* Por Daniel Manzoni-de-Almeida *

I.

Quando você voltar eu gostaria de saber sinceramente o que você sentiu no meu país”. Foi uma mensagem que recebi no privado do instagram de uma colega turca que mora na mesma cidade que eu aqui na França. Eu nem pensava em escrever essa série de textos, mas foi essa mensagem dela que me despertou a ideia e me deu inspiração para escrever o que eu estava sentido. Eu havia acabado de chegar em Istambul estava molhado de suor devido a toda a tensão e ansiedade que já relatei. Logo meu pacote de dados da internet acabou e eu só consegui respondê-la dias depois dizendo que havia conversado com meu editor da revista e que iria escrever uma série de textos sobre as impressões da viagem e toda aquela ansiedade que eu sentia resultado da pressão e da repressão que estavam no ar. Eu precisaria falar, não sou o tipo de pessoa em que as coisas ficam apenas na dimensão introspectiva, sou expansivo, barulhento e falar por meio da escrita é vital como forma de posicionamento no mundo. Gosto da escrita porque transforma o pensamento em materialidade no papel, faz o pensamento ocupar um espaço físico no mundo de alguma forma. Talvez seja isso meu grande movimento inconsciente de identidade: falar por meio da escrita e ocupar um espaço, empurrando para os lados, para cima e para baixo com a composição de um texto pelas palavras como cotoveladas, um lugar para dizer. Sinto qualquer tentativa de censura como algo que dói na carne, tenho reações fisiológicas e aquela mensagem da minha colega funcionava, então, como um analgésico. Ela havia sido certeira com alguém que não suporta o silêncio como eu. Eu sabia, um pouco, o que essa minha colega havia passado na Turquia algumas vezes que conversamos sobre. E ela sabia que estava me fazendo um convite irrecusável com aquela mensagem. Ela, anos antes, havia tido problemas com o governo autoritário do seu país e tinha sido fichada como participante de uma organização terrorista: eu estava diante de uma “terrorista” oficial.

Já fazia uma semana que eu havia voltado da Turquia quando nos encontramos para conversar. Nós tínhamos sido colegas de curso de francês da universidade no primeiro semestre de 2022 quando eu tinha acabado de chegar para morar na França. Ao final do curso nós tínhamos que apresentar um pequeno seminário sobre algo da nossa cultura para os colegas da sala. Eu apresentei um pequeno seminário sobre o trabalho com os escritores e escritoras LGBT+ do Brasil que eu estava fazendo. Era uma maneira de apresentar aos colegas da turma de francês um pouco da literatura LGBT+ contemporânea brasileira. Ao final da apresentação eu pedi para que os colegas dos outros países que dissessem, se soubessem, sobre algum escritor ou escritora LGBT+ do seu país para que eu pudesse conhecer o trabalho. Lembro que houve um pouco de silêncio abissal na sala. Eu acredito que os colegas não estavam preparados para aquela abordagem de apresentação apesar de todos e todas ali serem universitários, pessoas das ciências e intelectualidades das mais diversas áreas do conhecimento ainda assim, o tema LGBT+ causava um desconforto. Esse desconforto eu sinto todos os dias, inclusive nas experiências de países que já morei e que se dizem mais abertos para essas questões como EUA, Brasil e França. Antes, eu achava que o desconforto vinha de quando eu falava a palavra “homossexual” e na cabeça da pessoa que estava na conversa vinha logo uma cena de sexo entre dois homens que causava um incomodo. Hoje essa hipótese, para mim, já caiu por terra, pois os heterossexuais falam o tempo todo – em linguagem direta, indireta, simbólica, política e social – das suas prática afetivo-sexual e não se passa esse pensamento (a sociedade é estruturada com a estética heteronormativa). A hipótese que trago hoje é que ao falar “homossexual” o desconforto que passa na cabeça das pessoas vem da sensação da possibilidade da perda do privilégio social e político que a estética heteronormativa proporciona há séculos: “Lá vem esse povo militar”; “Esse assunto de novo?”; “Isso já está cansativo” ou “Para que isso? Somos todos iguais” e outros blábláblás. Bom, voltando, ali na sala de aula a situação era diferente, a grande maioria  vinha de países em que as questões LGBT+ não são bem claras ainda, onde há muita repressão ou, pior cenário,  ainda é considerado crime, por exemplo, como Índia, Paquistão, Cuba, Malásia e Marrocos que eram os países de origem dos meus colegas de turma. Ela, da Turquia, foi a única que tinha uma sugestão. Indicou o autor Murathan Mungan [1955 -] escritor turco, homossexual assumido (foto ilustrativa). Ela não fez apenas a sugestão de um nome de um escritor, fez elogios pela abordagem do tema, disse energicamente o quanto era importante falar sobre o tema publicamente e nos contou um pouco sobre a situação das pessoas LGBT+ sob o governo Erdogan.

Quando a aula terminou, nós conversamos um pouco mais no  caminho para o ponto de ônibus e então ela me falou do seu trabalho, era antropóloga e  trabalhava com questões de etnografia das religiões. Tínhamos temas em comum nas ciências humanas e logo nos adicionamos nas redes sociais. Pelas suas postagens, pude ver que ela gostava de literatura, tinha fotos com o marido, com o filho pequeno. Nos encontramos algum tempo depois em um outro curso online da universidade para integração de estrangeiros à vida cultural e cotidiana do país. A cidade onde moramos é pequena e não foi difícil nos encontramos outras vezes no mercado, no ponto do trem e trocamos rápidas conversas. Ela sempre estava com o marido ou com o filhinho voltando, ou indo para a escola.

Quando eu voltei da Turquia, eu não hesitei em contactá-la e marcar um café para conversarmos. Eu tinha tido todas essas impressões e queria dividir com ela. Combinamos de nos encontrar na faculdade de Letras da universidade. “Vamos falar em francês ou inglês?”, nos perguntamos, pois até aquele momento fazíamos uma mistura, um “bordel”[1] completo das línguas – um “franseglish” – o que é típico em conversa entre estrangeiros quando vivem fora do seu país. Pegamos um café na máquina do térreo e fomos para sua sala no último andar do prédio. Um labirinto de escritórios silencioso até chegar na sala dela, da janela do seu escritório dá para ver grande parte da cidade de Brest. Não havia muitas coisas na sala, nem muitos livros, nem muitos papéis, deixava a impressão de um lugar de passagem. Tinha apenas a mesa vazia como se alguém acabasse de chegar ou está de partida, mas não está instalada. “Eu ainda estou tentando recuperar meu trabalho na universidade por lá”, disse ela certeira quando eu abri a conversa ao falar que havia adorado as paisagens, a comida e a recepção no país. O andar do escritório tinha um silêncio inacreditável quando ela me repetiu a mesma pergunta que havia feito por mensagem na rede social e disse: “Eu perdi o direito ao meu passaporte por 5 anos e tenho a marca no meu dossiê documental como terrorista!”.

II.

No grande salão de almoço da Universidade em que o congresso estava acontecendo havia apenas algumas pessoas finalizando a refeição. O que imperava era o barulho dos pratos e talheres batendo ao serem retirados das mesas pelas equipes de trabalho. Eu não fiz perguntas e apenas acompanhei o rapaz que me levou para uma área do salão de almoço atrás de um biombo enorme de madeira. Lá estava um grupo de três rapazes, jovens, por volta dos vinte e poucos anos, que estavam com uniforme de garçom arrumando pratos, talheres e copos sujos que estavam em um carrinho enorme de metal. Eu os reconheci, já os havia visto em algum momento pelo congresso, trabalhando no coquetel ou na recepção dos participantes, em outros momentos circulando pelas áreas onde acontecia o congresso. Um dos rapazes eu tinha certeza que havia me servido um café no dia anterior no “coffee break”, um outro eu tinha certeza que havia me ajudado a encontrar uma das salas de seminário quando eu estava perdido nos corredores da universidade, quando ele apareceu com a camiseta da organização do congresso e me ofereceu ajuda ao me ver completamente abobalhado tentando entender a lógica da numeração das salas que não fazia nenhum sentido na forma como nós fazemos. Eu tinha marcado bem os rostos deles, porém não os havia visto juntos, em um grupo como naquele momento. Eram lindos, com os olhos entre a cor castanha escura e cor de mel, um olhar de mistério, uma imensidão de melancolia de um deserto por meio deles.

Um deles limpou a mão no avental e a estendeu para me cumprimentar com um sorriso nos lábios e uma barba densa. Estendi a minha mão e o meu braço revelou a tatuagem que fez os olhos deles colaram nela. Eu achava estranha essa curiosidade na tatuagem da bandeira, mas entendi ao voltar para França e ao conversar com a minha colega turca que a bandeira ou qualquer outra manifestação desse tipo por lá é uma afronta que pode causar problemas sérios indo desde a pura violência ou  até prisão. Eu sacolejava a minha permanente tatuagem no braço todas as vezes que estendia a minha mão para um cumprimento ou qualquer outro movimento e essa era a função dela no braço: um constante sacolejar do orgulho de ser LGBT+. Os rapazes não podiam despender muito tempo, pois estavam ali trabalhando. Rapidamente nos apresentamos, eram estudantes de mestrado ou doutorado em ciências puras, ou ensino das ciências da universidade. Disseram que participar, de alguma forma do congresso, mesmo trabalhando, era uma maneira de terem contato com outros pesquisadores de outros países. No início da conversa estavam interessados sobre como poderiam continuar os seus estudos em outro país da Europa, se havia programas, quais os editais e possibilidades de mobilidade. Parece ser um interesse simples ou até mesmo bobo quando falamos do mundo da internet hoje que essas informações são fáceis, mas não são. Muitas dessas informações estão em língua inglesa, francesa, portuguesa entre outras, dificultando o seu entendimento, além de que nem todos têm acesso. Muitos desses editais são imensos, confusos e cheios de regras da própria cultura do país que às vezes não fazem sentido nenhum em outra cultura. E há, claro, o medo das políticas do seu país de origem não estarem compatíveis com as políticas do país que você quer fazer os seus estudos. Lembrando, por exemplo, que durante o bordel do governo Bolsonaro, no caos da pandemia da COVID-19 e a bagunça das vacinas, nós ficamos, durante muito tempo,  entre os países da faixa vermelha dos infectados, de “gente perigosa” para viajar e sermos recebidos em outros países. A Turquia não escapa disso com o autoritarismo do governo. Ter alguém que ajude a digerir, pelo menos o mínimo dessas informações, é de extrema importância. Na nossa conversa, eu fiquei interessado em saber quais eram os tópicos de estudos que cada um estava realizando. Dois estavam estudando ensino de ciências – temas ligados ao ensino de experimentos e informática em física – dois outros eram da área da matemática e engenharia. Eu achei que seria esse tópico da conversa, mas quando pensei em me despedir um deles, o que havia me ajudado no corredor da universidade, perguntou sobre se tinha algum problema de ser LGBT+ onde eu morava. Eles se entreolharam em comum acordo e finalmente estávamos entrando no assunto de interesse. Foi o estopim para os outros relataram que não tinham e não estavam tendo acesso o que poderia estar sendo discutido de direitos LGBT+, que no país não havia conferências e que poderiam estar perdendo alguma coisa porque os livros traduzidos não chegavam, os artigos não chegavam, a informação não chegava devido a rígida censura imposta pelo governo. A única imagem que cortou os meus pensamentos foram as das últimas cenas do texto “A vida de Galileu” de Brecht que havia estudado na minha tese de doutorado em literatura. Nela, a personagem Andrea que havia sido aluno de Galileu, conseguiu atravessar a fronteira da Itália escondido com os manuscritos das obras não publicadas de Galileu para salvá-las das garras da inquisição que havia condenado Galileu ao isolamento completo em uma casa. Havia sido a opção de Galileu para não ser torrado na fogueira santa: se manter vivo para colocar no papel todas as suas ideias. Como Galileu não podia sair do isolamento compulsório que havia sido condenado, Brecht coloca na personagem de Andrea a função simbólica de salvar os escritos do físico. Confesso que na época que eu escrevia a tese eu dei pouco importância para essa cena, mas nosso inconsciente é terrível e a guardou para esse momento em que finalmente ela fez sentido. Em todo momento que eu escrevia a tese, eu me colocava no lugar do Galileu de Brecht na identificação da vida de cientista, porém naquele momento ali diante daqueles rapazes eu teria que interpretar era o Andrea.

Foi o que fiz imediatamente. Eu disse que tinha uma pasta com um número grande de artigos com textos em PDFs de estudos sobre as questões LGBT+ publicados em várias línguas que eu poderia disponibilizar o dossiê para eles. Textos das cabeças mais subversivas sobre gêneros e sexualidades LGBT+. Textos perigosíssimos nas mãos de gente que tem sede de aprender e não quer se calar. Verdadeiras bombas contendo ideias perigosas de liberdades de corpos e sexualidades. Sem hesitação, o rapaz que me levou até eles pediu para eu digitar um e-mail no celular dele, criaria um e-mail novo para que eu enviasse os arquivos sem problemas.

O encontro foi rápido e nos despedimos ali. Eles precisavam voltar ao trabalho sem grandes suspeitas. Eu voltei e tomei o meu caminho para assistir uma palestra do congresso. Na verdade, nos primeiros momentos, eu não lembro qual foi a palestra ou sala que entrei, estava um pouco atordoado. Na sala, abri meu computador e o e-mail dele já havia chegado e enviei a pasta com os arquivos para ele. Eu não pensei muito se aquilo era algum tipo de armadilha, se poderia dar algum problema para eles ou até para mim. O governo turco controla tudo via um ministério da censura e ainda com maior intensidade e rigor  desde 2020 com a aprovação de uma lei de controle do conteúdo em redes sociais. Imaginem o que devem fazer na internet em geral… Eu acreditei e fiz o que tinha que fazer e o que eu poderia fazer. Aquele material havia sido importante para mim por todo o meu percurso. Muitos dos estudos sobre sexualidades LGBT+ haviam sido como bálsamo para minha alma em momento de angústia, ter lido muitos daqueles textos ajudou a me estruturar intelectualmente para sobreviver emocionalmente. Eu já os havia enviado para outros estudantes brasileiros durante anos e faço com os franceses. Sem dúvidas agora deveria ser importante para aqueles rapazes. O que eu sentia, na verdade, era um pouco de medo de estar causando um problema por ser LGBT+. Eu não deveria sentir medo, eu só estava falando de textos, de leituras! Uma pessoa heterossexual sentiria essa sensação em outras partes do mundo por compartilhar conhecimento sobre sua identidade? Fica para reflexão.

Mas eu estava ali sentado no fundo daquela sala do congresso. Na minha frente rolava uma palestra sobre ensino de química, em que o pesquisador, um rapaz jovem norte-americano, apresentava orgulhoso os resultados (provavelmente da sua tese de doutorado pelo que entendi), sobre como os estudantes de uma escola nos EUA estão fazendo uma atividade mirabolante de química nos programas de informática ultra e mega tecnológicos que havia desenvolvido como uma proposta de “modelo de ensino de química online”. As palestras em seguida foram de pesquisadores da Inglaterra, da Finlândia e Suécia que mostravam algo parecido: estudantes-modelo realizando atividades de ciências modelo em escolas-modelo! Para todos os lados que se olhava no congresso era essa disputa dos modelos de ensino. Tudo girava em torno de mostrar o “modelo” certo ao invés de valorizar as experiências pedagógicas individuais que cada um pode ter dentro da sua situação ou cultura. Até mesmo porque, em se tratando de uma questão básica antropológica, um “modelo” funciona muito bem em um grupo cultural e não significa que dará os mesmos resultados em outra cultura. Porém, na guerra das disputas dos “modelos”, isso é ignorado e a desigualdade entre pessoas é exacerbada e só prossegue. Eu comecei a ficar irritado com toda aquela ideologia da “busca por um modelo” quando, minutos antes, eu havia acabado de sair de uma situação em que as liberdades de identidades de estudantes estavam sendo conversadas escondidas atrás de um biombo… que tipo de ensino nós estamos, realmente, procurando?

Já se iam dias do congresso e contava-se nas duas mãos o número de trabalhos apresentados em temáticas sobre gêneros no congresso. O tema da sexualidade, então, passava longe ou quase inexistente. Talvez eu e outro pesquisador grego falamos sobre. No dia seguinte era o último do congresso e a minha última, das 4 apresentações, que eu havia ido fazer por lá. Era uma mesa entre quatro pessoas. O trabalho que apresentei versava sobre direitos humanos na formação de professores. Junto na mesa, havia uma professora turca que apresentou um trabalho com uma proposta muito interessante que investigava como a história de vida de professores de física era determinante para o desenvolvimento de suas práticas de ensino. Ao mesmo tempo foi decepcionante ao ver que os quatro casos selecionados para mostrar a história de vida eram apenas de professores homens. Eu havia feito a minha fala antes do que ela e, no momento da discussão, eu puxei o tema: “Você viu na minha fala que eu trabalho com a teoria da interseccionalidade, diversidade e direitos humanos. Você acha que essas discussões poderiam ajudar a ampliar sua pesquisa, por exemplo, trazendo mulheres para ela?”. Rapidamente, ela me respondeu: “Eu vi. Eu acho que não. Próxima pergunta”. As pessoas que estavam assistindo ficaram em silêncio. Não houve nenhuma manifestação nem contra e nem a favor da plateia cem por centro europeia. Havia uma assustadora anestesia negligente no ar.

III.

Eu era uma das ‘acadêmicas pela paz’ e um dia assinei uma petição que pedia paz na região Curda… dias depois eu estava diante de um promotor público sendo interrogada…”, disse ela olhando fundo nos meus olhos em que pude perceber a revolta que havia dentro dela, “…Eu perdi meu trabalho por sete anos, ainda não o recuperei, e o meu passaporte foi aprendido por 5 anos… eu fui acusada de terrorismo. Eu tenho essa marca no meu dossiê!”, finalizou rabiscando isso em um pedaço de papel em que tentava desenhar esquemas e resumir coisas sobre seu país para me entregar, “… fale sobre isso!”, finalizou ela batendo a ponta da caneta com força no papel no tópico que havia escrito e marcado sobre o ministério da censura que havia no seu país. Ela é uma mulher, uma mãe, uma esposa, uma intelectual, uma pensadora que havia sofrido uma violência de censura terrível e que ainda tinham consequências por ter sua ficha marcada por terrorismo por ter se manifestado a favor da paz de um povo que vem sendo massacrado. Nós somos pesquisadores na mesma universidade e de alguma forma, de intensidades diferentes, vítimas de alguma forma de censura. Quando Brecht escreveu “A vida de Galileu” ele queria falar sobre isso: a liberdade de expressão do intelectual em tempos sombrios. De alguma forma, quando escolhemos a vida intelectual pública, caímos no que chamei na tese de “Complexo de Galileu” sobre a nossa responsabilidade com a liberdade enquanto intelectuais públicos e de como a defesa da liberdade pode nos ser cara. Para ela estava sendo e muito.

Por alguns minutos aquela batida com força da caneta no papel abriu um tempo e espaço que me fez transportar para um passado e eu lembrei de quando eu era criança e houve pela primeira vez a pergunta: “O que você quer ser quando crescer?”. Eu não lembro o que eu disse direito, mas eu consigo lembrar nitidamente que eu pensei em livros. Desde pequeno eu sou apaixonado por livros. Quem me fez tomar gosto por livros foi a minha tia, irmã da minha mãe. Foi ela quem me deu meu primeiro livro e me ensinou a ler entre cinco e seis anos. Eu lembro que íamos passar os finais de semana de feriado na casa dos meus avós maternos em Campinas no interior do estado de São Paulo. Lá ela me dava gibis e lia junto comigo. A noite quando eu ia dormir ela contava história. Um dia ela contou a história dos “três porquinhos” em que um lobo terrível assoprava a casa de cada um deles para derrubá-las. Derrubou a casa do primeiro e do segundo, mas não conseguiu derrubar a casa do terceiro porque era feita de concreto e muito mais resistente. Eu fiquei muito intrigado e encantado com essa história e queria entender como o terceiro porquinho derrota o lobo: porque construiu algo resistente. O que seria esse algo resistente? Anos mais tarde, já na vida adulta, tudo isso iria fazer sentido que o que fez o terceiro porquinho a derrotar o lobo foi ele ter pensado. Ter pensado em usar concreto e outros materiais que poderiam proteger a casa das ações violentas do lobo. O pensamento é a resistência. Não há coisa mais irritante para os “lobos” que nos cercam que um “porquinho que pensa”. O lobo vai soprar, soprar e morrer de falta de ar sem conseguir derrubar algo sólido e resistente pensado pelo porquinho. No meio disso haverá todas as possibilidades de censura: a do pensamento, a do corpo, a do comportamento, a da identidade… muitas casas de concreto terão que ser construídas. Ela, minha colega, era um desses porquinhos exemplares. Tudo poderia lhe ser tirado, mas a resistência era seu pensamento. “Eu preciso buscar meu filho na escola”, disse a minha colega mãe, antropóloga, pesquisadora e fichada como terrorista porque assinou uma petição pela paz. “Escreva sobre”, insistiu ela ao me dar um abraço afetuoso de despedida depois daquela manhã de conversa.

IV.

Eu parti da Capadócia em uma madrugada quente. Acordei por volta das 5 horas da manhã para me arrumar. O carro do traslado para o aeroporto chegaria por volta das 6 horas. Milagrosamente eu me arrumei rápido e fiquei ali mexendo no celular. Meu colega de congresso e eu estávamos ali à toa esperando a hora de partir. Havia uma televisão no quarto do hotel. Não havíamos ligado nenhum dia e decidimos ligar lá para dar uma zapeada na programação da TV turca pela primeira vez. Passando os canais caímos em um que passava clipes musicais. Naquela hora passava um clipe em que tinha toda uma estética peculiar e muito similar aos clipes que conhecemos da Glória Groove ou do Pablo Vitar. Na hora não deixamos de comentar sobre isso. Seria o que estávamos pensando? Um cantor LGBT+ turco? Peguei rapidamente o celular e coloquei o google para reconhecer aquele cantor. Feito: era o artista Mabel Matiz, um jovem cantor turco que tem com suas letras de música um forte ativismo LGBT+ no país. Eu amei esse presente de coincidência!

Eu tomei o traslado sozinho. Fui assistindo as músicas do Mabel no youtube no meu celular e escutando enquanto cruzava o percurso das áreas dos campos de pedra da Capadócia que amanhecia e já se enchia o céu com os balões subindo: pareciam bolhas de sabão de uma espuma alaranjada. Eu não estava entendo uma palavra das músicas do Mabel que eu escutava, mas eu podia sentir que era uma forma de resistência. O percurso da cidade de Goreme para Kayseri durou quase uma hora. Em certa hora, como eu estava sozinho no translado, puxei assunto com o motorista. Perguntei sobre Mabel e ele não quis muita conversa sobre, apenas disse: “Lixo!” e que eu havia perdido tempo vendo o pior que havia na Turquia. Por essa reação, na verdade, pelo que havia pesquisado sobre eu tinha achado eu tinha visto o melhor da Turquia…

Dias depois, quando retornei para a França, eu fui pesquisar mais sobre o ativismo de Mabel e fui encontrando que ele tem muitos problemas com o governo, principalmente, com censura. Teve problemas sérios com o governo e, recentemente, teve um dos seus clipes, o da música “Karakol” (Lindíssima! E a estética do clipe é deslumbrante!) banidos de circulação por fazer propaganda do “homossexualismo”. Eu encontrei uma tradução da letra da música para o português. Em verdade, “Karakol” é um lamento do eu-lírico por um amor clandestino. O clipe traduz essa ideia. Alguns dos trechos da tradução para o português por Sanderlei[1]:

“(…) Você me envenenou ainda eu
Não pode voltar deste caminho
Coberto de hematomas, tiros errados, eu não disse mais amor assim
Mas parece que meu coração está trancado na loja policial (…)

Eles me grelharam, mas eu não revelei teu nome
Eles esculpiram o túmulo de amor em meu coração (…)

Eu sinto que minha juventude está sendo queimada, abra aquela porta”

V

No aeroporto de Istambul eu embarquei para Atenas na Grécia. Haveria uma parada e eu ficaria uma noite por lá. Um pouco antes de decolar, quando eu almoçava, eu recebi um e-mail resposta do rapaz que eu havia enviado o dossiê com os textos sobre estudos de gêneros e sexualidades. Nele havia apenas escrito “Thank you!” e um pequeno emoji com a bandeira LGBT+.

 

[1] Disponivel em: https://lyrics-letra.com/2022/07/AL01N3/Mabel-Matiz-Karakol-Letra-da-M%C3%BAsica-Tradu%C3%A7%C3%A3o-em-Portugu%C3%AAs-by-Sanderlei-pt-MZ.html

 

[1] Expressão francesa que também usamos na língua portuguesa, em especial no Brasil, para nos referir a desordem e bagunça.

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Daniel Manzoni-de-Almeida é escritor e doutor em teoria literária. Université Bretagne Occidental, Brest, França. danielmanzoni@gmail.com

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