* Por Daniel Manzoni-de-Almeida *

Não é incomum no Brasil da atualidade nós termos experiências diárias de autoritarismo por parte do governo. Ora é a recusa deliberadamente consciente da compra de vacinas em plena pandemia da covid-19, por puro negacionismo e trambique como ficou claro nas investigações da CPI das vacinas em 2021, outra é o abuso do poder para emitir perdão aos condenados pelo supremo tribunal federal (STF) para anular, passar por cima e desqualificar autoridades e instituições legítimas. Há uma lista farta de ações autoritárias graves por parte do governo federal brasileiro desde 2018. É material para décadas de teses. De um outro lado, do mínimo de juízo democrático, há uma fadiga de quem defende a civilização e democracia de que qualquer ação contra os ataques autoritários seja completamente inocula, ou seja, nada acontece para barrar o autoritarismo. É a performance da desesperança. Um dos maiores ataques à democracia foi feito nas últimas semanas quando o presidente do Brasil Jair Bolsonaro concedeu perdão aos crimes cometidos contra a democracia brasileira pelo deputado Daniel da Silveira e tentou anular a condenação estipulada pelo STF. Cartas de repúdio foram escritas aos montes e nada acontece. Bolsonaro continua mandando e desmandando como um autocrata e seus apoiadores na população, os bolsonaristas, defendem o argumento levantando pelo próprio presidente da defesa da “liberdade de expressão”. Tudo muito natural. Aliás o que aconteceu com eficiência foi o carnaval no Brasil após dois anos de isolamento social devido a pandemia da covid-19. O autoritarismo claro do presidente da república chega à sociedade brasileira como uma pena desprendida de uma fantasia de carnaval voando suavemente e a população sambando e sorrindo. Para que se preocupar ou se desgastar se nada acontece? É uma pergunta comum entre nós. Que tipo de anestesia é essa que toma a sociedade brasileira? Não diria que seria uma anestesia, pois é a metáfora do medicamento que tomado tem seu efeito cessado em poucas horas e tudo pode voltar a normalidade. Não é o caso do país do carnaval desde 1500. O que há é uma característica, dolorosa de se defrontar, da intrínseca e orgânica da sociedade brasileira: o autoritarismo nosso de cada dia.

Em Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro (2013), a pensadora e professora brasileira de Filosofia Marilena de Souza Chauí (1941) reúne uma série de reflexões em que podemos resumir a ideia central da tese da professora que sempre colocamos apenas na conta do aparelho do Estado brasileiro o arroubo autoritário, quando em verdade, o que nos revela Chauí, de forma original, é que as relações na sociedade brasileira são autoritárias, hierarquizadas, oligárquicas, desiguais, que transformam todas as diferenças em desigualdades. Ou seja, o que a pensadora joga luz, é que o componente autoritário do poder do Estado brasileiro é reflexo dessa nossa estrutura de sociedade construída na base do clientelismo, do mandonismo, da exploração, da manutenção de desigualdades, do sexismo, do machismo, do racismo estrutural e da estrutura escravocrata que bateu longos trezentos anos no Brasil. Ora, para que então estranhar que o presidente possa conceder um favor a um amigo? Quem nunca presenciou um tapinha nas costas em uma negociata paralela para um cargo, uma verba, um acordão? Mais ainda, quem nunca no Brasil se beneficiou de alguma maneira de clientelismo? Afinal, o Brasil é a terra da máxima: “Você sabe com quem está falando?” desde a chegada da família real portuguesa em 1807 em que se dá bem é quem se cerca dos poderosos. A questão-Brasil sempre está localizada de que somos uma sociedade autoritária e violenta como denuncia Chauí. O nosso não estranhamento ao ponto de uma indignação maciça e efetiva na destituição da extrema direita do poder brasileiro reside na nossa incapacidade de nos espantar com o autoritarismo, pois ele nos é vascular que alimenta cada um de nós a todo momento. Todos nós nos beneficiamos desse autoritarismo. Sem ele a vida no Brasil é inviável e desmantelaria as elites orgânicas parasitárias seculares que nutrem essa sociedade com uma ideologia exploratória.

Olhar para esse nosso comportamento é fundamental para refletirmos, a partir de agora, os limites que isso pode ser permitido chegar por mais alguns mandatos. O pensamento e a imaginação ainda continuam sendo os caminhos mais promissores para saídas autoritárias. Cruel, de Diogo Locci, publicado pela Folha de Relva em 2021 (134 páginas) é um livro feliz no nome, pois revela essa nossa crueldade que ainda temos dificuldade de assumir no nosso cotidiano, ou seja, o autoritarismo brasileiro na microfísica das relações interpessoais que sustenta o autoritarismo de Estado. O livro de Locci é composto por dezoito contos em que o autor, por meio de alegorias e metáforas diversas, vai puxando as camadas que compõem essa estrutura autoritária brasileira. Cruel vai desvelando ao longo dos seus dezoito textos a pluralidade das facetas de relações cotidianas abusivas que estabelecemos.

Vamos a três exemplos da literatura de Locci (foto):

No conto “Três prazeres” é narrada a história de Joel. Um homem que mora em uma casa que funciona como pensionato. Ao chegar em um determinado dia é surpreendido pela casa sendo desmontada. O dono da residência havia morrido e um dos filhos herdeiros da casa decidiu imediatamente tomar posse do local colocando todos os moradores-hóspedes do pensionato na rua. Desesperado, a personagem tenta entender, junto aos trabalhadores da companhia de mudança e dos outros moradores atônitos ao fato, o que está acontecendo. Descobre que ali passará a ser um estabelecimento destinado aos prazeres da sexualidade e chamará “Os três prazeres”. O intrigante nesse conto é como podemos imediatamente interpretá-lo e fazer referência a uma faceta do autoritarismo bem comum no nosso real: os negócios de compra e venda de empresas e o comportamento do empresariado brasileiro. Quem nunca ouviu ou esteve presente em uma situação em que uma empresa é vendida e logo em seguida os novos donos chegam mudando toda a cultura de trabalho? Mais ainda: histórias e percursos profissionais começam a ser apagados, pessoas são desinstaladas ou demitidas em um piscar de olhos com uma ideologia de “modernização”? Aos que ficam resta a rápida adaptação à nova lógica e incorporar a ideologia do bem-estar da nova à maravilhosa cultura da empresa que chega. Esse movimento não difere muito de um processo violento de colonização e Locci dispõe personagens interessantes que estão ilustrados com precisão no texto. Quando, por exemplo, no diálogo entre Joel e os trabalhadores da empresa de mudança, o morador se recusa a sair da casa: “Pode chamar! Só saio daqui preso! Vocês não podem fazer isso com a gente!”, e o trabalhador responde: “Que gente, senhor? Não tem gente!” (p.56). E para um empresariado, incorporado à lógica neoliberal, gente não existe mesmo. O que há é número que pode ser substituído por outro rapidamente. Gente não existe, mas sim carvão para ser queimado para dar lucro, como nas palavras de Darcy Ribeiro em uma entrevista emblemática ao programa Roda Viva da TV cultura em 1988.

A crueldade do cotidiano fica ainda mais clara na análise de Locci no conto “Cruel” que leva o nome do livro. Nele é contada uma narrativa policial barata que pode ser vista em qualquer jornal de quinta categoria. Um jovem ao chegar na porta do prédio que mora é morto por um tiro durante um assalto. Presenciando a cena está um jornalista desempregado e sem escrúpulos que vê naquele evento a possibilidade de fazer uma reportagem e conseguir um dinheiro e destaque narrando o assassinato. Porém, o jornalista precisa dar um “jeitinho brasileiro” para que a história possa ficar interessante as pessoas leitoras ávida por uma tragédia. A partir de então, o jornalista começa a pensar em possibilidades de compor a reportagem para que consiga destaque. Vai desde vasculhar o corpo do jovem até em alterar a cena do crime. Tudo em função de buscar a melhor narrativa e impulsionar sua carreira e ter lucro. Não há escrúpulos, há apenas ambição e desejo de tirar vantagem. Outras personagens chegam em cena sempre em busca de conseguir aproveitar o acontecimento em benefício próprio expondo suas misérias humanas ali diante de um cadáver de um jovem brasileiro assassinado banalmente. E é sobre o valor de uma vida, talvez da juventude brasileira, que o conto “Cruel” fala: a banalidade de uma vida no Brasil. Quantos cadáveres como esse nós não presenciamos todos os dias Brasil afora? Quantas personagens absolutamente egoístas e sem empatia nos deparamos em que a vida do outro é apenas um meio ou objeto de projetar e tirar vantagem? A pilha de corpos em consequência da covid-19 a partir do ano de 2020 não foi mentira, mas já nos esquecemos em favor do amontoado de corpos para compensar a ausência de anos sem carnaval. Já nos esquecemos o acrescimento de 1 dólar por dose de vacina que o governo Bolsonaro tentava negociar com uma farmacêutica misteriosa enquanto a pilha de mortos por covid só aumentava. O corpo do jovem baleado no conto “Cruel” de Locci é o de milhares que perderam a vida na pandemia enquanto o governo era o jornalista que tentava tirar alguma vantagem. Cruel somos nós que naturalizamos isso no desespero por um “novo normal”. Autoritários somos nós todos os dias que reivindicamos o “novo normal” naturalizando o “velho normal”.

Em “A fábula dos enfezados” Locci escancara outra forma do autoritarismo do brasileiro: o mito do brasileiro solidário e generoso. Nesse conto, Diogo faz uma alegoria interessante. Conta a história de um grupo de jacarés inteligentes, com habilidades de comunicação e que dominam o mundo caçando seres humanos para alimentação. Entretanto, o grupo de jacarés não se entende muito bem. Não porque podem ser desorganizados, mas porque um não suporta o sucesso do outro e tentam o tempo todo sabotar, de forma animalesca, a conquista do outro. Se um jacaré caçou um humano maior que outro, o outro jacaré vai lá e sabota para impedir o sucesso do colega. Não há solidariedade, generosidade e senso de coletivo. Pelo contrário, entre os jacarés predomina o individualismo e a inveja entre si. A alegoria proposta por Diogo Locci nesse conto pode ser muito bem relacionada à metáfora da mentalidade do balde de caranguejos. Se recorre a essa imagem do balde de caranguejos para explicar aquele comportamento de sabotagem do grupo impedindo o sucesso do outro. Quando colocado dentro de um balde, os caranguejos vivos vão lutar para sair do balde. Um que esteja escalando a parede do recipiente e alcança uma determinada altura logo é puxado para baixo pelos outros e ninguém, por fim, consegue sair e ninguém vence. Não é uma imagem muito difícil de conseguirmos relacionar aos comportamentos cotidianos invejosos e autoritários que vemos na sociedade brasileira. “A fábula dos enfezados” fala desse nosso falso comportamento de generosidade e amoroso com o sucesso do próximo. O que vale é sempre a expressão “o meu pirão primeiro” que no conto de Locci é a perna ou o braço devorado de um humano primeiro por algum dos jacarés. Afinal, quem não viu os fura-filas nas filas das vacinas no início do processo de vacinação? Quem nunca viu um colega puxar o tapete na firma impedindo uma promoção do outro?

Há outros inúmeros exemplos literalizados brilhantemente em Cruel que valem ser lidos. O que Locci faz com seu livro é nos trazer pela mão por um passeio didático pelas mais diversas situações autoritárias que performamos cotidianamente. A obra nos faz debruçar em pensamento que a ascensão da extrema direita brasileira ao poder é a representação daquilo que convivemos todos os dias. Entretanto, se há desejo de uma esperança na queda desse governo do poder devemos passar pela profunda revisão antropológica dessas nossas formas de ser e estar. Mas, realmente, estamos preparados para essa mudança? Ou se tirarmos algo disso pode desmoronar toda a estrutura de fundação de uma nação? Estamos condenados ao autoritarismo? Quero acreditar que não somos, de fato, que não viramos os jacarés desejados pelo presidente que, como propõe Locci, devora uns aos outros e nada se constrói.

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Daniel Manzoni-de-Almeida é escritor, pesquisador e doutor em teoria literária da Université Bretagne Occidental, Brest, França.

Contato: danielmanzoni@gmail.com

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Referências bibliográficas

CHAUI, M. (2013), Escritos de Marilena Chauí. Volume 2: Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro. Autêntica

LOCCI, D (2021). Cruel. São Paulo: Folha de Relvas.

 

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