Por Carol Bensimon *

Não vou ser a primeira a dizer que um dos problemas do Brasil — puxa, difícil escolher um, vá lá — vem a ser o fato de que qualquer discussão complexa, urgente e com potencial transformador se vê de repente rotulada como disputa ideológica. O passo seguinte é a simplificação e o esvaziamento do conteúdo original. Isso ficou mais do que provado com o “polêmico” (sério?) tema da redação do (último) Enem. A cada vez que alguém acredita com toda a convicção que um tema como a violência contra a mulher deveria ficar restrito às cartilhas dos partidos de esquerda ou às reuniões de grupos feministas, morremos um pouquinho mais como país.
Mas o caso nem precisa ser tão extremo para merecermos nossa carteirinha de Terceiro Mundo. Em um nível local, vejo que os debates que envolvem urbanismo ou ecologia são sempre desqualificados por pessoas que enxergam na defesa do patrimônio histórico ou de um punhado de árvores algum tipo de partidarismo tacanho. Não. Vocês entenderam tudo errado.
Estou lendo atualmente um livro recém publicado nos Estados Unidos, Places of the heart, do neurocientista Colin Ellard. Ellard escreve sobre natureza, cidades, locais de trabalho e casas partindo do ponto de vista científico. Ele quer mostrar como nossos corpos e nossos cérebros reagem a lugares: o que gostamos, o que não gostamos, o que causa medo, o que causa prazer, o que pode nos curar, etc. Para isso, vem fazendo experimentos em um laboratório de ponta da Universidade de Waterloo, no Canadá.
Pois não me surpreende que o livro de Ellard, cujo subtítulo é A psicogeografia da vida cotidiana, demonstre, entre outras coisas, que ambientes naturais nos fazem bem em muitos sentidos. Pessoas internadas em um quarto de hospital com uma vista para árvores se recuperam mais rápido que pessoas que só podem ver pela janela tijolos e cimento. Bairros arborizados tendem a possuir taxas menores de crime e vandalismo do que bairros menos arborizados. A presença da natureza em ambientes urbanos também pode atuar como um “remédio” para certas patologias mentais.
Colin Ellard não é petralha. Collin Ellard não é ecochato. Ele é um neurocientista com provas suficientes para estar dizendo o que diz. Ele conecta pessoas a fios, mede reações, conduz entrevistas, caminhadas pela cidade, usa realidade virtual em seu laboratório.
Não é à toa que uma análise sobre o impacto de um grande empreendimento sem janelas — nesse caso, um supermercado — está no capítulo intitulado “lugares chatos”. Em um estudo conduzido pelo neurocientista, os voluntários simplesmente descreviam o entorno com os piores adjetivos. Era monótono, entediante, frio. Ninguém queria andar ao lado de uma parede infinita. A uma quadra dali, porém, havia uma região cheia de bares, restaurantes, pequenas propriedades. O humor dos voluntários mudava completamente quando eles chegavam lá. Eles se sentiam mais animados, mais a fim de conversar.
Quando questões humanas — que têm a ver com bem-estar, segurança, dignidade, identidade — são desqualificadas ou distorcidas até virarem uma batalha ideológica bizarramente infantil, o futuro que nos aguarda é um viaduto na beira do Guaíba, não sei quantas árvores a menos e uma classe política pisando nos nossos direitos mais elementares. Ops.

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A crônica da escritora gaúcha integra o volume Uma estranha na cidade (editora Dublinense, 138 págs.)

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