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O título é o 17º do mineiro Ronaldo Cigano, como o qual ganhou o Prêmio Jabuti de contos, em 2016. Agora o livro sai em Portugal, pela editora Gato-Bravo. Leia abaixo crítica feita pelo escritor Sérgio Tavares, colaborador da São Paulo Review, na ocasiona em que a obra foi lançada no Brasil, em 2015.

* Por Sérgio Tavares * 

O escritor Ronaldo Cagiano reúne, em “Eles não moram mais aqui”, contos vencedores de concursos literários e anteriormente publicados em jornais e revistas. Apesar de escritos em tempos distintos, os textos encontram uma unidade, ao abordarem temas reincidentes como o naufrágio humano, a falência dos sonhos, o despertencimento geográfico e o desencanto de uma geração que passou pelo regime militar.

“Eles não moram mais aqui”, “Fosso, fossas” e “Sombras” (leia abaixo), que abrem a coletânea, poderiam ser classificados como a trilogia da finitude. Todos os personagens que conduzem as narrativas se encontram no cadafalso da existência, em excursões pela memória numa tentativa de se protegerem da realidade inevitável, de se confortarem numa saudade que não passa do consumo de um tempo perdido.

São “estranhos na própria terra”, mortos-vivos que enxergam “lá fora a vida passando feito uma correnteza”. Não se trata de cegueira ou de autoengano, mas daqueles que, como confessa o narrador, na primeira frase de “Sombras”, descobrem tardiamente o que se chama partida.

Sopra um vento de desesperança por todo o livro. Um descrédito na saúde do organismo social, do casamento, das relações familiares. “Sem natal” é o périplo emocional de um menino pela ausência do pai, nos anos setenta, evocando um período em que empresários que patrocinavam a ditadura incluíam, nas fatídicas listas negras, operários com atitudes chamadas de subversivas. “Cada dia morria, dando lugar a outro; cada ano era engolido por outro e a primeira década na vida das crianças mudava de pele e a mesma certeza se cristalizava a cada mudança de estação (…)”.

O dilacerante “Esperas”, por sua vez, inverte a motivação, agora colocando uma mãe na busca desesperada por socorro para o filho doente, em meio à miséria da vida, dos hospitais públicos de pronto-atendimento. O conto, a certa altura, quebra com o formalismo narrativo, revelando um escritor com apuro técnico e segurança suficiente para jogar com o léxico e criar um ritmo próprio de (des)compasso poético. Autor também de coletâneas de poemas, Cagiano mobiliza suas tramas com altas cargas de lirismo, por vezes alcançando a intensidade de uma elegia.

Esta potência lírica que contamina a prosa de ficção nada tem de bossa, e sim do um garimpo de um escritor que sabe, como poucos, selecionar palavras e suas influências. Tal exercício fica evidente no conto “Esboços para a (de)composição do naufrágio”, que traça uma jornada pelo território literário, promovendo encontros com autores como Machado de Assis, Cervantes, Kafka e Plínio Marcos. A literatura, Cagiano parece dizer, é a única salvação possível. Se não for para a vida, que seja para seus personagens condenados à “madrugada comprida dos sonâmbulos”.

O mundo é um sono que não vem, uma náusea causada pela ressaca de uma derrota coletiva, o ressaibo daqueles que, vencidos os anos de chumbo, se deram conta de que o futuro é o terceiro gol de Paolo Rossi, aos 29 minutos do segundo tempo. “Fogos-fátuos” é a recapitulação de copas perdidas, de como o futebol é a metáfora das metáforas. Já o belíssimo “Mar de dentro” igualmente se constrói nesse movimento de transpor o sentido próprio ao figurado, aproximando um filho sem mãe, que desconhece a guerra, a um pai, “um homem partido ao meio, metade gente, metade saudade”, num conto de diálogos rascantes, que tem ecos da cidade de Teerã, capital do Irã.

De fato, Cagiano é um observador de cidades — São Paulo, Brasília —, contudo incapaz de desvendá-las por completo (vide “Paralelo 15: homem diante do mar”), de superar a sensação de deslocamento, pois uma parte latente de si ainda reside em Cataguases, cidade mineira onde nasceu. Em dado momento, o autor sentencia, pela voz de um personagem: “Saio desta cidade para não ficar menor que ela”. E não há dúvida de que conseguiu, tornando-se um dos escritores mais completos da literatura contemporânea brasileira.
Leia um conto do livro:

Sombras
“Da morte, só sabia ele o que todos sabem:
que ela nos toma e nos atira no silêncio.”
Rainer Maria Rilke

Agora eu sei que se chamava partida: as silhuetas que eu via nas águas do rio Pomba quando cruzei a ponte velha levando meu irmão ao seu último destino.

Era uma caminhada sem-sentido, o semblante grave das pessoas, o silêncio dizendo tudo, a solenidade nos gestos e olhares, e a gente ali (todos saturados de inconformidade) realizando um trajeto que nunca escolheu.

Eu não me esqueço de como badalava em mim o poema de João Cabral: “este rio/ está na memória/ como um cão vivo/ dentro de uma sala”. Uma sentença que me lembraria para sempre o dia mais longo de nossas vidas, que se confundiam com a que ali seguia, indefesa diante da implacável e indesejada das gentes. Mas, julho despedaçado (estranha conveniência: na minha família todos vão em julho) não houve saídas, elas vieram para raptá-lo. As Parcas. Mais uma vez, deram as cartas e de forma alguma eu conseguia entender de que barro somos feitos.

Quanto de mim seguia junto com o solene acompanhamento. A fuzilaria de olhares, quantas dores iguais à minha?

A sensação de desconforto íntimo começou quando o caçula foi me buscar ao sopé do Morro do João Peixe e eu tive que interromper o jogo da amarelinha e descer correndo os paralelepípedos da Granjaria, em meio à fita de cetim da sapatilha que, desamarrada, bailarinava ao vento, num balé confuso, tão perdida como eu no burburinho de pensamentos sinistros e difusos que me acompanhariam até em casa, aonde cheguei sem saber ao certo por que mãe me chamava nessa hora.

E tudo se acentuou e ficou mais claro, quando a alguns metros da varanda eu a vi de costas, encoberta pelo caótico desespero de uma fala entrecortada de gritos, inútil tentativa de entender por que alguém saiu para não mais voltar: ele saiu daqui pra morrer tão longe.
O luto expresso em cada rosto, dos meus e dos que traziam a parcela mínima, mas inesquecível, do adeus, fazia a coorte daquele momento em que um destino foi cortado ao meio, mas a faca incisiva habitava a nossa carne e antecipada um crepúsculo sem fim.

O leito lá embaixo, nossa atenção imersa nas linhas tênues dos corpos cravados na serpente líquida, que seguia seu destino imune à falta de sentido na vida e no seu fim, reflexos da transitoriedade de tudo. Passava apressado um rio-outro, como o ser que era conduzido, tão cedo fatigado de uma existência e seus anseios de fabulosa extensão.

E com constrangimento e dor, os que ficaram não entendiam ainda o sorriso interrompido, a felicidade interditada pela carreta assassina e seu feixe de madeiras destroçando a nuca. A ilha dentro de nós bloqueando os sonhos, a colher travada na boca, um filho que nunca soube além de um horizonte partido, porque engatinhava no absoluto da existência, buscando no entretempo de suas convicções todos os tempos de uma vida. “Uma vida que poderia ter sido e não foi”, como me confidenciou o poeta sobre as lições dos aeroportos, das estações de trem, dos terminais que decretam despedidas, a lógica de não ser visto, de ser o silêncio, o nada e a invisibilidade após a curva, tão compulsórios e injustos, porque maior equívoco não há que drenar um sonho mancebo na pista criminosa de uma Rio-Bahia recalcitrante, onde somos clandestina oferenda num destino qualquer.

Ali eu morri todas as mortes, e tantas vezes multiplicada a certeza de sua intangibilidade no séquito entre a capela e a necrópole. Mas os espectros que se escalonavam na água informavam de um entardecer maior em nossas histórias, véspera de uma noite que não saberíamos medir, mas que abrigaria suas traições antes mesmo de o galo cantar.

Essas sombras ainda estão me olhando, com a mesma contemplação de meu irmão quando semeou seus versos num saco de padaria, antevendo que o fermento sagrado de sua doida esperança não seria renovado a cada dia, como um alimento para os que ficaram, porque seu tempo não admitia disfarces, o café quedaria frio na xícara numa mesa qualquer da casa, o cão e seu olhar sem festa para a bicicleta hibernada no galinheiro inóspito, os jornais empilhados à espera da entrega, o pé de amora esquecido pela menina que fazia dele sua torre de marfim, a desonra do espanto na face de tantos que regressariam depois de solenizar o corpo a terra, amalgamada com o húmus de lágrimas conhecidas ou de prantos espontâneos, as pernas pânicas de minha mãe procurando apoio, a primeira derrota em nossa abundante história familiar, enquanto meu pai despachava seu olhar para um mundo distante, tentando compreender o deserto irrecorrível que habita todas as perdas.

Ele não precisava ir embora, muito menos num domingo de sol pálido, esconsos mistérios e notícias tristes. O céu podia esperar, porque havia outras urgências a vencer, outros descaminhos a corrigir.

O olhar de meus irmãos precipita-se num imenso abismo em que se transformou aquele dia sem nome. O dia se despedindo junto com ele. Na retaguarda, a cidade continuava imune ao mistério da perda, com seu burburinho de automóveis e operários que chegavam ou saíam das fábricas de tecidos em sua procissão de bicicletas tecendo a próxima manhã. Emergia dentro de nós, como de um pântano, a rigorosa e triste explicação da vida, enquanto a tarde era subvertida pelo chumbo das nuvens que vomitavam suas setas incandescentes na falda das colinas.

Aquelas sombras ainda vigoram em mim. E se me povoa a tragédia do mano que se foi há tanto tempo naquela tarde de um mês esgarçado em Cataguases, todos nós, feito árvores no outono, sem horizontes, pulsa-me na lembrança o dia em que escrutinava a beleza poética da morte com um amigo. Foi num agosto que os anos já varreram. À beira do Paranoá, Juliano, que também perdeu um irmão (vitimado pela tristeza das células linfáticas que penetraram a corrente sanguínea e o matou em dias), por não querer testemunhar o seu sepultamento, optando por guardar a última lembrança de Marcelo ao invés de entregá-lo ao Campo da Esperança (preferindo a curva da estrada, onde tudo desaparece sem deixar vestígio), confessou-me: “A vida é um bom lugar para morrer, meu caro”. Um dia disse isso à minha namorada, nesse mesmo lugar, entre as ruínas e esqueletos desse hotel que afugenta nossos olhares na outra margem desse lago. Eu-ela, embasbacados pe­lo róseo pardacento de uma tarde que se de(s)compunha sobre o altiplano de Brasília, sentados numa pe­dreira e olhando para o horizonte em febre, ocorreu-me que ali também era um bom lugar para morrer. “Se eu fosse sozinho àquele lugar e me jogasse pedreira abaixo, jamais alguém daria conta do meu corpo, a morte ideal e que a mim me ocorreria muito bem”.

Essa sombra maior dentro de mim. Agora eu sei que se chama saudade. E foi escrita com a caligrafia torta da vida.

*

 

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Leia um conto do livro:

SOMBRAS

Da morte, só sabia ele o que todos sabem:
que ela nos toma e nos atira no silêncio.

(Rainer Maria Rilke)

Agora eu sei que se chamava partida: as silhuetas que eu via nas águas do rio Pomba quando cruzei a ponte velha levando meu irmão ao seu último destino.

Era uma caminhada sem-sentido, o semblante grave das pessoas, o silêncio dizendo tudo, a solenidade nos gestos e olhares, e a gente ali (todos saturados de inconformidade) realizando um trajeto que nunca escolheu.

Eu não me esqueço de como badalava em mim o poema de João Cabral: “este rio/ está na memória/ como um cão vivo/ dentro de uma sala”. Uma sentença que me lembraria para sempre o dia mais longo de nossas vidas, que se confundiam com a que ali seguia, indefesa diante da implacável e indesejada das gentes. Mas, julho despedaçado (estranha conveniência: na minha família todos vão em julho) não houve saídas, elas vieram para raptá-lo.  As Parcas. Mais uma vez, deram as cartas e de forma alguma eu conseguia entender de que barro somos feitos.

Quanto de mim seguia junto com o solene acompanhamento. A fuzilaria de olhares, quantas dores iguais à minha?

A sensação de desconforto íntimo começou quando o caçula foi me buscar ao sopé do Morro do João Peixe e eu tive que interromper  o jogo da amarelinha e descer correndo os paralelepípedos da Granjaria, em meio à fita de cetim da sapatilha que, desamarrada, bailarinava ao vento, num balé confuso, tão perdida como eu no burburinho de pensamentos sinistros e difusos que me acompanhariam até em casa, aonde cheguei sem saber ao certo por que mãe me chamava nessa hora.

E tudo se acentuou e ficou mais claro, quando a alguns metros da varanda eu a vi de costas, encoberta pelo caótico desespero de uma fala entrecortada de gritos, inútil tentativa de entender por que alguém saiu para não mais voltar: ele saiu daqui pra morrer tão longe.

O luto expresso em cada rosto, dos meus e dos  que traziam a parcela mínima, mas inesquecível, do adeus, fazia a coorte daquele momento em que um destino foi cortado ao meio, mas a faca incisiva habitava a nossa carne e antecipada um crepúsculo sem fim.

O leito lá embaixo, nossa atenção imersa nas linhas tênues dos corpos cravados na serpente líquida, que seguia seu destino imune à falta de sentido na vida e no seu fim, reflexos da transitoriedade de tudo. Passava apressado um rio-outro, como o ser que era conduzido, tão cedo fatigado de uma existência e seus anseios de fabulosa extensão.

E com constrangimento e dor, os que ficaram não entendiam ainda o sorriso interrompido, a felicidade interditada pela carreta assassina e seu feixe de madeiras destroçando a nuca. A ilha dentro de nós bloqueando os sonhos, a colher travada na boca, um filho que nunca soube além de um horizonte partido, porque engatinhava no absoluto da existência, buscando no entretempo de suas convicções todos os tempos de uma vida. “Uma vida que poderia ter sido e não foi”, como me confidenciou o poeta sobre as lições dos aeroportos, das estações de trem, dos terminais que decretam despedidas, a lógica de não ser visto, de ser o silêncio, o nada e a invisibilidade após a curva, tão compulsórios e injustos, porque maior equívoco não há que drenar um sonho mancebo na pista criminosa de uma Rio-Bahia recalcitrante, onde somos clandestina oferenda num destino qualquer.

Ali eu morri todas as mortes, e tantas vezes multiplicada a certeza de sua intangibilidade no séquito entre a capela e a necrópole. Mas os espectros que se escalonavam na água informavam de um entardecer maior em nossas histórias, véspera de uma noite que não saberíamos medir, mas que abrigaria suas traições antes mesmo de o galo cantar.

Essas sombras ainda estão me olhando, com a mesma contemplação de meu irmão quando semeou seus versos num saco de padaria, antevendo que o fermento sagrado de sua doida esperança não seria renovado a cada dia, como um alimento para os que ficaram, porque seu tempo não admitia disfarces, o café quedaria frio na xícara numa mesa qualquer da casa, o cão e seu olhar sem festa para a bicicleta hibernada no galinheiro inóspito, os jornais empilhados à espera da entrega, o pé de amora esquecido pela menina que fazia dele sua torre de marfim, a desonra do espanto na face de tantos que regressariam depois de solenizar o corpo a terra, amalgamada com o húmus de lágrimas conhecidas ou de prantos espontâneos, as pernas pânicas de minha mãe procurando apoio, a primeira derrota em nossa abundante história familiar, enquanto meu pai despachava seu olhar para um mundo distante, tentando compreender o deserto irrecorrível que habita todas as perdas.

Ele não precisava ir embora, muito menos num domingo de sol pálidoa v, esconsos mistérios e notícias tristes. O céu podia esperar, porque havia outras urgências a vencer, outros descaminhos a corrigir.
O olhar de meus irmãos precipita-se num imenso abismo em que se transformou aquele dia sem nome. O dia se despedindo junto com ele. Na retaguarda, a cidade continuava imune ao mistério da perda, com seu burburinho de automóveis e operários que chegavam ou saíam das fábricas de tecidos em sua procissão de bicicletas tecendo a próxima manhã.  Emergia dentro de nós, como de um pântano, a rigorosa e triste explicação da vida, enquanto a tarde era subvertida pelo chumbo das nuvens que vomitavam suas setas incandescentes na falda das colinas.

Aquelas sombras ainda vigoram em mim. E se me povoa a tragédia do mano que se foi há tanto tempo naquela tarde de um mês esgarçado em Cataguases, todos nós, feito árvores no outono, sem horizontes, pulsa-me na lembrança o dia em que escrutinava a beleza poética da morte com um amigo. Foi num agosto que os anos já varreram. À beira do Paranoá, Juliano, que também perdeu um irmão (vitimado pela tristeza das células linfáticas que penetraram a corrente sanguínea e o matou em dias), por não querer testemunhar o seu sepultamento, optando por guardar a última lembrança de Marcelo ao invés de entregá-lo ao Campo da Esperança (preferindo a curva da estrada, onde tudo desaparece sem deixar vestígio), confessou-me: “A vida é um bom lugar para morrer, meu caro”. Um dia disse isso à minha namorada, nesse mesmo lugar, entre as ruínas e esqueletos desse hotel que afugenta nossos olhares na outra margem desse lago. Eu-ela, embasbacados pelo róseo pardacento de uma tarde que se de(s)compunha sobre o altiplano de Brasília, sentados numa pedreira e olhando para o horizonte em febre, ocorreu-me que ali também era um bom lugar para morrer. Se eu fosse sozinho àquele lugar e me jogasse pedreira abaixo, jamais alguém daria conta do meu corpo, a morte ideal e que a mim me ocorreria muito bem”.

Essa sombra maior dentro de mim. Agora eu sei que se chama saudade. E foi escrita com a caligrafia torta da vida.