que às vezes nos deixavam embaraçadíssimos”. Repare-se que a roda-de-amigos a frequentar o salão europeu não era pobre de talentos. Dela participavam o escritor e diplomata Domício da Gama e os dois Prados, Paulo e Eduardo, intelectuais e pertencentes a tradicional família paulista. Perplexo diante das muitas perguntas que Eça lhe faz, Bilac reconhece que nenhum dos brasucas presentes nas tertúlias lusitanas poderia “dizer ao grande escritor d’Os Maias o que o autor das Memórias Póstumas de Brás Cubas pensava da proclamação da República, da questão financeira, do problema da unidade ou da pluralidade das emissões bancárias, da agitação revolucionária do Rio Grande do Sul, e das tendências nativistas da nova política brasileira”. Resta-lhe concluir: “E a esta interrogação [de Eça]: ‘que pensa sobre isso o Machado?’ podíamos replicar: ‘o Machado escreve romances e contos!’”.

Evidentemente, todos estavam equivocados porque liam os muitos livros de Machado de Assis dentro da estética realista. Queriam saber o que lá está escrito por um, na verdade, mímico. Escrevi Machado para mostrar a grande originalidade do escritor do Cosme Velho dentro da literatura luso-brasileira e da literatura universal. Exemplo mínimo é o destaque que concedo ao irmão das almas que se transforma no capitalista Nóbrega. No romance Esaú e Jacó, ele disputa a mão de Flora com os gêmeos cuja mãe lhe propiciou na juventude uma nota de dois mil reis, fonte espúria de sua futura fortuna. Nóbrega se escreve, naquele romance, por uma escrita convulsiva. É o ápice de episódio inicial. Desparece de todo. Reaparece como ápice na metade do romance. Escrita semelhante à da folha de sismógrafo.

Machado de Assis teria de se desenvolver literariamente respeitando – para não ser um mero moleque Ricardo, famoso personagem de Lins do Rego – os princípios estéticos que Joaquim Nabuco vinha expondo e desenvolvendo desde 1875 nas páginas do antigo jornal O globo. No final desse ano, a colaboração de Machado à revista Época, de Nabuco, é sintomática, como é sintomático o pseudônimo de que ele se vale para assinar o conto “Chinela turca”, Manassés. Salto anos, como aliás é hábito no romancista convulsivo. Machado e Nabuco voltam a dar as mãos – shake hands, como se dizia então – à entrada da Academia Brasileira de Letras. Direi, finalmente, que para os dois o que conta é a ética da escrita e da leitura. “Mas então”, recorro a essa expressão de Graciliano Ramos que, aparentemente, nada tem a ver com Machado e com Nabuco. Dou-lhe o contexto.

A ética da escrita e da leitura está expressa de maneira luminar e utópica por Graciliano Ramos, autor que sempre é lido (em parte equivocadamente) da perspectiva da estética realista. Copio este curto trecho do romance Angústia:

“Proletários, uni-vos”. Isto era escrito sem vírgula e sem traço, a piche [no muro]. […] Aquela maneira de escrever comendo os sinais indignou-me. Não dispenso as vírgulas e os traços. Quereriam fazer uma revolução sem vírgulas e sem traços? Numa revolução de tal ordem não haveria lugar para mim. Mas então.”

SPR: No último capítulo, Machado lê Stendhal, e você volta a explorar o que em uma resposta anterior já foi dito: as mulheres na vida do autor. E eu sublinho uma frase que eu gostaria de seu comentário: “A morte e a escrita literária são o desvanecimento progressivo da mulher na vida do homem e na criação artística.”

Silviano: De novo, peço sua permissão. Agora, para poder encerrar nossa conversa com uma reflexão do autor. Relendo o já escrito, dou-me conta de que não cabe ao romancista explicar por demais seu romance. Isso porque, numa obra de arte, as coisas não estão escancaradamente claras para que o leitor possa ler com maior riqueza e proveito próprio o livro que tem diante dos olhos. Se há dificuldade [1] em compreender a multiplicidade de significados que o pouco usado vocábulo desvanecimento comporta, é preciso que ele vá até o dicionário, como eu próprio ia desde que comecei a ler com maior interesse as obras literárias. A ética da leitura não se aproxima da ética da escrita pela preguiça mental. Pelo contrário, ambas são as formas mais ambiciosas do fazer humano (do labor humano, para retomar Clarice Lispector, e não do trabalho humano, no sentido sociológico do termo) com vistas ao saber. Este só se dá se fronteiras individuais são transgredidas e alargadas. Seria fácil, embora seja sempre útil, repetir o verso de Arthur Rimbaud: “Je est un autre”. Pela escrita e pela leitura, o eu se torna outro. Essa experiência – a alteridade − significa mais do que uma troca de perspectiva; significa – em última instância – que há um diálogo entre a presunção de ser quem é com a ignorância de quem ainda não chegou a ser.

Copio do Dicionário Houaiss a definição do verbete desvanecimento e reenvio a pergunta ao leitor, pedindo-lhe o obséquio de trabalhar e de retrabalhar a frase sublinhada por você:

“ato ou efeito de desvanecer(-se); esvanecimento

  1. sentimento de orgulho; vaidade, presunção, esvanecimento

Derivação: sentido figurado.

  1. sensação de satisfação, de prazer; esvanecimento
  2. ação ou efeito de extinguir(-se); desaparecimento, sumiço, esvanecimento
  3. desmaio (a propósito de cores); desbotamento, esvanecimento
  4. perda da viveza; esmorecimento, desbotamento, esvanecimento
  5. Regionalismo: Nordeste do Brasil. Uso: informal. Exageração nas maneiras; saliência, descomedimento.

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[1] Eis a frase que abre o primeiro parágrafo do ensaio A expressão latino-americana, do escritor cubano José Lezama Lima: “Somente o difícil é estimulante; somente a resistência que nos desafia é capaz de direcionar, provocar e manter nossa potência de conhecimento…”.

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André Nigri é jornalista e escritor

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