‘Diário de inverno’… leia as páginas iniciais do livro

paul_auster

*

Em 1982, com A invenção da solidão, Paul Auster escreveu um ensaio pessoal sobre a paternidade. Era a sua estreia na prosa. Trinta anos depois, lança seu segundo livro de memórias, Diário de Inverno (Companhia das Letras, 216 págs.).

Se na primeira experiência o escritor se debruçou sobre a figura do pai, que havia acabado de morrer, agora destaca a mãe, que se divorciou do marido, tornando-se pária dentro da própria família. Em meio a lembranças dos jogos de beisebol, do primeiro relacionamento sério, fadado a dar errado, e do dia em que conheceu sua segunda mulher, Auster relembra a luta da mãe para criar os filhos sozinha, sua dedicação ao trabalho, o segundo e o terceiro casamentos, a dependência financeira na velhice e sua morte. Com sensibilidade e estilo claro, aborda o fascínio pela arte e pelo esporte, fala das mudanças de casa, das brigas, do amor pela família e pelos amigos, e principalmente do envelhecimento.

Leia, a seguir, as páginas iniciais, cedidas gentilmente pela editora Companhia das Letras:  

Você acha que nunca vai acontecer com você, que não pode acontecer com você, que você é a única pessoa no mundo com quem nenhuma dessas coisas jamais há de acontecer, e então, uma por uma, todas elas começam a acontecer com você, do mesmo modo como acontecem com todas as outras pessoas.

Seus pés descalços no assoalho frio quando você se levanta da cama e anda até a janela. Você tem seis anos de idade. Lá fora está nevando, e os galhos das árvores do quintal estão embranquecendo.

Fale agora antes que seja tarde demais, e torça para que você possa continuar falando até não haver mais nada a ser dito. O tempo está se esgotando, no final das contas. Talvez seja melhor deixar de lado as suas histórias por ora e tentar examinar a sensação de viver dentro deste corpo, desde o primeiro dia da sua vida do qual você se lembra até hoje. Um catálogo de dados sensoriais. O que poderia ser denominado fenomenologia da respiração.

Você tem dez anos de idade, e o ar de verão está quente, um calor opressivo, tão úmido e desconfortável que até mesmo agora, sentado à sombra das árvores do quintal, você sente o suor se formando na testa.

É um fato incontestável que você não é mais jovem. Dentro de um mês você vai completar sessenta e quatro anos de idade, e embora isso não seja uma velhice extrema, não seja o que as pessoas chamam de uma idade avançada, não há como não pensar em todas aquelas outras pessoas que não conseguiram chegar até onde você chegou. Este é um exemplo das diversas coisas que nunca poderiam acontecer, mas que na verdade aconteceram.

O vento no seu rosto na nevasca da semana passada. A terrível sensação cortante do frio, e você lá fora, nas ruas vazias, perguntando a si próprio o que o teria levado a sair de casa no meio de uma tempestade feroz, e no entanto, apesar de ter de se esforçar para manter o equilíbrio, havia uma sensação revigorante naquele vento, a alegria de ver aquelas ruas tão conhecidas transformadas num torvelinho de neve branca.

Prazeres físicos e dores físicas. Os prazeres do sexo acima de tudo, mas também os prazeres de comer e beber, de deitar‑se nu numa banheira de água quente, de coçar uma coceira, de espirrar e peidar, de ficar uma hora a mais na cama, de virar o rosto para o sol numa tarde amena de final de primavera ou início de verão e sentir o calor penetrando na pele. Exemplos incontáveis, não há um dia que tenha se passado sem um momento ou mais de um momento de prazer, e no entanto as dores são sem dúvida mais persistentes e intratáveis, e em uma ocasião ou outra quase todas as partes do seu corpo já sofreram algum ataque.

Olhos e ouvidos, cabeça e pescoço, ombros e costas, braços e pernas, garganta e estômago, tornozelos e pés, para não falar na bolha imensa que uma vez brotou na sua nádega esquerda, a qual o médico deu o nome de quisto, que aos seus ouvidos pareceu o nome de uma doença medieval, e que o impediu de se sentar em cadeiras por uma semana.

A proximidade de seu pequeno corpo em relação ao chão, o corpo que lhe pertencia quando você tinha três, quatro anos, isto é, a distância curta entre seus pés e a cabeça, e como as coisas a que você agora não dá mais atenção atraíam seu interesse constantemente naquele tempo: o mundo minúsculo das formigas e moedas perdidas, dos galhos caídos e chapinhas de garrafas amassadas, dos dentes‑de‑leão e trevos. Mas especialmente as formigas. É delas que você se lembra melhor. Exércitos de formigas a entrar e sair de morros de terra.

Você tem cinco anos de idade, está de cócoras junto a um formigueiro no quintal, examinando com atenção as idas e vindas de suas amiguinhas de seis patas. Sem que você o veja nem o ouça, o seu vizinho de três anos se coloca atrás de você e acerta a sua cabeça com um ancinho de brinquedo. Os dentes do ancinho ferem seu couro cabeludo, o sangue escorre por entre seus cabelos e desce a sua nuca, você volta para casa correndo aos gritos, e a sua avó cuida das suas feridas.

Palavras da sua avó para sua mãe: “O seu pai seria um homem maravilhoso — se fosse diferente.”

Hoje de manhã, ao acordar em mais uma escura madrugada de janeiro, uma luminosidade cinzenta e esbatida penetrando o quarto, lá está o rosto da sua mulher virado para o seu, os olhos ainda fechados, ainda imersa no sono, as cobertas puxadas até a altura do pescoço, sendo a cabeça a única parte de seu corpo que está visível, e você se admira ao ver como está bela, como parece jovem, mesmo agora, trinta anos depois da primeira vez que você dormiu com ela, depois de trinta anos vivendo juntos sob o mesmo teto e dormindo na mesma cama.

Hoje continua nevando, e ao se levantar da cama e ir até a janela você vê que os galhos das árvores do jardim dos fundos estão embranquecendo. Você tem sessenta e três anos. Você se dá conta de que quase não houve nenhum momento durante a longa jornada da infância até agora em que você não estivesse apaixonado. Trinta anos de casado, sim, mas nos trinta anos anteriores, quantas paixonites e flertes, quantos ardores e conquistas, quantos delírios e surtos enlouquecidos de desejo? Desde os primórdios da sua vida consciente, você é um escravo voluntário de Eros. As meninas que amou quando menino, as mulheres que amou como homem, uma diferente da outra, umas gorduchas e outras esguias, umas baixas e outras altas, umas livrescas e outras atléticas, umas melancólicas e outras sociáveis, umas brancas, outras negras e outras asiáticas, nenhum detalhe de superfície jamais fez diferença para você, só contava a luz interior que você percebesse nela, a faísca de singularidade, a chama de identidade revelada, e aquela luz fazia com que ela lhe parecesse bela, mesmo que os outros fossem cegos para a beleza que você via, e então você ardia para estar com ela, para estar perto dela, pois a beleza feminina é algo a que você jamais pôde resistir. Desde os primeiros dias na escola, no jardim de infância em que você se apaixonou por aquela menina com um rabo de cavalo louro comprido, e quantas vezes você não foi castigado pela srta. Sandquist por ter escapulido com a menininha que era a sua paixão do momento, os dois sendo encontrados juntos em algum canto fazendo travessuras, mas esses castigos não tinham importância, pois você estava apaixonado, e você já era refém da paixão nesse tempo, tal como continua a ser refém da paixão ainda hoje.

O levantamento das suas cicatrizes, em particular as do seu rosto, que você vê todas as manhãs quando se olha no espelho do banheiro para fazer a barba ou pentear o cabelo. Você raramente pensa nelas, mas sempre que o faz, compreende que elas são marcas da vida, que aquelas linhas irregulares traçadas na pele do seu rosto são letras do alfabeto secreto que conta a história de quem você é, pois cada cicatriz é o vestígio de um choque inesperado com o mundo — ou seja, um acidente, ou alguma coisa que não precisava ter acontecido, já que por definição um acidente é algo que não precisa acontecer. Fatos contingentes em oposição a fatos necessários, e a consciência, enquanto você se olha no espelho nesta manhã, de que toda a vida é contingente, tirando o único fato necessário de que, mais cedo ou mais tarde, ela chegará ao fim.

Você tem três anos e meio, e a sua mãe, aos vinte e cinco anos, grávida, levou‑o com ela para fazer compras numa loja de departamentos no centro de Newark. Ela está acompanhada por uma amiga, mãe de um menino que também tem três anos e meio. A certa altura, você e seu amiguinho se separam das mães e começam a correr pela loja. É um espaço aberto imenso, sem dúvida o maior aposento em que você já pôs os pés, e é uma sensação e tanto poder correr como um louco por essa gigantesca arena fechada. Por fim, você e o outro menino caem de barriga no chão e começam a deslizar pela superfície lisa, como se andassem de trenó sem trenó, e a brincadeira é tão deliciosa, proporcionando um prazer tão extático, que você se torna cada vez mais afoito, cada vez mais ousado no que está disposto a tentar. Você chega a um trecho da loja que está em construção ou em reforma, e sem se dar ao trabalho de ver que ali pode haver obstáculos, joga‑se de barriga no chão de novo e sai deslizando pela superfície lisa como vidro até se dar conta de que está seguindo diretamente a uma bancada de carpinteiro de madeira. Com um pequeno movimento de seu corpinho, você acha que pode evitar o choque com a perna da mesa que se aproxima rapidamente, mas não se dá conta, naquela fração de segundo em que é necessário mudar o rumo, que há um prego saindo da perna da mesa, um prego comprido, tão baixo que está à altura do seu rosto, e antes que você tenha tempo de se deter a sua face esquerda é perfurada pelo prego quando você passa por ele a toda a velocidade. Metade do seu rosto é rasgada. Sessenta anos depois, você não se lembra mais do acidente. Lembra‑se da correria e da brincadeira de deslizar no chão, mas não se lembra da dor, não se lembra do sangue, não se lembra de ser levado às pressas para o hospital, nem do médico que costurou o seu rosto. Ele fez um serviço excelente, sua mãe sempre dizia, e como jamais se recuperou do trauma de ver seu primogênito com meio rosto rasgado, ela dizia isso repetidamente: algo a ver com um método sutil de sutura dupla que minimizou o dano e impediu que você ficasse desfigurado para o resto da vida. Você poderia ter perdido o olho, ela lhe dizia — ou, num tom ainda mais dramático, podia ter morrido. Sem dúvida ela tinha razão. A cicatriz foi ficando mais e mais fraca com o passar dos anos, mas continua ali, quando você procura por ela, e você vai levar este emblema da sua boa sorte (o olho preservado! a vida preservada!) até a morte.