* Por Joseph Zhuravlev *

Em fins de abril de 1986, foram registrados níveis anormais de radiação na Polônia, na Alemanha, Áustria, Suíça e no norte da Itália; no começo de maio do mesmo ano, na França, Bélgica, Países Baixos, Grã-Bretanha, até no Kuwait e na Turquia.

As substâncias gasosas que ninguém sabia de onde vinham, dispersaram-se pelo globo e ainda foram registradas no Japão; China e Índia; atravessando o Oceano Atlântico.

O então líder da União Soviética, Mikhail Sergueievitch Gorbachev, chegou a ir a TV para dizer que houvera uma explosão no quarto reator da usina de Tchernóbil, na Ucrânia. Mas, conforme meus parentes e amigos que se lembram do fato, o líder disse que fora apenas uma explosão, sem contaminação nuclear, embora o mundo todo já pudesse medir níveis de radiação fora do comum.

A instalação se chamava ironicamente “Abrigo”, continua guardando nas suas entranhas de chumbo e concreto armado cerca de duzentas toneladas de material nuclear. Parte do combustível se misturou ao grafite e ao concreto. O que ocorre atualmente com esse material, ninguém sabe.

Antes de Tchernóbil, havia 82 casos de doenças oncológicas para cada 100 mil habitantes locais. Hoje, a estatística indica que há 6 mil doentes para os mesmos 100 mil habitantes. Os casos multiplicaram-se quase 74 vezes. A mortalidade nos últimos dez anos cresceu em 23,5%.

De cada catorze pessoas, em geral ainda aptas a trabalhar, entre 46 e 50 anos, apenas uma morre de velhice. Nas regiões mais contaminadas, as inspeções médicas indicaram que de cada dez pessoas, sete estão doentes. Ao visitar a zona rural, você se assusta com o espaço ocupado por cemitérios.

Conforme a escritora Svetlana Alexievich, Prêmio Nobel de Literatura 2015, até hoje muitas cifras são desconhecidas. “São mantidas em segredo, de tão monstruosas que são! A União Soviética da catástrofe convocou 800 mil soldados em serviço de urgência. A média de idade era de 33 anos. Os mais jovens saíram da escola diretamente para o serviço. Só na lista de liquidadores da Belarús contam-se 115 493 pessoas. Segundo dados do Ministério da Saúde, de 1990 a 2003 morreram 8553 liquidadores. Duas pessoas por dia”, diz a escritora em seu livro Vozes de Tchernóbil, traduzido no Brasil e lançado há alguns dias pela editora Companhia das Letras.

Através de uma junção de entrevistas com moradores locais, o livro conta como, em poucos dias, a cidade de Prípiat, fundada em 1970, foi evacuada. Pessoas, animais e plantas, expostos à radiação liberada pelo vazamento da usina, padeceram imediatamente ou nas semanas seguintes. O governo contratou caçadores para exterminar animais locais, os selvagens e os domésticos. As pessoas que receberam radioatividade são evitadas até hoje, nas escolas, em hospitais, em locais públicos. Como há muita desinformação em torno da catástrofe, muitos acham que o materiasl radioativo passa pela saliva, espirros, aperto de mãos.

O livro traz entrevistas com soldados, que contam como o governo se esquivou da verdade, expondo trabalhadores, cientistas e voluntários, durante os serviços de reparo na usina. A morte chegava em poucos dias.

É por meio das múltiplas vozes – de viúvas, trabalhadores afetados, cientistas, gente do povo – que Svetlana Aleksiévitch constrói sua obra, um testemunho de uma tragédia sem igual, que até hoje deixa rastros.

Segue abaixo umj trecho da obra:

Monólogo sobre para que as pessoas recordam

Eu também tenho uma pergunta. Uma pergunta a que não posso responder…

Mas você se propôs a escrever sobre isso. Sobre isso, não? Mas eu não queria que soubessem isso de mim. Que eu vivi ali… Por um lado, sinto o desejo de me abrir, de desabafar, mas por outro, é como se eu me desnudasse, e eu não gostaria de fazer isso…

Você se lembra de Tolstói? Depois da guerra, Pierre Bezúkhov* está tão abalado que sente como se ele e o mundo tivessem mudado para sempre. Mas depois de algum tempo ele percebe que voltou a ralhar com o cocheiro e a resmungar. Então, para que as pessoas recordam? Para restabelecer a verdade? A justiça? Para se libertar e esquecer? Ou porque compreendem que participaram de um evento grandioso? Porque buscam no passado alguma proteção? E, além disso, a recordação é uma coisa frágil, efêmera, não é um conhecimento exato, é uma suposição do homem sobre si mesmo. Isso ainda não é conhecimento, é apenas sentimento.

O que eu sinto…

Eu me torturei e me revirei na memória, lembrei…

O que eu vivi de mais terrível aconteceu na infância. Foi a guerra…

Eu me lembro de como nós, uns garotos, brincávamos de “papai e mamãe”, despíamos os pequenininhos e os amontoávamos uns sobre os outros. Eram as primeiras crianças que nasciam depois da guerra. Toda a aldeia sabia quais as palavras que eles já falavam, quando tinham começado a andar, pois durante a guerra as crianças foram esquecidas. Nós esperávamos o surgimento da vida. A nossa brincadeira se chamava “papai e mamãe”. Queríamos ver o surgimento da vida. E tínhamos apenas oito, dez anos.

Vi como uma mulher se suicidou. Nos arbustos perto do rio. Pegou um tijolo e bateu na própria cabeça. Estava grávida de um policial que a aldeia inteira odiava. Embora eu ainda fosse uma criança, já tinha visto como os gatinhos nasciam; tinha ajudado a minha mãe a tirar um bezerrinho do ventre da vaca, tinha levado a nossa porca para acasalar. Lembro… Lembro quando trouxeram o meu pai morto, ele usava um suéter feito pela minha mãe; parece que meu pai foi fuzilado por uma metralhadora ou um fuzil automático, e pedaços de alguma coisa ensanguentada saíam do suéter. Ele jazia na nossa única cama, não havia outro lugar para deixá-lo. Depois o enterramos perto de casa. E a terra não foi leve, era barro duro. Debaixo dos canteiros da horta. À nossa volta, prosseguiam os combates. A rua estava coberta de pessoas e cavalos mortos.

Para mim, são lembranças tão difíceis que não falo delas em voz alta.

Então, passei a entender a morte e o nascimento como a mesma coisa. Tive o mesmo sentimento quando o bezerro saiu de dentro da vaca. Quando nasceram os gatinhos. E quando a mulher se suicidou nos arbustos.

Por alguma razão, tudo isso me parecia ser a mesma coisa. Nascimento e morte. Recordo desde a infância o cheiro da nossa casa quando sacrificavam um javali. Basta você tocar nesse ponto para que eu caia, desmorone. Nesse pesadelo… Nesse horror… A minha cabeça viaja…

Lembro como as mulheres nos levavam, crianças, com elas para o banho. E todas as mulheres, inclusive a minha mãe, tinham o ventre caído (isso nós já entendíamos), e elas o amarravam com panos. Eu vi isso. O ventre caído se devia ao trabalho pesado. Não havia homens, estavam todos mortos no front, partisans, também não havia cavalos, as mulheres puxavam os arados com a própria força. Lavravam as suas hortas e os campos dos colcozes. Depois que eu cresci e passei a me relacionar com uma mulher, isso me veio à memória… O que vi no banho…

Queria esquecer. Esquecer tudo… Esquecer… Eu pensava que o acontecimento mais terrível da minha vida já tinha passado. A guerra. Que já estava protegido, já estava a salvo. A salvo graças ao que sabia, ao que tinha vivido. Mas…

Fui à zona de Tchernóbil. Já estive lá muitas vezes. E lá eu entendi que era impotente. Que não compreendo. E esse sentimento de impotência está me destruindo. Porque não reconheço este mundo. Tudo nele mudou. Até o mal é outro. O passado já não me protege. Não me tranquiliza. Não dá respostas. Antes sempre dava, agora não mais. O futuro me arruína, não o passado. (Pensativo.)

Para que as pessoas re

cordam? É a minha pergunta. Mas eu falei com você, pronunciei algumas palavras. E compreendi alguma coisa… Agora não me sinto tão sozinho. Mas o que acontece com os outros?

(Piotr S., psicólogo)

***

Enquanto chega no Brasil o livro de Svetlana Aleksiévitch, a Ucrânia e a Belarús recebem uma artista brasileira que fez uma obra em homenagem às vítimas da catástrofe do Leste Europeu.

A artista é Simone Mattar e o trabalho se chama “Nuvem negra”, algo parecido com uma árvore (ou uma bomba atômica), de mais ou menos três metros de altura, totalmente feita de algodão doce cinza comestível. A obra está sendo apresentada no museu Arsenal, em Kiev, capital da Ucrânia, a partir de hoje.

A mostra faz parte da exposição “Clouded Lands – Tchernóbil 30 anos” e fica em cartaz até 9 de maio. Ao lado de Mattar, artistas russos, espanhóis, peruanos, colombianos e ingleses, todos participantes do coletivo “Food of War”, que é multidisciplinar e se dedica a explorar a relação entre a comida e a guerra por meio da arte, mostram a sua visão de Tchernóbil.

“O desastre de Tchernóbil aconteceu durante a guerra fria e deixou toda a Europa em alerta sobre o que era seguro para comer e beber. ‘Food of War’ considera de grande relevância as consequências desse incidente na mesa de diversos países Europeus por onde a nuvem radioativa passou ou teria passado”, diz a artista.

“Não estamos interessados em especular as causas do acidente, mas em explorar como ele afetou o continente em termos do consumo de comida”, diz Omar Castañeda, artista colombiano situado a Londres, que criou o coletivo.

Como uma reflexão sobre os 30 anos do desastre, “Food of War” desenvolveu uma exposição itinerante que segue a trilha da nuvem radioativa por alguns dos países da ex-União Soviética e Europa. Após Kiev, a mostra segue para Minsk, na Bielorrússia e depois vai para Londres, em 2017.

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Joseph Zhuravlev é ucraniano e estuda Letras no Brasil

 

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