Rimbaud: eu é um outro

Por Ferreira Gullar *

O adolescente Jean-Nicolas Arthur Rimbaud – que, na acanhada província de Charleville, na década de 1860, usava cabelos compridos até os ombros, fumava cachimbo, insultava os padres na rua, se negava a frequentar o colégio e fugia de casa a pé para vagabundear em Paris; que renegava a família e o casamento; que se entregou às drogas, ao ocultismo e ao amor ilícito e que, depois de cruzar vários países europeus (quase sempre a pé), abandonou definitivamente a civilização para continuar sua vida aventurosa em inóspitas regiões africanas – terá sido o precursor da geração que, no século XX, contestaria os valores da civilização ocidental?

A resposta afirmativa ou negativa a essa pergunta não esgotaria a significação do desconcertante enigma que constitui a vida desse homem, cuja obra poética, concluída aos vinte anos, está entre as mais deslumbrantes criações da literatura ocidental. Ao longo das décadas, sucederam-se as tentativas de explicar a atitude desse poeta genial que parece ter desprezado a própria genialidade. Para católicos como Paul Claudel ou Gabriel Marcel, o fenômeno Rimbaud se explica como expressão de uma profunda crise religiosa; para os surrealistas, ele foi o primeiro a tentar recuperar para o homem a unidade perdida entre a realidade e o sonho; para os marxistas, ele expressa a rejeição dos valores burgueses, e sua crise existencial foi precipitada pelo esmagamento da Comuna de Paris. Há uma parte de verdade em cada uma dessas teses, mas, de certo modo, ele permanece um enigma que resiste a toda e qualquer decifração.

O olhar azul – que mente

A rebeldia dos jovens de nossa época foi apresentada como um conflito de gerações e, embora essa seja uma explicação insuficiente, é inegável que os hippies, por exemplo, não estavam dispostos a aceitar os valores dos pais. Se essa rejeição foi causa ou efeito do conflito é difícil assegurar. É certo, porém, que os pais, como representantes mais imediatos do establishment, foram postos na cadeira dos réus.

É possível que nem todos os pais tenham culpa ou que nem todos sejam igualmente culpados, mas, no caso específico de Arthur Rimbaud, em cujos poemas os problemas da infância e do relacionamento familiar explodem a cada passo, essa questão não pode ser descartada. Tanto mais que a sua não era uma família padrão.

Vitalie Cuiff, mãe de Arthur Rimbaud, filha de pequenos proprietários de terra, casou-se com o capitão de infantaria Frederico Rimbaud, homem de espírito aventureiro, indolente e às vezes violento, que com ela pouco conviveu e que a abandonou quando lhes nasceu o quarto filho. A família ficou morando na casa do avô materno, cuja morte veio agravar o ressentimento de Vitalie contra o mundo: ela teve de se mudar com os filhos para uma casa de cômodos onde moravam famílias de operários. Para manter os filhos distantes daquela gente miserável, Vitalie enrijeceu o domínio disciplinar sobre eles. Na escola, Arthur e seu irmão mais velho, Frederico, calados e tímidos, contrastavam com a alegria dos colegas. Quando a família saía de casa, causava espanto: à frente iam as duas irmãs, Vitalie e Isabel, de mãos dadas; logo atrás, também de mãos dadas, Arthur e Frederico, e, fechando o cortejo, a uma distância regulamentar, vestida de negro, a mãe. Os biógrafos de Rimbaud a descrevem como uma mulher obstinada, orgulhosa e destituída de afetividade. Capaz de expulsar de sua porta, a vassouradas, os netos, filhos de Frederico, que se atrevera a casar-se contra a vontade dela. No fim da vida, aos 75 anos, mandou preparar a sua sepultura, entre as de Vitalie e Arthur, e pediu aos coveiros que a deitassem lá dentro para antegozar a sensação de estar morta. Quanto ao pai, que morreu em 1878 – quando Rimbaud começava a sua segunda vida em Alexandria e Chipre –, nunca voltou a ver os filhos.

Arthur apelidou a mãe de “boca sombria” e, num de seus poemas, referindo-se a ela, fala de “olhar azul – que mente”. Numa passagem de Une saison en enfer, brada: “Pais, cavastes a minha infelicidade e a vossa!”.

Primeiras fugas

Até aí, nada de excepcional: pais neuróticos que não se amam provocam a infelicidade dos filhos. E tudo seria muito simples se um desses filhos não fosse um gênio precoce que, aos quatorze anos, surpreende colegas e professores pelo virtuosismo com que compõe versos em latim. Ele ganha todas as láureas do colégio e, aos dezesseis anos, escreve em francês poemas que se igualam aos dos melhores poetas da França.

Nessa época, Rimbaud se liga a George Izambard, jovem professor de ideias revolucionárias. O entusiasmo do menino pela literatura o domina: envia a Theodore Banville uma série de poemas na esperança de vê-los inseridos em O parnaso contemporâneo (2ª série), em vias de publicação. Não o consegue, mas publica poemas em La charge, jornal satírico, e em Première soirée. Ao longo dos meses, obtém outros tantos êxitos no colégio. Até que, no verão desse ano de 1870, estoura a Guerra Franco-Prussiana.

Segundo Ernest Delahaye, seu amigo, desde os treze, quatorze anos, Rimbaud desejava que a sociedade em que vivia fosse destruída pela violência. Durante 1870, forma-se em seu espírito a ideia de que uma revolução mudaria o horizonte social. “A amarga inveja e a admiração estúpida serão substituídas pela concórdia pacífica, pela igualdade, pelo trabalho de todos para todos.” No dia em que ocorre uma entrega de prêmios no colégio, de onde ele sai coberto de louvores, anuncia-se o primeiro desastre do Império frente aos prussianos: a derrota de Wissembourg. No final de agosto, enquanto a mãe sai a passeio com as irmãs, ele vende os livros que ganhara de prêmio e toma o trem para Paris: quer assistir à queda do governo imperial. Na volta, por viajar sem bilhete, é preso. Izambard, que vivia então em Douai, vai soltá-lo e leva-o para lá, onde os dois se engajam na defesa militar da cidade. Atendendo aos apelos da mãe de Rimbaud, Izambard o leva de volta a Charleville, mas ele foge de novo, desta vez a pé, pelas estradas que conduzem à Bélgica. Avisado, Izambard procura-o inutilmente em Fumay, Charleroi e Bruxelas, e, quando retorna a sua casa, encontra-o lá, copiando tranquilamente, num caderno, os poemas que escrevera durante a viagem… Mas chega a ordem materna para que a polícia o recambie a Charleville, onde Rimbaud passará todo o inverno, antes de empreender a terceira fuga: vende seu relógio e toma o trem para Paris, onde, durante quinze dias, vagará pelas ruas, dormirá ao relento, em total desamparo. Enfim, volta a pé para sua cidade, atravessando as linhas inimigas e fazendo-se passar por francoatirador, a fim de obter a ajuda dos camponeses.

Em Charleville, redige um Projeto de Constituição Comunista, que se perderia, mas que ele mostrou, então, a Delahaye. Em março de 1871, os operários se insurgem no movimento revolucionário da Comuna, que Rimbaud saúda nos versos de Paris se repeuple e Les mains de Jeanne-Marie. Escreverá mais tarde: “Tenham sorte, gritava eu, e via no céu um mar de fogo e de fumaça; e à esquerda, e à direita, todas as riquezas ardiam sob um bilhão de trovões”. Durante muito tempo se pensou que Rimbaud se deslocara a Paris por ocasião da Comuna, mas hoje se sabe que isso não aconteceu. O esmagamento da sublevação revolucionária parisiense terá tido enorme repercussão sobre ele e há mesmo quem veja nisso a causa de seu repentino encaminhamento para o ocultismo e para uma atitude visionária. É certo, no entanto, que a Comuna só foi esmagada em 27 de maio, e já no dia 13 ele comunicava a Izambard sua nova concepção da poesia. A famosa Carta do vidente é datada de 15 de maio, e nela ele afirma: “Digo que é preciso ser vidente, fazer-se vidente. O Poeta se torna vidente por um longo, imenso e deliberado desregramento de todos os sentidos.”

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Os trechos acima fazem parte do livro Autobiografia poética e outros textos, com reunião de escritos e entrevistas do poeta Ferreira Gullar [editora Autêntica, 160 págs.]

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