É com tristeza que a São Paulo Review continua a série colaborativa, entre mais de 30 escritores nacionais bastante conhecidos do público, com homenagens às crianças assassinadas em tiroteios nas comunidades cariocas.

Cada autor escreve sobre uma das crianças vítimas da barbárie.

Asseguramos a qualidade do teor literário dos trabalhos e assim gritamos bem alto com a arma que nos cabe, a da palavra, contra a violência a que estamos vivendo.

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* Por Gil Veloso *

                                                                        para ler ao som de sirenes ou fogos de artifício

era uma vez um menino quase doze anos de idade não o melhor nos jogos com bola tampouco na escola apenas uma criança como as demais da comunidade pobre carente sua mãe deixava toda manhã sua irmãzinha aos cuidados da avó para trabalhar ele a trazia de volta pra casa todas as tardes após estudar ia com seu boné vermelho presente do pai havia muito tempo ausente dele quase nada lembrava a avó morava afastada carecia atravessar labirintos ruas vielas quebradas da favela onde nasceu e crescia conhecido de todos talvez de lá nunca saísse quem dera viajar ver coisas distantes cantar dançar abre alas tamo passando orgulho preto manas e manos escrever desenhar sonhava ladeando muros grafitados deixa eu fazer minha arte deixa eu fazer minha parte paredes pichadas seja marginal seja herói trocando ideias camaradas com os moleques soltando pipas leia o livro que lhe emprestei lembrou um dos professores da escola olá para o dono do bar onde vira seu pai pela última vez o pastor da igreja que sua mãe frequentava com ele brincou vai chapeuzinho vermelho visitar a vovozinha cuidado com o lobo mau escondido na floresta chapeuzinho é a vovozinha aprendeu a rebater rindo acostumado coma ladainha de sempre sabendo não haver lobo nem floresta sequer uma árvore ou praça apenas cães gatos ratos convivendo dentro de certa harmonia conforme possível sem ilusões tudo impraticável nada reverdecia nada continua ninguém é cidadão todos cientes dos caçadores armados sorrateiramente surgindo no rastro dos lobos sabidos de todos chapeuzinho não temia as feras eram domesticadas a seus olhos e ouvidos bastando um olá tudo certo beleza bom dia chapeuzinho cumprimentava igualmente caçadores que por acaso surgiam tudo certo firmeza bom dia que eles tão de farda pra atacar não pra proteger seguindo contente a caminho do abraço da avó das janelas e lajes saíam vozes clementinas artilharia de versos irados gestos indigestos indignadas coreografias não sou o último muito menos o primeiro a lei da selva é uma merda e você é o herdeiro cantava vestido com as armas de jorge repetia distraído na área de repente tomada por dezenas de caçadores rastejando feito lagartos invadindo disparando gritos estampidos zoeira alcateia uivos latidos chapeuzinho procurava uma árvore um carro uma porta um canto enquanto corria cambaleando atingido por dor que não conhecia nem permitia grito ou pedido apenas um ponto vermelho um risco vermelho um rastro vermelho uma sombra vermelha

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Gil Veloso é escritor, autor de Fábulas farsas, entre outros livros

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