* Por Viviane Ka *

 Ouse, ouse… ouse tudo!!

Não tenha necessidade de nada!

Não tente adequar sua vida a modelos,

nem queira você mesmo ser um modelo para ninguém.

Acredite: a vida lhe dará poucos presentes.

Se você quer uma vida, aprenda… a roubá-la!

Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer.

Não defenda nenhum princípio, mas algo de bem mais maravilhoso:

algo que está em nós e que queima como o fogo da vida!!

 (Lou Andreas Salomé)

Na história da literatura sempre existiram escritoras reprimidas em casa, mas mesmo assim, encontrando brechas para criar.

Para Virginia Woolf, em seu livro, Um teto todo seu (1929), as mulheres precisam de duas coisas para escreverem: um quarto e uma renda. O livro, escrito nove anos após as mulheres obterem direito de voto na Inglaterra, é uma análise da situação da mulher e de sua relação com o dinheiro. O ensaio examina mulheres que foram capazes de produzir obra de qualidade mesmo com as limitações impostas pela sociedade patriarcal, como Jane Austen (foto) ou as irmãs Bronté.  A própria Virginia ficou em casa enquanto todos os seus irmãos foram para a escola.

Em 1829, as três irmãs Bronté, filhas de um pastor anglicano de origem irlandesa, tentavam sobreviver aos maus tratos, ao isolamento e à tuberculose,  através da leitura e imaginação. Em casa, escreviam fantasmagóricas histórias de amor e poemas com pseudônimos masculinos para conseguirem alguma visibilidade. Os pseudônimos escondiam na letra inicial a verdadeira identidade das autoras. O mais importante para elas era romper a barreira do isolamento e da crueldade a que foram submetidas desde crianças. E recusar o papel secundário e passivo que a sociedade burguesa do século XIX atribuía à mulher. Apesar das adversidades, escreveram o Morro dos ventos uivantes e Jane Eyre, obras marcantes da literatura inglesado no mesmo século.

Em 1832, George Sand , romancista francesa, considerada uma das precursoras do feminismo, vestia-se com roupas masculinas e tinha o costume de fumar em público num tempo em que isso era inaceitável para uma mulher. Usava um pseudônimo masculino, para ser aceita no meio literário e foi a primeira mulher a viver de direitos literários. Seu romance Indiana, primeiro livro de grande sucesso, refletia  seus próprios desejos e frustrações, defendendo o direito da mulher de ter um amor sincero e dirigir sua própria vida.

Em 1861, em São Petersburgo, berço dos grandes nomes da literatura russa, nascia Lou Andreas-Salomé, uma bela mulher que escandalizou a sociedade e quebrou regras morais. Escritora, poeta e psicanalista escreveu o livro A humanidade da mulher.,que fala abertamente sobre erotismo além de seu caráter reprodutivo. Despertou paixões em Freud, Nietzsche, Rainer Marie Rilke mas se manteve fiel à sua personalidade. Contaminada sim pelos grandes gênios, mas sempre buscando sua singularidade. Junto com Nietzsche e Paul Reé fundou uma comunidade que exaltava os múltiplos relacionamentos.

Nos Estados Unidos em 1892, a escritora Djuna Barnes também tentava sobreviver a outros abusos. Seu pai, um artista frustrado, a  submeteu  a uma relação sexual forçada aos 16 anos com um vizinho, pois acreditava que já estava na hora de ela conhecer o sexo. Djuna nunca perdoou o pai pela agressão, nem os irmãos, pelas constantes tentativas de abusarem sexualmente dela.

Ao mudar para Paris, realizava saraus com outras poetas e escrevia sobre suas noitadas lésbicas e intelectuais, sem dar nenhuma importância para o que a sociedade pensava. Ela criava sua própria sociedade. Sua escrita é marcada pelo humor negro e ironia. Seu romance No bosque da noite é baseado em sua relação com a artista Thelma Wood, um livro misterioso e sombrio como uma bruxaria. Seu livro Almanaque das senhoras  é considerado um clássico da literatura lésbica, se é que pode se considerar que exista literatura de gênero. O que existe é literatura com personagens femininas fortes. Beirando os 50 anos, Djuna decidiu escrever seu último livro The antiphon, um retrato pervertido da família. Essa foi a forma encontrada para expurgar os abusos  do pai e dos irmãos.

No Brasil, em 1960, Carolina de Jesus, pobre, negra e favelada publica Quarto de despejo. A tiragem inicial de dez mil exemplares se esgotou em uma semana. Escrito em linguagem simples, foi traduzido para treze idiomas e tornou-se best-seller. Mas não foi somente fama e publicidade que Carolina ganhou com a publicação de seu diário, mas desprezo e hostilidade dos vizinhos. “Você escreveu coisas ruins sobre mim, você fez pior do que eu fiz”, gritou um vizinho bêbado. Chamavam-na de prostituta negra, que tinha se tornado rica por escrever sobre a favela, mas recusou-se a compartilhar do dinheiro. Junto com as palavras dos vizinhos cruéis, as pessoas jogavam pedras e penicos cheios nela e em seus filhos.

Nessa mesma época, a escritora Hilda Hilst abandona uma vida de diversões e glamour para concentrar-se na escrita, em uma chácara no interior de São Paulo. Nesse lugar absolutamente místico e inspirador, pesquisou, escreveu, invocou espíritos. Sempre ousada, sobre ela diz o escultor Dante Casarini: “quando conheci a Hilda, estava em férias em São Paulo, e justamente estava caminhando na Rua Augusta, numa certa tarde, quando ela me viu da vitrine de uma loja de calçados e me fez um sinal. Achei incrível, porque o sinal era bem insinuante e me aproximei – ela era lindíssima. Ela então me convidou para jantar em sua casa. Conversamos um pouco e ela pediu meu endereço. A noite estacionou o maior Mercedes em casa, com o chofer dela para me buscar, e foi aquele jantar maravilhoso e aí começou aquela paixão entre nós…. “

Clarice Lispector, a mulher de um diplomata brasileiro, bela e misteriosa, se aproveitou da possibilidade de viver às custas do marido para escrever e escrever muito. Depois de separada, teve que trabalhar para sustentar dois filhos e tornou-se cronista de sucesso.

E assim tantas outras. A casa é essencialmente o refúgio do escritor. O lar, seu templo criativo. Para as mulheres que conseguiram transcender os limites das quatro paredes, um pouco de dinheiro, imaginação e a disciplina conquistam o mundo.

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Viviane Ka é escritora, roteirista de cinema e diretora da São Paulo Review

 

 

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