Por Sérgio Tavares *

Há um momento, ainda nas páginas alicerçadoras do clássico Moby Dick, de Herman Melville, que precede toda explosão de som e fúria que tragará o leitor. Aceso pelo fito de arpar baleias, o velho capitão Ahab transita de maneira turbulentosa pelas divisões do navio, emulando o sangue da caça nos nervos da tripulação, enquanto se prepara para a tempestade que avança.

“E estava Ahab tão imerso em seus pensamentos que, a cada volta regular que fazia, ora ao redor do mastro principal, ora ao redor da bitácula, quase que se podia ver aquele pensamento dando nele a volta enquanto ele voltava, e nele caminhando enquanto ele caminhava; dominando-o tão completamente que parecia, de fato, ser o molde interior de todo o movimento exterior.”

No mar, romance premiado do holandês Toine Heijmans, também ocupa um momento de tensão. Todavia, o que o prenuncia (bem como o que o sobrevém) são exercícios de descrição para que o leitor tenha ao menos a plasticidade de um cenário, numa trama de alicerces movediços. O tempo tem a mobilidade das ondas bravas, intermitentemente trazendo à tona e submergindo fatos que terão (ou não) explicação. Não se trata do que é dito, e sim da possibilidade de que isto tenha acontecido. Só o narrador sabe; a construção interior é o que irá moldar o mundo de fora.

O resgate do trecho do romance-mor de Melville não é gratuito. Ishmael, espectador-falante da saga de Ahab em busca da baleia branca, empresta nome ao barco com o qual Donald, o piloto da história, cruza o Mar do Norte durante três meses, na companhia apenas da voz mecânica do rádio VHF. Ele está despressurizando uma década e meia algemado a uma mesa de escritório, desligando-se de tudo num período sabático apoiado pelos colegas de trabalho e pela esposa Hagar, que o encoraja a velejar, “vai estar tudo tranquilo aqui enquanto você não estiver.”

Donald não é um navegador experiente, fica mareado por inseguranças – “Eu tinha lido livros, relatos de velejadores solitários que voltavam diferentes do que quando partiram. Alguns tinham enlouquecido” -, mas compensa suas debilidades com um comportamento metódico de respeito aos equipamentos e, sobretudo, ao mar. Tudo corre bem, ainda que lhe pique a vontade de ter a sua “família feliz na intimidade do barco”. De modo que, contra a culpa, resolve levar Maria, a filha de sete anos, para acompanhá-lo numa travessia final, de dois dias, da Dinamarca a Holanda.

“Quero ensinar algo para Maria. Quero ensiná-la que também se pode viver de outra forma. Que não é preciso ser uma marionete se a gente não quiser (…) Quero mostrar a ela que existe um outro mundo, com outras regras. Quero ensiná-la como é viver no mar”, defende o pai.

Hagar, a mãe, aceita a proposta – “Você quer fazer algo especial com a sua filha, então por que não diz logo? Claro que eu entendo isso” – e a dupla dá início à viagem que ocorre sem contratempos iniciais, ressignificando a vida em condutas náuticas, até a noite em que Donald, em meio a uma turbulência, desce ao camarote onde Maria dorme, mas a filha não está lá, desaparece misteriosamente.

A partir de então, vai se estabelecendo um clima de pesadelo, um certo desnorteio que põe sob suspeita as ações (e a firmeza psicológica) do narrador. Horas antes, Maria pulara do barco para sobrenadar águas fundas. Será que algo ocorreu? Donald não tem certeza. Começa a ficar cansado, confuso, pede ajuda pelo rádio mas não há contato. Tenta evitar o pânico, não consegue. Acata a impotência. “Eu contra mim mesmo e contra tudo mais.”

O sumiço de Maria é a queda da própria altura de um homem que, desde o começo de sua jornada, parece guardar segredos debaixo de camadas de normalidade, porém a instabilidade de seus pensamentos o trai. Heijmans, em sua escrita contagiante, vai soltando sinais sutis de que algo está fora do lugar; frases e comentários incidentais que, tal a tempestade que avança contra o louco Ahab, carregam sopros sinistros, uma incursão impelida por correntes marítimas que embaralham a realidade e fazem, desse movimento, um estudo ontológico.

Em No mar, a busca pela baleia branca ocorre nas profundezas do ser.

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No mar, de  Toine Heijmans [Cosas Naify, 160 págs.]

Avaliação: _pena-01 [bom]

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Sérgio Tavares é autor de Cavala e Queda da própria altura

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