É com tristeza que a São Paulo Review continua a série colaborativa, entre mais de 30 escritores nacionais bastante conhecidos do público, com homenagens às crianças assassinadas em tiroteios nas comunidades cariocas.

Cada autor escreve sobre uma das crianças vítimas da barbárie.

Asseguramos a qualidade do teor literário dos trabalhos e assim gritamos bem alto com a arma que nos cabe, a da palavra, contra a violência a que estamos vivendo.

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 * Por Mário Araújo *

Certo estava o poeta que dizia que quem mora no morro já vive pertinho do céu. Daqui pra lá é um pulo. Mas agora o céu ficou perto do chão também, do nível do mar, ficou perto de qualquer lugar onde tenha gente pobre. Já disse o padre que o céu é dos pobres, e por isso é pra lá que foi a menina, essa das fotografias aí no jornal. Numa foto, está com uma das mãos na cintura, a cabeça inclinada, pairando sobre o ombro, pose de toda menina pobre que diz que quer ser modelo. Noutra, aparece de lábios inflados, esticados tentando alcançar a lente da câmera com seu beijo. É triste. Mas mais triste ainda é saber que não haverá outras depois dessas. Simplesmente porque essa menina, ela não é ninguém. Seu único momento de ser alguém coincidiu com o momento em que ela deixou de ser. Você vê, comparam as cidades brasileiras com as cidades sírias assoladas pela guerra civil. As pessoas gostam de efeitos dramáticos. É porque a guerra síria é a guerra do momento. Amanhã vão comparar nossas cidades ao conflito do Sudão, que vai muito bem, obrigado, mas do qual se fala pouco, pois a guerra da Síria ocupa quase todo o espaço destinado às guerras. Quando terminam de falar da Síria, na TV, é hora de falar do tempo, dos engarrafamentos e da ursa polar do zoológico de Miami que deu à luz dois ursinhos. E nunca chega a vez do Sudão. Mas quando todas essas guerras tiverem acabado, a do Brasil continuará. Quando o país é pequeno, existe a possibilidade da emigração. Você dá dois passos e já cruzou a fronteira. Mas o Brasil é muito grande. Fugir daqui pra onde? Quando você sai na rua, enfrenta um pelotão de fuzilamento invisível. O ar está cheio de balas enlouquecidas que abusam dos nossos corpos. Atravessam-nos ou se alojam neles. Balas perdidas que se perderam de propósito e executam um trabalho que a polícia não quer mais executar, pois daria muito na vista, embora às vezes o faça, sem dar bola pra isso de dar na vista, com as próprias mãos, torturando e seviciando como nos velhos tempos. É assim este nosso país: nem mesmo as regras ilícitas são observadas todo o tempo. O que se ouve dizer, diante do caixão da menina morta, é que a vida tem que continuar. Vida que segue, tentam remediar os que estão a uma distância segura do precipício. Mas aqui temos uma situação em que a vida não pode mais seguir. E não se trata dos mortos, mas dos ainda vivos, ou quase. E assim, andando pela rua com a cabeça cheia de estatísticas, um homem qualquer imagina por quantas vidas descontinuadas ele passará, em quantos órfãos e enlutados ele esbarrará de uma esquina a outra do seu caminho. São mutilados de guerra. E se por acaso é verdade que a vida segue em qualquer circunstância, deve ser como quando, depois de uma freada brusca, a simples e natural inércia do movimento nos faz seguir. E nada mais.

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Mário Araújo é escritor, autor de A hora extrema e Restos

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