Quando dizem aquilo que você ainda não é capaz de compreender

Por Gustavo Magnani *

Precisei quebrar qualquer conceito que você, senhor, tinha de linearidade da história. Estou tendo um dia ruim no hospital — calma, ainda falarei do hospital — e precisei me lembrar de um dos melhores acontecimentos desta triste vida que tive.

Gabriel García Márquez. Conheci aos quinze anos, em mais uma leitura escondida. Depois dele, meu boy magia, como dizem, deixou de ser loiro de olhos azuis para ser mulato de sangue latino, cigano e viril…

Antes de dissertar sobre o latino viril…, digo que aos quinze já sabia da minha condição e por mais que orasse e jejuasse, buscando o fim desta doença, os hormônios [como é bom culpá-los!] me levavam a punhetas e punhetas, idealizando meu José Arcadio: forte, tatuado, dominador de línguas e conhecedor dos segredos do mundo.

Contra tudo o que eu acreditava. Amém.

E contra todas as possibilidades, já adulto, quando morava sozinho, conheci um homem desses que acreditava no que eu pensava acreditar. Um missionário, nos termos de Gabito, lá da Colômbia, veio para cá. De bíblia e violão, pregou o evangelho da igreja primitiva. Do amor e da aceitação. Do amor ao outro, da aceitação do diferente.

Pela primeira vez senti-me acolhido não pelos braços de um homem, mas pelas palavras.

Drogados, assassinos, bêbados, ladrões, mentirosos, adúlteros, caluniadores, falsos, todos sempre foram aceitos na igreja.

Gays, não.

“Amamos o pecador, mas não o pecado”, quanta balela…

Acolhi o missionário em minha casa. No terceiro dia, quando ele partiria, sentou ao pé da minha cama, contou a história de como escapou do tráfico de cocaína e revelou que sabia do meu segredo. Era evidente. Me fizera jurar que, quando ele voltasse, eu teria revelado a todos. Consenti, sem fitar seus olhos.

“Eu precisei fugir para viver. Você precisa parar de fugir e viver.” Ele sorriu, deu um beijo em minha testa e, antes de sair, disse: “O Senhor aceita”.

O senhor não aceita. Não o senhor que aprendi, não o senhor, senhor. Talvez, se o colombiano tivesse ficado…

Ele voltou anos mais tarde por um único dia e depois partiu.

Foi morto em missão num país muçulmano.

E como um personagem de Cem anos de solidão, sofri da epidemia da insônia e chorei por dias. Tinha um bicho dentro do meu peito. Um bicho que pedia pelo mulato. Um bicho que apenas gostava de outros bichos. Se existe o céu desse senhor que ele pregava, nós nos encontraremos em breve. E talvez lá o meu peito se liberte e eu deixe de ser bicho para ser bicha… homem.

*

Ovelha – memórias de um pastor gay [Geração Editoria, 232 págs.] é a estreia do jovem Gustavo Magnani, 20 anos, no romance. O autor é o idealizador de um dos maiores sites de literatura da América Latina, o Literatortura. O lançamento em São Paulo acontece hoje, 9, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, a partir das 18h30

 

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