* Por Daniel Manzoni-de-Almeida *

É importante fazer uma demarcação inicial. Eu escrevi esse texto na semana que se comemora o dia das mães. Isso é relevante porque vou tratar sobre uma categoria, que está esfarelando no mundo da atualidade, que é a memória. Categoria essa feita dos afetos, dos cheiros, do paladar e das imagens que nos abraçam calorosamente a todo instante. Nada como uma data assim para pensar sobre essa categoria, afinal, a mãe sempre é nossa melhor casa de memórias. Então, peço permissão para começar resgatando nas minhas, a mais remota da minha vida, aos 4 anos, que me leva a lembrança da minha mãe e da minha tia, as duas mulheres mais importantes da minha vida, na cozinha de casa fazendo comida, alegres, cantando e ao fundo a música “sonho meu” que vinha do LP na voz de Maria Bethânia e Gal Costa. É interessante como minha primeira memória me leva à cozinha de casa quando se preparava a comida e eu consigo lembrar de todas as sensações que ali senti e hoje perceber a rede de afetos que ali estava. Elas cozinhavam para mim, elas mostravam amor por mim pela comida. A minha memória com comida está ligada a esse sentimento. Talvez como escritor eu tenha uma ferida que não vai fechar que foi não ter tido tempo de registrar outra memória importante que foram as receitas da minha avó materna. Uma dona de casa que cozinhava para nós e unia a família toda aos domingos. Era o poder dela no mundo e que se foi quando ela partiu. Não há nenhum registro físico das suas receitas, apenas quando a família se reúne e lembra dos temperados e dos pratos que ela cozinhava. Interessante notar é a reunião de memórias que se formam quando nos juntamos e começamos a falar da culinária da minha avó. Todas as vezes que a família se reúne, lembrar dos pratos, do cheiro da cozinha, das habilidades que ela tinha com os ingredientes é a primeira forma de traze-la de volta à vida ali conosco. A memória tem esse poder. Enfim, todo esse preâmbulo é para lançar as perguntas: de que tudo isso importa? Por que lembrar disso tudo? O que a memória de um outro me traz de importante? Vou responder de supetão e vejam se concordam: memória é resistência.

Nos dias atuais quando falamos de memórias vem a torcida de nariz de que em coisas do passado não se mexem ou apenas quem trabalha com História que está preocupado com isso. Lidar com memórias de alguém especifico para que, então? Que importância tem que a avó de alguém desconhecido? Os relatos de um fulano que viajou para não sei que lugar acrescenta? Que narcisismo é esse em falar das suas próprias lembranças? Quem é beltrano na fila do pão? Parece esquisito mesmo, mas vamos pensar de um outro lado das coisas. O erro está aí quando elegemos apenas algumas pessoas como dignas de deixarem registradas suas histórias. Ou quando ao elegermos alguns, legítimos de serem ouvidos, e outros tantos são relegados ao silêncio transformando a existência de uns e outros em produtos mais ou menos valiosos. É o que a escritora Chimamanda Ngozi Adichie vai chamar atenção para “O perigo de uma história única” (2019) quando apenas algumas narrativas de indivíduos que tem o privilegio do poder são valorizadas. Em verdade todas as pessoas devem ser ouvidas. O falatório de todos faz uma sopa maravilhosa, pois a sociedade é composta por indivíduos diversos. Privilegiar um ou outro por seu destaque de cargo ou ações pode criar a cristalização de um padrão de individuo que não corresponde a diversidade daquela sociedade. Ou ainda: mascarar processos culturais importantes ou favorecer a apropriação cultural de grupos privilegiados em contraponto a outros grupos subalternizados. Registrar e publicar memórias, sejam de quem for, é um movimento importante de preservação de algo maior que é a memória coletiva. Cada experiência de um indivíduo deve ser considerada como válida e importante para pensarmos o todo no mundo. Memórias individuais são memórias de todos.

Eu não trouxe a memória pelo alimento de forma inocente. Quando falo de comida é para resgatar o movimento mais afetivo das nossas existências. Quem não viaja no tempo em uma primeira garfada? Talvez porque sou casado com um cozinheiro e fui curado por sua comida passei a dar ainda mais valor à mesa posta. O reunir, conversar, ter ideias, rir, compartilhar se faz ao redor de uma mesa. A desesperança que assola o Brasil nos últimos tempos atinge o máximo quando o preço dos alimentos está um absurdo, falta comida na mesa das pessoas ou parte do povo está na fila dos ossos para garantir o abaixo do mínimo necessário para sobrevivência. A desesperança tomou a base do sentimento mais afetivo humano que é a alimentação e o partilhar dela com que amamos. Essa queda livre vem na mesma esteira da queda paralela da leitura e do prazer de ler no país. Um país assolado pela desilusão da cultura literária e pelo desespero da falta do que comer. Juntar alimentação e literatura passa a ser um instrumento de resistência de afetos em um mundo de pouco gosto. Quem vai me ajudar a explicar melhor sobre é a obra do escritor Alexandre Staut.

Talvez tenha sido isso que mais me chama atenção no livro Paris-Brest (2016), de Alexandre Staut. Nesse livro, premiado, e publicado pela Companhia Editora Nacional, o escritor, cozinheiro, editor e artista plástico, apresenta suas memórias dos tempos que morou na região da Bretanha, próximo a cidade de Brest, na França (cidade ao qual eu vivo atualmente). A escolha por Staut para registrar suas memórias na Bretanha foi via gastronômica quando foi aprendendo e constituindo sua profissão de cozinheiro pelo tempo que morou no país. O autor nos conta que no início dos anos 2000, após passar uma temporada trabalhando em restaurantes na Inglaterra, recebeu o convite do amigo Yann Danjou, que estava montando um restaurante na pequena cidade de L’Aber Wrach, para morar na França e trabalha com ele no restaurante. Staut aceitou o convite e partiu para viver nessa desconhecida região francesa que foi descobrindo e apresentando para as pessoas leitoras de uma maneira extremamente sincera sem poupar as dificuldades, os desafios, ou se autocensurar no aprendizado da língua francesa, das dificuldades financeiras, culturais e pessoais que qualquer estrangeiro enfrentar ao decidir morar em outro país. Da mesma maneira, Staut é extremamente fiel ao clima que consegue captar e colocar no papel da região da Bretanha na França e do povo bretão, como por exemplo, a cordialidade e o espírito camponês típicos da região (para quem não conhece, a Bretanha é uma região pouco ensolarada da França e um pouco distante do glamour de Paris. Por outro lado, é uma das regiões mais verdes e com paisagens naturais do país). O cheiro da manteiga queimada nas cozinhas bretãs e o barulho do vento que vem do oceano pela cidade são fidedignos como contatos pelo autor. Há pontos de humor na narração que são imperdíveis como momentos escatológicos que são contados que a grande maioria dos restaurantes franceses são feitos sob a fossa de dejetos e que em determinado dia do verão bretão, quando houve um maior movimento no restaurante e maior acúmulo de dejetos, os clientes todos foram dispensados devido o vazamento da fossa em plena sala de serviço do restaurante. Coisas do país de Maria Antonieta que jamais fazem lógicas para nós. Por outro lado, há outros pontos interessantes em que Staut vai nos mostrando indiretamente como a culinária vai ganhando adaptações de acordo com o referencial da cultura de quem cozinha. São aqueles momentos do desafio, por exemplo, de preparar um menu brasileiro para convidados e que não haviam grandes opções de produtos tipicamente brasileiros para o preparado. O autor vai nos contando como foi encontrando ingredientes similares em lojas de produtos africanos e fazendo as adaptações para a confecção dos pratos. Esse é um ponto importante na proposta de Staut, pois nos mostra o quanto uma cultura culinária tem influência de outras culturas e como ele vai construindo as próprias receitas. Em outro ponto, não há como não sentir o afeto do narrador, quando narra a adaptação de fazer manteiga com flor de sal usando memórias da sua mãe. O livro de Staut é cravado de receitas como essas: que saltam do coração das lembranças.

Trazendo para o contexto da memória, o interessante em Brest-Paris é como cada receita aprendida e exposta ao longo dos capítulos pelo autor tem um significado afetivo. O autor utiliza uma estratégia narrativa interessante para falar das receitas no livro. Staut insere as receitas não por um contexto historiográfico e acadêmico da origem de cada prato, mas de como aquela receita chegou até ele e como faz parte da sua memória. Por exemplo, quando o autor conta como aprendeu suas primeiras palavras em língua francesa “ouef”, que significa “ovo”, para o preparado da maionese francesa e suas variações; ou pratos com frango em que o chefe do restaurante (que foi trabalhar durante uma temporada que o restaurante do amigo permaneceu fechado no inverno bretão)  o ajudava a aprender as diferenças entre pronunciação de singular e plural; ou ainda quando o chefe desenhava a figura de uma galinha em um pedaço de papel para ajuda-lo no entendimento do que estava em diálogo. Confesso que essa reunião de memórias publicadas por Staut me foram como bálsamo, pois como um morador de Brest me reconheci em muitas das situações. Essa é uma das camadas importantes do partilhar memórias, pois elas atingem outras pessoas e ajudam a construir tantas outras.

O autor ao se lançar na arte de cozinhar nos mostra com delicadeza como vai se constituindo, superando obstáculos pessoais, conquistando amizades, criando laços profissionais e afetivos a partir da comida. É pela comida que Staut, na sua época em terras napoleônicas, conseguia construir seus afetos. Ao registrar suas memórias traz a generosidade didática de deixar para qualquer futuro o quanto esses momentos de afeto foram importantes para uma vida e devem ser valorizados. Ao compartilhar conosco na publicação de um livro delicioso faz um movimento silencioso de intenção revolucionária do dividir afetos. Ler Paris-Brest não é apenas uma curiosidade de cultura gastronômica, mas o resgate do compartilhar memórias em um mundo completamente tomado pelo presente e de, antes de tudo, fome de afetos. A literatura de memórias gastronômicas de Alexandre Staut foi como uma reunião em uma mesa em que se partilha alimento, história e afetividade. Novamente, a memória tem esse poder.

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ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019

Staut, Alexandre. “Paris-Brest”. Companhia Editora Nacional, 2016

Na foto ilustrativa, o far breton, receita típica do local.

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Daniel Manzoni é escritor, pesquisador e doutor em teoria literária da Université Bretagne Occidental, Brest, França.  danielmanzoni@gmail.com

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